domingo, 24 de junho de 2012

UMA FÉ PARA UM MUNDO PERDIDO - PARTE 1

Por JOSÉ MORENO BERROCAL.

A VERDADEIRA BASE PARA A EVANGELIZAÇÃO: AS DOUTRINAS DA GRAÇA

Definindo nossos termos

Ao estudar a relação entre a evangelização e as Doutrinas da Graça, é importante compreendermos claramente os termos envolvidos. A palavra evangelização provém do Evangelho, sendo uma transliteração do termo grego euangelion, que significava originalmente a recompensa que o mensageiro recebia após trazer a notícia de uma vitória. Mas euangelion significa também a própria mensagem, a notícia de uma vitória ou as boas novas a respeito de um assunto político ou particular. Posteriormente a palavra adquiriu uma acepção religiosa como boas novas ou boas notícias da parte dos deuses. Além disso temos o verbo euangelizomai, que significa trazer boas novas ou boas notícias. Igualmente temos o termo euangelistes, que significa o proclamador das boas notícias, o evangelista. Todos esses termos são derivados de angelos, mensageiro, ou de angello, anunciar, com o prefixo eu que significa "bem".

Essas palavras gregas adquirem uma grande importância nos escritos do Novo Testamento ao designar a mensagem de salvação que Deus traz ao homem perdido na pessoa e na obra de nosso Senhor Jesus Cristo. Entre outras passagens, temos Romanos 1.1-4 e principalmente 1Coríntios 15.1-4: "Irmãos, quero lembrar-lhes que o evangelho que lhes preguei, o qual vocês receberam e no qual estão firmes. Por meio deste evangelho vocês são salvos, desde que se apeguem firmemente à palavra que lhes preguei; caso contrário, vocês têm crido em vão. Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras..."

Portanto, podemos dizer que o Evangelho é uma declaração do amor de Deus Pai pelos pecadores em Seu Filho. Nesta declaração Paulo anuncia que temos um Salvador perfeito na pessoa de Jesus Cristo. O Evangelho é uma boa notícia porque nele é proclamado que, sobre a base da obra de Cristo na cruz, podemos receber o perdão dos pecados e a vida eterna (At 13.38,39; 26.18). Evangelizar é tornar conhecido esse amor de Deus em Cristo e convidar os pecadores a aceitá-lo: "O tempo é chegado. O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas!" (cf. Mc 1.15; 2Co 5.17-21). Evangelizar é também um ato de obediência ao nosso Senhor Jesus Cristo: "Todavia, não me importo, nem considero a minha vida de valor algum para mim mesmo, se tão-somente puder terminar a corrida e completar o ministério que o Senhor Jesus me confiou, de testemunhar do evangelho da graça de Deus" (At 20.24). [1]

Sob a expressão "Doutrinas da Graça" encontram-se cinco ensinamentos bíblicos: a depravação total do homem; a eleição incondicional de um povo pelo Pai em Cristo e na eternidade, a morte substitutiva de Cristo pelos eleitos; o chamado eficaz dos eleitos à conversão pelo ministério do Espírito Santo e a perseverança dos santos em sua fé até o fim. São chamadas de Doutrinas da Graça porque enfatizam as razões pelas quais a salvação é somente pela graça de Deus. Como diz Calvino: "Jamais nos convenceremos como é devido de que nossa salvação procede e emana da fonte da gratuita misericórdia de Deus enquanto não tivermos compreendido sua eleição eterna". [2]

A depravação total do homem assinala o fato de que o ser humano, depois da Queda, é incapaz de salvar-se a si mesmo. Somente Deus pode salvá-lo (Ef 2.1-10). Deus determinou fazê-lo, e para isso, dentre toda a humanidade caída, o Pai, na eternidade, escolheu em Cristo (Ef 1.3-5) uma multidão incontável para a salvação. A eleição ressalta o fato de que a salvação é pela pura graça de Deus, já que, segundo as Escrituras, Deus escolhe incondicionalmente aqueles que serão salvos não por alguma coisa antevista neles, posto que a eleição acontece na eternidade. Como diz o Apóstolo Paulo, comentando sobre o exemplo de Jacó e Esaú: "Todavia, antes que os gêmeos nascessem ou fizessem qualquer coisa boa ou má - a fim de que o propósito de Deus conforme a eleição permanecesse, não por obras, mas por aquele que chama - foi dito a ela: O mais velho servirá ao mais novo. Como está escrito: Amei Jacó, mas rejeitei Esaú" (Rm 9.11-13). Para efetuar esse propósito da graça, era necessário que Cristo entregasse sua vida em resgate por aqueles que o Pai havia escolhido desde toda a eternidade para serem salvos. A morte de Cristo redime aqueles que hão de ser alcançados pela salvação: "Pois nem mesmo o Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Mc 10.45). "Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas" (Jo 10.14,15). Posteriormente, o Pai, por intermédio do Espírito Santo, chamará eficazmente os eleitos: "Fiel é Deus, o qual os chamou à comunhão com seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor" (1Co 1.9). "Enquanto Pedro ainda estava falando estas palavras, o Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam a mensagem" (At 10.44). Estas doutrinas nos ensinam como o Deus Trino salva os Seus eleitos: o Pai escolhe na eternidade, o Filho morre pelos eleitos (Mt 1.21) e o Espírito Santo chama eficazmente os que hão de ser salvos. Essa obra da Trindade não pode falhar, já que a graça de Deus não falha, e, por isso, os santos podem estar seguros de que perseverarão até o fim no caminho de Deus: "As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão; ninguém as poderá arrancar da minha mão. Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; ninguém as pode arrancar da mão de meu Pai" (Jo 10.27-29). Aqueles que foram escolhidos na eternidade pelo Pai, foram redimidos pelo Filho e tornaram-se habitação do Espírito Santo, podem estar seguros de que nada nem ninguém poderá separá-los do amor de Deus que é em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8.39).


O propósito deste artigo é explorar as relações entre a evangelização e as Doutrinas da Graça. Existe mesmo alguma relação?


A Grande Comissão de Cristo à Igreja


Em primeiro lugar, o Novo Testamento ensina que o evangelismo não é uma opção para a Igreja, mas um mandamento. Portanto, "a inatividade evangelística é desobediência" [3]. Todos os Evangelhos [4] e o livro de Atos recolhem, como as últimas palavras de Jesus a seus discípulos antes de sua ascensão aos céus, a ordem de levar o Evangelho até os confins da Terra. João registra a ordem que foi dada aos discípulos após a ressurreição: "Ao cair da tarde daquele primeiro dia da semana, estando os discípulos reunidos a portas trancadas, por medo dos judeus, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: Paz seja com vocês! Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se quando viram o Senhor. Novamente Jesus disse: Paz seja com vocês! Assim como o Pai me enviou, eu os envio. E com isso, soprou sobre eles e disse: Recebam o Espírito Santo. Se perdoarem os pecados de alguém, estarão perdoados; se não os perdoarem, não estarão perdoados" (Jo 20.19-23). Mateus compartilha conosco as ordens evangelísticas de Cristo num monte na Galileia: "Os onze discípulos foram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes indicara. Quando o viram, o adoraram; mas alguns duvidaram. Então, Jesus aproximou-se deles e disse: Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos" (Mt 28.16-20). Lucas faz um resumo de tudo o que Jesus ensinou sobre evangelização durante quarenta dias entre sua ressurreição e ascensão: "E disse-lhes: Foi isso que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês. Era necessário que se cumprisse tudo o que a meu respeito está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Então lhes abriu o entendimento, para que pudessem compreender as Escrituras. E lhes disse; Está escrito que o Cristo haveria de sofrer e ressuscitar dos mortos no terceiro dia, e que em seu nome seria pregado o arrependimento para perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vocês são testemunhas destas coisas. Eu lhes envio a promessa de meu Pai; mas fiquem na cidade até serem revestidos do poder do alto" (Lc 24.44-49). Finalmente, no livro de Atos encontramos as últimas palavras de Cristo antes de sua ascensão. "Então os que estavam reunidos lhe perguntaram: Senhor, é neste tempo que vais restaurar o reino a Israel? Ele lhes respondeu: Não lhes compete saber os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade. Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra" (At 1.6-9). Evangelizar, portanto, é parte integrante de ser cristão e de ser Igreja. Como a Igreja tem cumprido esse mandato missionário e evangelístico? Qual é a nossa situação atual?


Estado atual da evangelização no mundo


Nesse aspecto, estamos, sem dúvida, participando de uma época fascinante para a fé cristã. Por um lado, o Evangelho, 2000 anos depois do nascimento de Cristo, propagou-se por toda a Terra. Patrick Johnstone, em seu famoso livro Operation World, afirma: "O Cristianismo chegou a ser uma religião mundial neste século" [5]. Ele continua: "Além disso, nunca na História uma proporção tão alta da população mundial teve contato com o Evangelho, e nunca o crescimento dos cristãos evangélicos foi tão grande" [6]. Nesse raciocínio, é interessante observar que em 1985 a porcentagem de evangélicos nos países do assim chamado "Terceiro Mundo" (66%) superava notavelmente o de evangélicos dos países ocidentais e do leste europeu juntos (34%). Essa tendência continua atualmente. Não podemos esquecer essa extraordinária expansão missionária. Observamos que em muitos lugares o Evangelho avança e que, em termos comparativos, há mais cristãos evangélicos hoje do que em qualquer época passada.


Apesar disso, e sem temor de enganar-nos, podemos dizer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, vivemos dias extremamente difíceis para o Evangelho. Seja na América, seja na Europa ou em qualquer outro continente, a situação parece bastante complicada. Ainda há multidões que nunca ouviram falar do Evangelho. Existem muitíssimas pessoas que vivem nos chamados "povos não alcançados" (unreached people, em inglês). Muitos vivem na chamada "Janela 10/40" [7]. Esses grupos totalizam mais de dois bilhões de pessoas, de acordo com estatísticas do (já distante) ano de 1992. Além disso, existem mais de 1,2 bilhão de "cristãos nominais" e cerca de 1,6 bilhão de pessoas que, mesmo vivendo em lugares de acesso fácil ao Evangelho, não são cristãs. [8]


No mundo ocidental, muitos pensam que os dias do Cristianismo já passaram. O homem moderno, dizem, já é maior de idade, e com a sua tecnologia e ciência deixou para trás os mitos do Cristianismo. Muitos teólogos liberais contribuíram para construir esse modo de pensar com teologias que buscam expurgar do Evangelho os elementos considerados míticos. [9] O materialismo de nossa sociedade criou pessoas apáticas e confortavelmente alheias às realidades espirituais. O importante é possuir e usufruir de bens materiais, não importando se existe mesmo uma realidade espiritual. É mais importante ter do que ser, para utilizar a terminologia de Eric Fromm. Por isso, a indiferença e o desprezo para com o Evangelho crescem constantemente. Vivemos numa sociedade secular onde o que realmente importa é o aqui e o agora. O velho provérbio "Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos" (1Co 15.32) é mais atual do que nunca.


Ao mesmo tempo, nós cristãos contemplamos, aparentemente impotentes, como o erro e a mentira são difundidos rapidamente e recebidos facilmente. O vazio espiritual deixado pelo enfoque puramente material da sociedade tem levado muitos a tentar preenchê-lo com todo tipo de falsas doutrinas. Assistimos a um auge das seitas, do ocultismo, da superstição e da irracionalidade. G. K. Chesterton estava certo ao afirmar que "quando os homens deixam de crer em Deus, não crerão em nada - crerão em qualquer coisa". Ou, como afirma Emanuel Geibel: "Se fecham a porta à fé, a superstição salta pela janela; se expulsam os deuses, chegam os fantasmas". [10]


Como Goya afirmou: "O sono da razão produz monstros". Essa situação levou muitos cristãos à depressão, ao desânimo e ao abandono da evangelização. Outros decidiram recorrer a técnicas de marketing que nada têm a ver com o Evangelho.


Se atentarmos para outros países do mundo, como os países muçulmanos, veremos que a maior parte deles encontra-se na "Janela 10/40". Ou em países como a Índia, onde o hinduísmo exerce sua hegemonia, parece dificilmente possível que o Evangelho possa triunfar. Há mais de 767 milhões de hindus e 1,2 bilhão de muçulmanos no mundo. [11] Durante séculos, o islã e o hinduísmo têm resistido aos embates do Evangelho e, salvo algumas conversões aqui e ali, parecem permanecer, como um todo, imunes às influências do Cristianismo. Devemos acrescentar a essas cifras os 357 milhões de budistas que há no mundo e a crescente influência dessa filosofia no mundo ocidental. [12] Tem havido certo crescimento evangélico em cada um desses lugares, mas de forma lenta e dificilmente espetacular. Esses países não parecem ser um terreno fácil para a expansão do Evangelho. Nessas circunstâncias, que para muitos são terrivelmente depressivas, há algo que nós podemos fazer para trazer mudanças?


O ministério de Cristo como modelo


Neste novo milênio, precisamos continuar cumprindo o mandato evangelístico de nosso Senhor Jesus Cristo. Apesar do notável crescimento da Igreja nos últimos tempos, continuamos enfrentando grandes desafios. Temos alguma esperança ao evangelizar? Os pecadores receberão o Evangelho, afinal? Onde poderemos encontrar a motivação para enfrentar os desafios de nosso tempo? Minha sugestão é voltar às Escrituras e apreciar novamente o modo como nosso Senhor Jesus Cristo levou a cabo a missão que o Pai lhe deu. É no ministério de Cristo onde encontramos a relação entre a evangelização e as Doutrinas da Graça. É no ministério de Cristo onde poderemos encontrar nosso modelo e nossa motivação para enfrentar a tarefa inacabada da evangelização mundial.


Particularmente interessantes são as palavras de Jesus registradas por João: "Assim como o Pai me enviou, eu os envio" (Jo 20.21). Encontramos aqui não somente um mandato evangelístico, mas também um modo de evangelizar. São palavras parecidas com as pronunciadas pelo mesmo Jesus em sua oração sacerdotal: "Assim como me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo" (Jo 17.18). Sobre este último versículo diz Hendriksen: "Assim como o Pai enviou Jesus ao mundo com uma mensagem, assim também Jesus envia os discípulos ao mundo com uma mensagem. A mensagem é a mesma, a da redenção em Cristo" [13]. A missão dos discípulos é pregar o Evangelho como Cristo pregou. Como o Pai enviou o Filho? Com que missão? A quem o Filho foi enviado? Tentaremos encontrar as respostas no próprio Evangelho segundo João. O Pai enviou a Cristo com uma missão específica: dar vida eterna aos que o Pai lhe deu. Cristo estava persuadido de que aqueles que pertenciam ao Pai e que lhe foram dados pelo Pai certamente creriam, por maiores que fossem os obstáculos, e finalmente seriam salvos. Nossa missão é proclamar o perdão dos pecados em Cristo, na certeza de que aqueles que pertencem a Ele ouvirão e receberão a mensagem e serão salvos.


Sem dúvida nenhuma, nossa atitude deve ser, portanto, a mesma que a de nosso Senhor Jesus Cristo na hora de evangelizar. Jesus pregava o Evangelho do Reino de Deus com confiança, sabendo que a conversão das almas dependia exclusivamente da vontade de Deus. Observamos isso claramente em João 6. Ali vemos como, depois de alimentar milagrosamente uma multidão de mais de cinco mil pessoas, essa mesma multidão procura Jesus para fazê-lo rei (cf. 6.15). Jesus adverte que a motivação daquele povo para segui-lo não era a correta: "A verdade é que vocês estão me procurando, não porque viram os sinais milagrosos, mas porque comeram os pães e ficaram satisfeitos" (v. 26). Jesus lhes mostra qual deve ser a atitude correta diante de Sua pessoa. Em primeiro lugar, devem priorizar suas necessidades espirituais, e não as materiais: "Não trabalhem pela comida que se estraga, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do Homem lhes dará. Deus, o Pai, nele colocou o seu selo de aprovação" (v. 27; cf. Mt 6.33). Devem depositar sua confiança n'Ele como o único que pode salvá-los: "A obra de Deus é esta: crer naquele que ele enviou" (6.29), o único designado pelo Pai para esse propósito. Apesar disso, muitos revelam a incredulidade de seus corações ao exigir um sinal extra de que Jesus é digno de ser crido (v. 30). A situação parece desesperadora: essas pessoas, apesar de terem visto Jesus e seus poderosos sinais, não creem n'Ele.


O que deve ser feito? O que o nosso Senhor fez? Ele se apoiou no fato de que existe um número incontável de pessoas que lhe foram dadas pelo Pai e que crerão n'Ele. Por isso, Jesus pode afirmar com confiança a essa multidão incrédula: "Todo aquele que o Pai me der virá a mim" (v. 37), e "É por isso que eu lhes disse que ninguém pode vir a mim, a não ser que isto lhe seja dado pelo Pai" (v. 65). Do que Jesus está falando? Ele nos responde em João 10, onde, sob a alegoria de um pastor de ovelhas, Jesus ensina com precisão que suas ovelhas são aquelas que ouvem a sua voz e o seguem (v. 27). Os que creem são suas ovelhas; os que não creem, não são suas ovelhas (v. 26). O surpreendente é que Jesus revela que suas ovelhas lhe foram dadas de antemão pelo Pai (v. 29). É no capítulo 17 de João onde vemos claramente, na oração sacerdotal de Jesus, o sentido último dessas palavras. Aqui Jesus reitera a natureza de seu ministério: dar a vida eterna àqueles que lhe foram dados pelo Pai (v. 2). Ele manifestou o nome do Pai aos homens que do mundo o Pai lhe deu (v. 6). Significativamente Ele acrescenta: "Eles eram teus; tu os deste a mim". Jesus roga por aqueles que o Pai lhe deu (v. 9). Pede que o Pai os guarde como Ele os guardou enquanto esteve com eles no mundo (vv. 11-12). Pede que aqueles que o Pai lhe deu estejam, um dia, onde Cristo estará para que possam ver a Sua glória (v. 24). Os que o Pai lhe deu não pertencem a este mundo (vv. 14,16) e são reconhecidos por terem recebido a Palavra do Pai por intermédio de Cristo, sendo, justamente por isso, odiados pelo mundo (vv. 6,14). Porém, são amados pelo Pai. A pergunta que devemos fazer é: quando foram amados pelo Pai e dados pelo Pai ao Filho? A única resposta possível é: na eternidade. Muitas outras passagens do Novo Testamento corroboram essa conclusão. Em Efésios 1.4,5 nos é dito: "Porque Deus nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença. Em amor nos predestinou para sermos adotados como filhos, por meio de Jesus Cristo, conforme o bom propósito da sua vontade". Escrevendo a Timóteo, Paulo descreve Deus como Aquele que "nos salvou e nos chamou com uma santa vocação, não em virtude das nossas obras, mas por causa da sua própria determinação e graça. Esta graça nos foi dada em Cristo Jesus desde os tempos eternos, sendo agora revelada pela manifestação de nosso Salvador, Cristo Jesus" (2Tm 1.9,10). Portanto, o Pai deu um povo ao Filho, na eternidade, e esse povo será infalivelmente salvo.


Se a conversão depende da decisão dos homens, então nossas esperanças de evangelização são nulas. Mas se a conversão é uma obra de Deus, então podemos ter esperança. Esperança como a que Jesus manifestou em seu ministério terreno, quando parecia que ninguém estava disposto a ser seu discípulo. A esperança de que aqueles que o Pai lhe deu na eternidade viriam a Ele e seriam salvos: inclusive todas as outras ovelhas que não eram israelitas (Jo 10.16). Portanto, vemos como a Bíblia de modo geral - e o Novo Testamento em particular - contém várias promessas divinas que garantem a conversão de muitos. Quando Paulo pregava em Corinto, o Senhor lhe apareceu numa visão à noite, para encorajá-lo a continuar pregando. Ele assegurou ao Apóstolo que Deus tinha muita gente naquela cidade (At 18.9-11). Por isso Paulo não podia deixar de pregar.


Em outras palavras, Deus prometeu que muitos que agora estão perdidos responderão, um dia, ao chamado do Evangelho. Essa promessa de Deus é a base de nossos esforços evangelísticos. Temos visto como, durante o seu ministério na Terra, nosso Senhor Jesus Cristo depositou sua confiança na certeza de que as promessas de Deus com respeito à salvação não podem ser falsas: "Eu lhes afirmo que está chegando a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e aqueles que a ouvirem, viverão" (Jo 5.25). Essa é também a nossa confiança!


Diante das dificuldades que existem e que sempre existirão para a expansão do Evangelho, a Palavra de Deus nos dá, portanto, um alento para perseverar na evangelização. De fato, ela nos ensina a encontrar motivação e encorajamento da mesma forma que o nosso Senhor Jesus Cristo e posteriormente seus Apóstolos, ou seja, na certeza de que Deus tem um povo que será infalivelmente salvo pela pregação do Evangelho e pela obra do Espírito Santo nos corações dos eleitos de Deus. Nossa confiança na hora de evangelizar é a que se expressa tão claramente num belo e antigo hino:


Oh, Senhor, teu amor é forte,
Mais forte do que a morte,
Não nos deixará jamais.
Os teus filhos que escolheste
Com teu sangue redimiste
E jamais os perderás.

E teu amor é para sempre,
Pelos séculos permanece.
Jamais tu entregarás
Nas mãos do inimigo
Os teus santos redimidos:
Não os desampararás.

É teu amor inquebrantável
Tão constante e entranhável
Que jamais esfriará.
E seu fogo é forte chama,
Muitas águas não o apagarão,
Rios não o extinguirão. [14]


Somos convidados a descansar na soberania de Deus no tocante à salvação dos pecadores. E uma vez salvos, jamais perderão a salvação. J. I. Packer diz: "A soberania de Deus na graça é o que impede que vejamos a evangelização como algo sem sentido. Cria a possibilidade, a certeza, de que a evangelização terá fruto" [15]. Por isso, Bob Sheehan tem toda a razão quando diz: "Uma perspectiva correta a respeito das Doutrinas da Graça nos proporciona uma grande motivação no evangelismo e um antídoto necessário contra o desespero nos momentos estéreis que atravessamos no ministério" [16].


Quando percebemos a relação da soberania de Deus com a evangelização, nossa atitude sobre a tarefa da Igreja deve ser, evidentemente, de otimismo bíblico. As Doutrinas da Graça nos permitem trabalhar com afinco na evangelização mundial. Mais do que isso, nos permitem crer que o futuro pertence à Igreja. Não é uma coincidência que as grandes épocas de expansão missionária tenham coincidido com uma redescoberta das Doutrinas da Graça e sua conexão com a evangelização. [17]

Tradução da primeira parte de Una fe para un mundo perdido, capítulo 5 do livro:
PUIGVERT, Pedro (org.). Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo Histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2002, pp. 200-213.

Traduzido do espanhol por F.V.


NOTAS

[1] Diccionario Expositivo de palabras del Nuevo Testamento, art. "Evangelio", pp. 94-95 (Editorial CLIE, 1984).
[2] João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III, XXI, 1 (Editora Unesp, p. 375).
[3] J. R. W. Stott - J. Grau: La Evangelización y la Biblia, p. 17 (E.E.E., Barcelona, 1973).
[4] Todos sabemos que existe uma outra versão da Grande Comissão no Evangelho segundo Marcos. Sobre essa versão, no livro citado na nota anterior, John Stott diz: "De acordo com a clara evidência dos manuscritos, admite-se universalmente que a conclusão original de Marcos foi perdida e que o chamado 'final longo' (Mc 16.9-20) é uma adição posterior feita por outra mão. Devemos, pois, tratar com muita cautela essa passagem". Ibid., p. 18. Concordo com a afirmação de Stott.
[5] P. Johnstone: Operation World, p. 33, Fourth Edition, 1987 (STL Books, WEC Publications).
[6] Ibid., p. 35.
[7] Isto é, os países situados entre os paralelos 10 e 40.
[8] Perspectives on the World Christian Movement, Edited by Ralph D. Winter & Steven C. Hawthorne, W. CAREY LIBRARY. Pasadena, California, 1992, p. B-183.
[9] Principalmente, Bultmann. Sobre Bultmann, veja Harvie M. Conn: Teología Contemporánea en el Mundo, pp. 32-42 (TELL).
[10] Citações de José María Martínez: Por qué aún soy cristiano, p. 36 (CLIE, 1987).
[11] Dados obtidos de A Toda Criatura: testimonio cristiano a cada hogar. Vol. 10, nº 59. Enero-Febrero 2000, apud Global Evangelization Movement.
[12] Ibid.
[13] W. Hendriksen: Comentario del Nuevo Testamento, Juan, p. 634 (TELL, 1981).
[14] Himnario Evangélico. Literatura Cristiana Evangélica, 1971, nº 551. Traduzido livremente do espanhol por F.V.
[15] J. I. Packer, Evangelism and the Sovereignty of God, p. 106 (Inter-Varsity Press, 1986). Em português, publicado pela Editora Cultura Cristã (boa sorte!!!).
[16] Robert J. Sheehan: "The Doctrines of Grace", p. 33, revista Reformation Today, nº 66, março-abril de 1982.
[17] Cf. especialmente I. H. Murray: The Puritan Hope (The Banner of Truth, 1975) e Erroll Hulse: Give Him No Rest, Apêndice 1 (Evangelical Press, 1991). "Guillermo Carey y el nacimiento de las misiones cristianas modernas", artigo na revista Nueva Reforma.

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