domingo, 26 de junho de 2011

EMAIL A UMA DIRIGENTE DE LOUVOR

Por AUGUSTUS NICODEMUS LOPES.

De: Augustus Nicodemus Lopes
Para: lenita@louvorceleste.brEnviada em: 15/06/2011Cc:Assunto: RES: Perguntas sobre ministração do louvor-------------------------------------------------------------------------------

Prezada Lenita,

Recebi seu email contendo várias perguntas sobre a "ministração" do louvor. Desculpe não ter respondido antes, foi falta de tempo mesmo.Você me diz que é uma levita em sua igreja e que ministra o louvor durante os cultos. Sim, de fato é um privilégio poder participar do culto a Deus servindo na parte da condução dos cânticos. Eu teria um pouco de dificuldade em considerar você como levita (apesar de você ter um nome parecido, hehe), pois para mim os levitas faziam muito mais do que conduzir o louvor no templo: eles matavam e esfolavam animais, limpavam o sangue, a gordura, o excremento e os restos dos animais sacrificados e levavam uma parte para queimar fora. Além disto, arrumavam o templo, cuidavam da mobília e utensílios, etc. Se você quiser ser levita como aqueles de Israel, terá de se tornar a zeladora da igreja, rsrsrs!Bom, vamos agora às suas peguntas. Coloquei as suas perguntas em negrito, para facilitar:

1) Até que ponto posso manifestar minhas emoções ao cantar pra Deus? Desde que sejam manifestações autênticas, sem problemas. O que incomoda muito é quando se percebe que o dirigente está fingindo, ou fazendo força para demonstrar o que não está sentindo. A maioria dos membros das igrejas não se emociona fortemente quando cultua. As emoções nem sempre estão presentes. Por isto, eles podem ficar meio desconfiados quando o dirigente do louvor, nem bem começou a primeira música, já está virando os olhos, chorando e embargando a voz. Mas, se as emoções forem legítimas, elas podem ser expressadas sem muita afetação.

2) Levantar as mãos!! Posso? É errado? Não, não é errado, o problema é que às vezes parece uma forçação de barra, algo superficial e ensaiado, que não consegue convencer o povo de que é uma expressão sincera de adoração, Portanto, recomendo sabedoria e cuidado. É preciso deixar claro para o povo que não serão as mãos levantadas que tornarão o louvor mais espiritual ou mais aceitável diante de Deus. Não há qualquer relação direta na Bíblia entre posturas físicas e espiritualidade.

3) Posso pedir para a igreja levantar as mãos em um dado momento da música, por exemplo? Veja a resposta que dei à pergunta anterior. Eu acrescentaria que pode ficar meio constrangedor pedir para a igreja levantar as mãos durante um cântico, pois tem gente que não estará sentindo nada e outros que não se sentem bem fazendo isto. A melhor coisa é deixar que seja espontâneo, que parta do povo mesmo. Gosto da regra, "não estimule; não proíba".

4) Balançar de um lado pro outro, mesmo numa canção lenta é errado? Não, desde que não vire dança ou rebolado sensual, provocando a imaginação dos rapazes, que lutam para se concentrar na letra e na música.

5) Se me emocionar e chorar? Como eu disse, se for autêntico não haveria problemas, mas lhe confesso que é constrangedor ver dirigentes de louvor chorando como se aquilo fosse expressão máxima de espiritualidade ou comunhão com Deus. Quem não chora vai se sentir carnal, frio ou não convertido. Eu evitaria.

6) Em relação à ministração entre uma música e outra, posso falar sobre a palavra, citar versículo e até explanar de uma forma muito rápida e objetiva? Poder, pode, mas se você não tiver uma preparação teológica vai acabar dizendo abobrinha, como eu ouço direto. Não é fácil falar em público e dizer coisas que realmente edifiquem. Sua função é ajudar o povo a adorar a Deus através da música. Estes sermonetes entre músicas soam às vezes forçados, pois geralmente se tenta fazer uma ponte entre o tema da música e uma passagem da Bíblia, e isso fica forçado e artificial.

7) Falar aleluia ou glória a Deus, claro que com reverência, sem gritar, por exemplo, é permitido? Não vejo problemas. Mais uma vez, todavia, é preciso ter certeza que são manifestações autênticas e não artificiais.

Lenita, o problema todo é esta superficialidade de alguns dirigentes de louvor que ficam se emocionando, chorando, revirando os olhos, gemendo lá na frente durante o louvor, e que uma vez encerrado este período, ficam do lado de fora do templo batendo papo com os componentes da banda enquanto o culto continua acontecendo. Fica óbvio para todo mundo que era apenas fingimento.Acho que os dirigentes de louvor seriam uma bênção maior se fizessem apenas isto mesmo, dirigir o louvor, ajudando o povo a entoar os louvores a Deus. Qual o propósito destas demonstrações de êxtase e enlevo fortemente emocionais à frente da Igreja? Ajuda em quê? Não quero generalizar, pois seria injusto, claro - mas às vezes fica a impressão que é apenas uma maneira de auto-promoção. Pense nisto.No mais, que o Senhor continue a abençoar sua vida preciosa.

Um abraço!

Augustus

[Trata-se de um email fictício, embora baseado em fatos reais]

FONTE: O TEMPORA! O MORES!

http://tempora-mores.blogspot.com/2011/06/email-uma-dirigente-do-louvor.html

sexta-feira, 17 de junho de 2011

O CATIVEIRO PELAGIANO DA IGREJA

Por R. C. SPROUL.

Logo após o início da Reforma, nos primeiros anos depois de Martinho Lutero afixar suas 95 Teses na porta da igreja de Wittenberg, ele começou a publicar vários panfletos. Um dos mais provocativos teve como título O Cativeiro Babilônico da Igreja. Nesse livreto Lutero fez uma retrospectiva sobre o período histórico do Antigo Testamento quando Jerusalém foi destruída pelos exércitos invasores da Babilônia e a elite do povo foi levada para o cativeiro. Lutero, em pleno século XVI, tomou a imagem do cativeiro babilônico e a aplicou à situação da Igreja em sua época. Falou de Roma como a nova Babilônia que aprisionou o Evangelho, aprisionando-o com a sua rejeição ao conceito bíblico de justificação pela fé. Podemos entender quão polêmico foi esse título nesse período, pois Lutero afirmou categoricamente que a Igreja não havia simplesmente se equivocado, mas havia caído - caído e se transformado numa Babilônia, e agora estava num cativeiro pagão.

Muitas vezes tenho pensado que se Lutero vivesse hoje e olhasse, não para a "igreja" liberal, mas para a igreja evangélica, o que ele diria? Claro que não posso responder a essa pergunta com nenhum tipo de autoridade definitiva, mas penso que seria algo assim: Se Martinho Lutero vivesse hoje e resolvesse escrever, o livro que escreveria em nosso tempo teria como título O Cativeiro Pelagiano da Igreja.

Lutero viu a doutrina da justificação pela fé como o combustível de um profundo problema teológico. Ele escreveu extensamente sobre isso em seu livro De Servo Arbitrio ("A escravidão da vontade"). Quando lembramos a Reforma e seus lemas - Sola Scriptura, Sola Fide, Sola Gratia, Solus Christus, Soli Deo Gloria - percebemos que Lutero estava convencido que o verdadeiro ponto focal da Reforma era a questão da graça de Deus; e que ao enfatizar a doutrina do Sola Fide, justificação somente pela fé, estava igualmente enfatizando o Sola Gratia, a justificação somente pela graça.

Na edição de Fleming Revell de A Escravidão da Vontade, os tradutores J. I. Packer e O. R. Johnston incluíram uma introdução teológica e histórica bem extensa. O parágrafo seguinte é parte do final dessa introdução:

"Essas coisas precisam ser consideradas pelos protestantes de hoje. Com que direito podemos nos considerar filhos da Reforma? Muito do "protestantismo" de hoje não poderia ser chamado reformado nem considerado assim pelos reformadores pioneiros. A Escravidão da Vontade coloca diante de nós tudo aquilo que eles criam sobre a salvação da humanidade perdida. À luz desses fatos, podemos nos perguntar se a cristandade protestante não teria vendido seu legado desde os dias de Lutero até os nossos. Por acaso o "protestantismo" de hoje não tem muito mais de "Erasmianismo" do que de "Luteranismo"? Por acaso não temos sido tentados a minimizar as diferenças doutrinárias em nome de uma suposta paz e comunhão entre os grupos evangélicos? Somos diferentes de Erasmo, a quem Lutero acusou (e com toda a razão) de indiferença doutrinária? Ainda acreditamos que a sã doutrina bíblica é realmente importante?"
Historicamente fica claro que os principais reformadores, começando por Lutero, Calvino e Zwinglio, sustentaram o mesmo ponto de vista no tocante à doutrina da justificação, e com eles todos os protestantes dos primeiros tempos da Reforma. Tiveram divergências sobre outras questões, tais como a natureza exata da Ceia do Senhor. Mas na afirmação da incapacidade do homem causada pelo pecado e da soberania e graça de Deus, foram certamente unânimes. Para todos eles essas doutrinas significavam a essência do Cristianismo bíblico, a verdadeira fé cristã. Um editor das obras de Lutero afirmou:

"Quem fechar este livro sem reconhecer que a teologia evangélica se mantém em pé ou cai juntamente com a doutrina da escravidão da vontade, terá lido em vão. A doutrina da justificação gratuita pela fé somente, que foi o centro tormentoso da controvérsia teológica da Reforma, é geralmente considerada o coração do ensino dos reformadores, mas isso não é exato. A verdade é que o seu pensamento estava realmente centralizado sobre o argumento de Paulo, ecoado por Agostinho e outros, que a salvação dos pecadores é somente pela graça livre e soberana de Deus, e que a doutrina da justificação pela fé foi importante para eles porque salvaguardava o princípio da graça soberana. A soberania da graça encontrava expressão num nível mais profundo de seu pensamento ao descansar na doutrina da regeneração monergista."

Isso significa que a própria fé que recebe a Cristo para a justificação é, em si mesma, o livre dom do Deus soberano. O princípio do Sola Fide não é corretamente entendido até que seja visto como unido ao princípio mais amplo do Sola Gratia. Qual é a origem da fé? A fé é dom de Deus, indicando, portanto, que a justificação é recebida como uma dádiva, um presente de Deus, ou a fé é uma condição para a justificação, a qual é deixada para que o homem a cumpra? Você percebe a diferença? Deixe-me expor em termos simples. Recentemente ouvi um evangelista dizer: "Mesmo que Deus tenha feito muitas coisas para alcançar você e resgatá-lo, no entanto é você, você mesmo, quem deve dar o passo decisivo para ser salvo". Ou considere a declaração de Billy Graham, o mais amado líder evangélico da América no século XX: "Deus fez 99% do que é necessário para a sua salvação, mas agora você precisa fazer o 1% restante".

O que é pelagianismo? Do que estamos falando com a expressão "O Cativeiro Pelagiano da Igreja"?

Pelágio foi um monge britânico do quinto século. Foi contemporâneo do maior teólogo do primeiro milênio da Igreja, Aurélio Agostinho, bispo de Hipona, no norte da África. As obras de Agostinho, tais como A Cidade de Deus e Confissões, permanecem como clássicos do Cristianismo.

Agostinho, além de ser um teólogo brilhante e um intelecto prodigioso, foi também um homem de profunda espiritualidade e oração. Certa vez declarou a Deus: "Ordena o que quiseres, e dá-me a capacidade de fazer o que ordenas". Pelágio não gostou dessa frase. Ao ouvi-la, vociferou contra Agostinho e pediu a Roma que proibisse o bispo de Hipona de continuar a proclamá-la. Pelágio não gostou da segunda parte da frase: "dá-me a capacidade de fazer o que ordenas". Ele disse: "Do que você está falando, Agostinho? Se Deus é justo, reto e santo, e se Deus ordena à criatura que faça algo, é porque certamente a criatura deve ter capacidade, em si mesma, de cumprir os mandamentos de Deus, ou Deus nunca ordenaria coisa alguma". O que Pelágio estava dizendo é que a responsabilidade moral sempre pressupõe capacidade moral ou habilidade moral. Então, por que deveríamos orar "dá-me a capacidade de fazer o que ordenas"? Pelágio viu nessa declaração uma sombra que estava sendo projetada sobre a própria integridade de Deus, pois Ele estaria exigindo das pessoas uma responsabilidade para fazer coisas que as pessoas não teriam condições de fazer.

Nos debates que se seguiram, Agostinho deixou claro que, na criação, Deus não ordenou a Adão e Eva que fizessem algo que eles não seriam capazes de fazer. Mas depois da transgressão e do pecado que levou a humanidade a cair, a lei de Deus não foi cancelada nem ajustada, nem teve seus requerimentos santos rebaixados para acomodar-se à condição humana caída devido ao pecado. Adão e Eva sofreram o juízo divino contra o pecado, por isso todos os seus descendentes já nascem mortos no pecado - essa é a doutrina bíblica do pecado original. Como resultado desse primeiro pecado, temos uma corrupção inata, já nascemos em pecado, e em pecado fomos concebidos. Não nascemos num estado natural de inocência, mas numa condição pecaminosa, decaída. Praticamente cada igreja em algum momento de sua história desenvolve uma declaração doutrinária sobre o pecado original. Do ponto de vista bíblico, seria preciso mudar todo o conceito de "humanidade" se fosse negado o conceito de pecado original.

Essa é precisamente a questão em disputa entre Agostinho e Pelágio no quinto século. Pelágio dizia que o pecado original não existe. O pecado de Adão teria afetado somente Adão. Não haveria transmissão de corrupção e culpa aos descendentes de Adão e Eva. Segundo Pelágio, cada ser humano nasce no mesmo estado de inocência total no qual Adão e Eva foram criados. Além disso ele ensinou que é possível uma pessoa viver em obediência a Deus, uma vida de perfeição moral, sem nenhuma ajuda de Jesus nem da graça de Deus. Pelágio disse que a graça - e aqui está uma distinção importante - facilita a justiça. O que isso quer dizer? Que a graça de Deus torna a justiça própria humana mais fácil, mais simples, mas na verdade você não precisa dela. Pelágio declarou, ainda, que não somente é possível viver de maneira perfeita na teoria, mas que na prática, há pessoas que vivem sem pecado. "Não, não", Agostinho respondeu. Estamos por natureza afetados pelo pecado, até as profundezas de nosso ser - de tal modo que não há ser humano que tenha a capacidade moral de inclinar a si mesmo e cooperar com a graça de Deus. A vontade humana, como resultado do pecado original, permanece sem o poder de escolha, escrava de seus maus desejos e más inclinações. A condição da humanidade caída é tal que Agostinho podia descrevê-la como incapacidade de não pecar. Em outras palavras, o que Agostinho estava dizendo é que na Queda o homem perdeu a capacidade de fazer o que agrada a Deus e tornou-se prisioneiro de suas próprias inclinações perversas.

No quinto século a Igreja condenou Pelágio como herege. O pelagianismo foi condenado no Concílio de Orange, e condenado de novo no Concílio de Florença, e no Concílio de Cartago, e também, ironicamente, no Concílio de Trento, no século XVI, nos primeiros três anátemas dos Cânones da Sexta Sessão. Portanto, consistentemente ao longo da história da Igreja o pelagianismo foi condenado firme e completamente, porque o pelagianismo nega a Queda de nossa natureza, nega o pecado original.

No entanto, o semipelagianismo estava posicionado entre o pleno agostinianismo e o pleno pelagianismo. O semipelagianismo afirma: sim, houve uma Queda; sim, existe o pecado original; sim, a constituição humana foi mudada por este estado de corrupção e nossa humanidade foi significativamente enfraquecida pela Queda, de modo que sem a assistência da graça divina nenhum ser humano pode ter a possibilidade de ser redimido; portanto a graça é útil e necessária para a salvação. Mas, mesmo estando caídos, precisando da graça para nossa salvação, ainda assim temos a capacidade para aceitar ou rejeitar a graça que nos é oferecida. A vontade humana está enfraquecida, mas não escravizada pelo pecado. Há um remanescente no interior de nosso ser, uma ilha de justiça que não foi tocada pela Queda. É a resposta desta ilha de justiça, desta pequena porção de bondade que encontra-se intacta na alma e na vontade, que faz a diferença entre Céu e inferno. Em última análise, é o uso dessa pequena ilha de justiça em nós que determina se iremos para o Céu ou para o inferno. Agostinho não reconheceu essa pequena ilha, nem mesmo um pequeno recife dela. Ele disse que era uma ilha mitológica, que a vontade humana é escrava da natureza pecaminosa, e que o homem está morto em seus delitos e pecados.

Ironicamente a Igreja condenou o semipelagianismo da mesma forma como condenou o pelagianismo original. Mas o tempo passou, e no século XVI o entendimento católico do que acontece na salvação havia mudado, e a Igreja rejeitou os ensinos de Agostinho e de Tomás de Aquino. A Igreja concluiu que há remanescentes de liberdade e bondade que estão intactos na vontade humana e que o homem pode e deve cooperar com - assentir com - a graça de Deus que lhe é oferecida. Se exercemos essa vontade, seremos salvos. E portanto no século XVI a Igreja voltou a abraçar o semipelagianismo.

Na época da Reforma, todos - absolutamente todos - os reformadores estavam de acordo num ponto: a incapacidade moral dos seres humanos caídos de voltar-se para as coisas de Deus; que todas as pessoas, na ordem da salvação, estavam totalmente dependentes, não 99%, mas 100% dependentes, da obra da regeneração monergística, como primeiro passo para receber a fé, e que a fé em si mesma é um dom de Deus. A fé não é o que oferecemos a Deus para a salvação, nem nascemos de novo porque antes escolhemos crer. Na verdade, não podemos nem mesmo crer, até que Deus em Sua graça e misericórdia mude a disposição de nossas almas através da Sua obra soberana de regeneração. Ou seja, o novo nascimento precede a fé. Os reformadores proclamavam que, a menos que o homem nasça de novo, não poderá ver o Reino de Deus, nem entrar nele. Assim como disse Jesus ("Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair", Jo 6.44), a condição necessária para a fé e para a salvação de qualquer pessoa é o novo nascimento, a regeneração.

Os Evangélicos e a Fé

O evangelicalismo moderno, quase uniforme e universalmente, ensina que na ordem da salvação, para que uma pessoa nasça de novo, primeiro precisa ter fé. Você precisa escolher nascer de novo. Não é isso o que temos ouvido? Numa pesquisa de George Barna, mais de 75% de "cristãos evangélicos professantes" dos Estados Unidos expressaram a crença de que o homem é basicamente bom. E mais de 80% afirmaram crer que Deus ajuda a quem se ajuda primeiro. Essas posições não são semipelagianas - são completamente pelagianas! A crença de que somos basicamente bons é um ponto de vista pelagiano. A Igreja está contaminada pelo pelagianismo. Estamos imersos nele. Cercados por ele. Todos os dias ouvimos os seus ensinos. Ouvimos o pelagianismo na cultura secular, nas redes de TV e de rádio cristãs.

No século XIX um pregador muito popular nos Estados Unidos escreveu um livro de teologia, baseado em sua formação universitária em Direito e legislação civil, no qual resumiu seu pelagianismo. Ele rejeitou não somente o agostinianismo, mas também o semipelagianismo, e sustentou claramente a posição pelagiana, afirmando diretamente, sem ambiguidades, que não houve a Queda e que não existe pecado original. Esse homem atacou cruelmente a doutrina da expiação substitutiva de Cristo, e rejeitou duramente a doutrina da justificação pela fé por meio da imputação da justiça de Cristo. A tese básica desse homem é que não precisamos da justiça de Cristo, porque temos, em nós mesmos, a capacidade de sermos justos. O nome desse homem era Charles Finney, um dos mais respeitados evangelistas dos Estados Unidos. Se Lutero estava certo ao afirmar que a Sola Fide é o artigo pelo qual a Igreja permanece em pé ou cai, se a justificação pela fé é uma verdade essencial do Evangelho, se a expiação substitutiva de Cristo é fundamental para o Cristianismo, a única conclusão que podemos chegar é que Charles Finney não era cristão. Como uma pessoa cristã poderia negar as verdades essenciais da salvação?! Ainda assim, Finney está no "Hall da Fama" do evangelicalismo da América. Ele é o "santo padroeiro" do evangelicalismo do nosso tempo. E ele não era semipelagiano, era descaradamente pelagiano.

A Ilha de Justiça

Uma coisa é certa: você pode ser semipelagiano puro e ser completamente bem recebido no movimento evangélico de hoje. Isso significa simplesmente que o camelo enfiou seu focinho na tenda, não somente que está dentro da tenda - ele tirou o dono da tenda para fora da tenda. O evangelicalismo moderno olha hoje com suspeita para a teologia reformada, considerando-a como um cidadão da pior espécie. Alguém pode dizer: "Espere aí, R. C., não ponha todos dentro do pelagianismo; afinal, Billy Graham e outros estão dizendo que houve uma Queda, que precisamos da graça, que há pecado original, e nós semipelagianos não estamos de acordo com a declaração otimista a respeito da natureza humana feita por Pelágio". Isso é verdade. Não questiono isso. Mas é essa pequena ilha de justiça, essa pequena porção intocada de bondade no coração humano, ensinada pelo semipelagianismo, que daria ao homem a capacidade de mudar sua própria natureza e abraçar a oferta da graça, que faz com que o semipelagianismo seja chamado assim e não semi-agostinianismo.

A Bíblia diz que estamos mortos em nossos delitos e pecados. Que somos escravos do pecado e do príncipe da potestade do ar. Que quando ainda estávamos mortos Deus nos deu vida em Cristo. Não estávamos doentes, não estávamos debilitados: estávamos mortos! É isso o que a Bíblia diz: estávamos mortos moralmente.

Temos vontade? Claro que sim. Calvino disse: "Se por 'livre arbítrio' tu queres dizer a faculdade de escolher aquilo que tens capacidade em ti mesmo, de escolher aquilo que desejas, então nós temos livre arbítrio. Se por 'livre arbítrio' tu queres dizer a capacidade dos seres humanos caídos de voltar-se para Deus e escolher as coisas de Deus sem a prévia obra monergística da regeneração, então o 'livre arbítrio' é um termo exageradamente grandioso para aplicá-lo ao ser humano".

A doutrina semipelagiana do livre arbítrio que prevalece no mundo evangélico atual é um ponto de vista pagão que nega o poder do pecado sobre o coração humano. Essa visão subestima o domínio que o pecado exerce sobre nós.

Ninguém gosta de ver as coisas tão ruins como elas são realmente. A doutrina bíblica da corrupção humana é dura e severa. Em nenhum lugar ouvimos o Apóstolo Paulo dizer: "Sabe, é triste que o pecado esteja no mundo; de qualquer modo, ninguém é perfeito. Mas tenham bom ânimo, somos basicamente bons". Você consegue perceber que até mesmo uma leitura rápida da Bíblia nega o semipelagianismo?

Voltemos a Lutero. Qual é a origem da fé? A fé é um dom de Deus, significando que a justificação é uma dádiva que recebemos do Altíssimo? Ou é uma condição para a justificação, condição que devemos cumprir? É a fé uma obra? É a única obra que Deus permite que façamos? Recentemente estava conversando com algumas pessoas em Grand Rapids, Michigan. Estava falando sobre Sola Gratia, e uma das pessoas expressou seu desacordo: "Você está dizendo que é Deus que, soberanamente, regenera ou não o coração humano?"

Respondi: "Sim". Ele ficou ainda mais irritado. "Deixe-me perguntar-lhe algo", eu disse. "Você é cristão?"

"Sim", respondeu ele.

"Você tem amigos que não são cristãos?", indaguei.

"Claro que tenho", respondeu.

Então eu disse: "Por que você é cristão e seus amigos não são?Você é mais justo do que eles?". Ele não era tolo. Não iria dizer: "Claro que sou mais justo. Fiz a coisa certa e meus amigos não". Ele sabia onde eu queria chegar com essa pergunta.

E ele disse: "Oh, não, não".

"Diga-me por quê", retruquei. "Você é mais inteligente do que seus amigos?"

"Não", respondeu.

No entanto ele não queria admitir que a origem de sua salvação era a graça de Deus. Depois de uns quinze minutos, ele acabou dizendo: "Está bem, sou cristão porque fiz a coisa certa, sou mais justo e mais inteligente do que os meus amigos!"

No que essa pessoa está confiando para a sua salvação? Não em suas obras de forma geral, mas numa "obra" em particular. Ele é protestante, evangélico. Mas seu ponto de vista sobre a salvação é católico-romano.

A Soberania de Deus na salvação

Este é o ponto: A fé é uma parte do dom de Deus na salvação? Ou é a nossa própria contribuição para a salvação? Nossa salvação pertence a Deus ou depende, afinal de contas, de algo que fazemos ou deixamos de fazer? Aqueles que defendem que a salvação depende de algo que nós devemos fazer, negam a absoluta incapacidade humana causada pelo pecado e afirmam, desse modo, um semipelagianismo (que hoje é chamado "arminianismo"). Não é de admirar que mais tarde a teologia reformada condenaria o arminianismo em sua essência, porque este é simplesmente um retorno a Roma. O arminianismo faz da fé uma obra meritória, é uma rejeição à Reforma porque nega a soberania de Deus na salvação dos pecadores, a qual foi o princípio teológico e religioso mais arraigado no pensamento dos reformadores. O arminianismo era, aos olhos dos reformadores, uma renúncia ao Cristianismo do Novo Testamento. Afinal, confiar na própria fé não é diferente do que confiar nas próprias obras, e uma coisa é tão anti-cristã e sub-cristã quanto a outra. À luz do que Lutero diz a Erasmo em sua obra A Escravidão da Vontade, não há dúvidas quanto a isso.

E esse ponto de vista predomina hoje no meio evangélico. Assim como o semipelagianismo é uma versão ligeiramente modificada do pelagianismo, igualmente é o arminianismo, e não sei o que acontecerá com a Igreja. No entanto, de uma coisa eu sei: enquanto o arminianismo prevalecer, não teremos uma nova Reforma. Até que nos humilhemos e entendamos que nenhum homem é uma ilha e que nenhum homem tem uma ilha de justiça própria, que somos completamente dependentes da pura graça de Deus para a nossa salvação, não começaremos a descansar sobre a graça e não nos alegraremos na grandeza da soberania de Deus. Até que não rejeitemos a influência pagã do humanismo que exalta e coloca o homem no centro da religião, não teremos uma nova Reforma. Porque no coração do ensino reformado está a adoração e a gratidão dadas a Deus, unicamente a Deus. Soli Deo Gloria. Glória somente a Deus!

Fonte: Biblioteca de la Iglesia Reformada.

domingo, 12 de junho de 2011

UMA FÉ INCOMPREENDIDA

Esta é a tradução do Capítulo 1 do livro Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo Histórico: lo que es y lo que implica, no qual vários autores espanhóis debatem sobre a fé reformada neste início do século XXI. Vale a pena conferir a perspectiva destes irmãos hispânicos, em ensaios que lançam nova luz sobre os temas que desafiam e motivam a Igreja contemporânea. Querendo Deus, continuaremos apresentando, neste blog, os capítulos subsequentes desse excelente livro.

Por LUIS F. CANO GUTIÉRREZ.

Na cidade onde vivo, na Semana Santa milhares de pessoas de todas as idades vêm participar de festas religiosas. A igreja católica romana incita as multidões - com algumas honrosas exceções - a participar de procissões atrás de imagens de gesso e/ou beber até cair de embriaguez. É uma contradição? Sim, é.

Em certa ocasião, um amigo meu - motivado por uma amiga sua que dizia ser mais devota da Virgem do Pilar que da Virgem local - interpelou um sacerdote católico romano a respeito de como havia tantas "Virgens" no catolicismo, sendo que na Bíblia havia apenas uma. Esse sacerdote, incapaz de oferecer outra resposta, disse apenas: "Isso é uma questão de devoção". Mas, devoção a quem? Ao quê? Isso parece superficial? Sim, parece.

Poderíamos multiplicar os exemplos inúmeras vezes, mas seria expressar o óbvio.

Sim, a igreja de Roma não mudou em sua essência durante estes 500 anos desde a Reforma, o que não deveria surpreender ninguém, e se algum cristão bíblico ainda duvida disso, bastaria consultar o Catecismo da Igreja Católica, ou simplesmente consultar livros e sites católicos para certificar-se de que não houve mudança essencial no romanismo desde o século XVI até o presente. Porém...

Houve mudanças na resposta que nós, descendentes espirituais daqueles reformadores, devemos dar ao catolicismo romano?

E o que dizer da sociedade secularizada da qual fazemos parte? Na realidade, nossa sociedade é supersticiosa, imoral e hostil ao Evangelho.

São muitas as pessoas que me disseram não crer em Deus, mas sim na Virgem. O que isso quer dizer? E outros, que zombavam de Deus diante de mim, se encolerizavam se eu criticava o santo padroeiro de sua cidade. Tenho visto ateus defendendo dogmas católicos e religiosos zombando de Deus. Se falo em moral, sou retrógrado; se me calo, sou progressista.

É mais do que curioso que a maioria daqueles que são contrários à pena de morte é ao mesmo tempo a favor do aborto. Ao mesmo tempo em que cresce o amor pelos golfinhos e pelas baleias, aumenta o "amor" pela eutanásia. Surpreendente? Não, nem tanto. Mas...

Ante essa secularização blasfema, que espiritualidade estamos vivendo como reformados? Diante dessa tremenda invasão das trevas, nos conformaremos e cruzaremos os braços, ou levantaremos a tocha da Reforma?

Hoje nos encontramos em meio a uma batalha, e constantemente surgem novos desafios: clonagem humana; o uso de embriões para obtenção de células-tronco (matando-os); nova definição (ou melhor, desintegração) da família e da moral; casais "vivendo juntos" sem casamento; pessoas do mesmo sexo formando "casais"; injustiças sociais justificadas pelo Estado; crescimento do racismo; etc.

A Reforma teve uma voz profética cujo eco fez tremer impérios, mas... o que nós estamos fazendo hoje? Nossa voz parece um mero sussurro de desculpas, um murmúrio isolado e quase inaudível em meio a um mar de clamores.

Teólogos "evangélicos" que se embebedam da teologia papista, pastores de igrejas que se tornam ecumênicos e voltam para Roma, mestres e professores de teologia que se esquecem da Bíblia e abraçam o liberalismo teológico, cristãos que se tornam amigos do mundo e de seus prazeres e que se escondem atrás de suas estreitas doutrinas (Mt 5.14-16)... um povo sem o menor compromisso com a Palavra de Deus, é isso que está lotando nossas igrejas.

Essa é, talvez, uma das maiores características da nossa época. Não podemos ir a lugar algum porque não sabemos onde estamos, e não sabemos onde estamos porque perdemos de vista de onde viemos. Estamos perdendo nossa identidade.

Olhar para trás, para a Reforma do século XVI, não é voltar para trás, e sim avançar. É voltar à raiz para fortalecer o tronco, a fim de dar fruto para uma sociedade faminta. É puxar a corda do arco para lançar mais longe a flecha certeira.

O que descobriram, o que defenderam e o que proclamaram Martinho Lutero, João Calvino, Ulrich Zwinglio, John Knox, e antes deles Jan Huss, Jerônimo de Praga, John Wycliffe, que seja necessário, fundamental, para este século XXI?

DEFINIÇÃO

A Reforma do século XVI não foi obra de um ou de vários homens inquietos, nem o resultado de uma época tumultuosa disposta a mudanças sociais, políticas e religiosas, mas sim a atuação soberana de Deus, que, como nos tempos bíblicos, utilizou homens que Ele mesmo transformou em instrumentos da graça, bem como circunstâncias sociopolíticas que moldaram um ambiente propício. Deus utilizou Josias como instrumento para reformar Israel (2Rs 22.23). Utilizou até mesmo Nabucodonosor para castigar Judá (Jr 25.9ss). O Império Romano nada mais foi do que um mecanismo para facilitar a propagação do Cristianismo. Lutero, Calvino, os camponeses e príncipes da Alemanha, o povo e o consistório de Genebra, Carlos V e o papa, todos eles foram instrumentos de Deus para honra ou desonra. Porque Deus não utiliza a História. Deus faz a História. A História pertence a Deus.

O que devemos saber, portanto, é como Deus utilizou esses homens, esses reformadores, e até onde os guiou.

Lutero viu a luz, movido pelo peso de sua própria agonia espiritual, nas Escrituras: "O pecador é justificado pela fé, sem as obras, segundo as Escrituras". Daqui veio o tríplice lema: "Somente as Escrituras, Somente a Fé, Somente a Graça". Mais tarde, alguns, corretamente, acrescentaram: "Somente Cristo, Glória somente a Deus".

Essa descoberta, essa convicção, enfrentou o poderio de Roma e seus exércitos.

Com Lutero, embora nem sempre junto a ele, surgiram outros homens que o apoiaram, esquematizaram e expuseram a sã doutrina.

Lutero e seus companheiros não queriam reformar a igreja de Roma, mas sim libertar a única Igreja verdadeira do cativeiro papal e restituí-la ao status da Igreja primitiva.

Muito foi escrito sobre as desavenças entre os reformadores, mas realmente um único ponto foi fundamentalmente objeto de controvérsia: o sacramento da Ceia. Enquanto Lutero sustentava que o corpo e o sangue de Cristo estavam presentes em, com e sob o pão e o vinho (consubstanciação), Zwinglio defendia que o pão e o vinho eram meros símbolos representativos. Calvino tomou uma posição intermediária entre ambos.

No entanto eles estiveram de pleno acordo em pelo menos três coisas: primeiro, na oposição à transubstanciação defendida por Roma; segundo, os sacramentos são meios de graça; terceiro, era necessário continuar dialogando e não romper a comunhão, como aconteceu com Roma e com os reformadores radicais.

Além da Ceia, não houve entre eles nenhuma doutrina que fosse motivo de dissenção.

Foram seus respectivos discípulos que, continuando o desenvolvimento de suas linhas teológicas, aprofundaram a separação, e então começaram a ser conhecidos como luteranos e calvinistas, embora, para Roma, todos os hereges são luteranos. Depois da morte de Zwinglio, seu sucessor em Zurique, E. Bullinger (1504-1575), manteve uma posição ecumênica entre luteranos e calvinistas, que, mesmo com suas peculiaridades, pode-se apreciar na Primeira Confissão Helvética de 1536. Mais tarde, porém, uniu-se a Genebra e às demais igrejas suíças no "Consenso de Zurique".

CALVINISMO

A teologia da Reforma, ou teologia reformada, passou a ser sinônimo de calvinismo devido à profunda influência de João Calvino, o maior teólogo que a Igreja já produziu desde os tempos do Apóstolo Paulo. Mas o calvinismo, em seu sentido mais amplo, já existiu antes de Calvino. Calvino foi calvinista sem sabê-lo, assim como Lutero e outros reformadores.

Recordemos, por exemplo, que Lutero defendeu a predestinação com tanto ardor quanto Calvino, ou mais ainda. Calvino, por outro lado, não incluiu a predestinação em sua "Confissão de Genebra" (1536). Muito tempo antes, a Confissão Valdense de 1120 já dizia que "Deus salva da corrupção e da condenação aqueles que Ele escolheu antes da fundação do mundo, não por nenhuma característica de fé ou santidade que Ele tivesse previsto neles, mas sim pela misericórdia de Jesus Cristo, o Filho de Deus, deixando os demais, segundo a irrepreensível razão de Sua soberana vontade e justiça".

O calvinismo define e defende a Reforma do século XVI, sendo a sua projeção mais correta; por isso podemos chamar o calvinismo de fé reformada, ainda que tal definição não satisfaça alguns.

Em 1536 Calvino publicou a primeira edição da sua Instituição da Religião Cristã (também conhecida como "Institutas"). Naquela época ele tinha 27 anos de idade e ainda não tinha chegado em Genebra. Fez constantes revisões e reedições de sua obra, até a última versão de 1559, pois como disse R. S. Wallace, Calvino "não considerava que a sua teologia tivesse alcançado um caráter definitivo, e com frequência adotava um tom pastoral". Essas duas afirmações serão tratadas mais adiante.

Influenciados por Calvino, mas independentemente dele, podemos assinalar ilustres personagens e confissões de fé daqueles tempos.

Guido de Brés (1522-1567), pastor de uma igreja em Doornik (Tournai em francês), Países Baixos, escreveu 37 artigos de fé para uso e instrução de sua congregação, mas que, após o seu martírio, foram aceitos por uma reunião eclesiástica em Wezel (1568), passando a ser conhecidos como "Confissão de Fé dos Países Baixos". Ainda que de Brés teve contato com Calvino, este foi esporádico e não muito influente. Para escrever seus 37 artigos, ele serviu-se mais da Confissão Galicana (1559), esta sim influenciada diretamente por Calvino.

Em 1563 Ursino (1534-1583) e Oleviano (1536-1587) escreveram o Catecismo de Heidelberg na Alemanha, em resposta ao concílio de Trento e para instrução de suas igrejas. Composto em forma de perguntas e respostas (129 em total) e dividido em 52 domingos (seções) para ser utilizado ao longo de um ano inteiro. Mesmo abertamente reformado (calvinista), tentou aproximar-se do luteranismo.

John Knox (1514-1572) também foi reformado, ainda que com um toque luterano. Ele deixou sua herança reformada escrita na Confissão Escocesa (1560), logo substituída pela Confissão de Fé de Westminster (1640).

Esses exemplos são suficientes para perceber como a doutrina reformada espalhou-se pela Europa, influenciou diversos grupos independentes e iluminou novos convertidos. Devemos lembrar que, ainda que na Espanha a Reforma foi esmagada pela Inquisição, já em 1597 Cipriano de Valera traduziu a Instituição da Religião Cristã ao idioma castelhano (espanhol), dedicando-a "a todos os fiéis da nação espanhola que desejam a vinda breve do Reino de Jesus Cristo", e afirmando que o leitor "verá claramente que a doutrina contida nesta Instituição é ortodoxa, católica [isto é, universal] e cristã", e que "Há alguns anos que esta Instituição tem sido traduzida para diversos idiomas, com grandes resultados para todos aqueles que amam a verdade e desejam progredir no conhecimento de Cristo".

Quando, pois, nos denominamos calvinistas, não o fazemos no sentido de 1Co 1.12, tornando-nos seguidores de homens e dividindo a Igreja, mas tão-somente fazendo distinção de outras visões cristãs, e tentando atrair, com humildade, toda a Igreja para uma visão superior de Deus.

ARMINIANISMO VERSUS CALVINISMO

Jacó Armínio (1560-1609), pastor e professor reformado em Leyden (Países Baixos), se opôs abertamente a Teodoro Beza (1519-1605), sucessor de Calvino, e a Francisco Gomarus (1563-1641), colega em Leyden e calvinista supralapsariano.

Armínio tinha medo de que uma interpretação calvinista poderia fazer de Deus o autor do pecado e do homem um mero fantoche. Seu temor o levou a colocar a eleição depois da graça, isto é, afirmar que Deus decretou salvar os pecadores que se arrependem e creem em Cristo, e sabendo quem serão eles, os elege. Em outras palavras, segundo Armínio, Deus "escolhe" aqueles que já O haviam escolhido. Essa opinião levantou uma amarga polêmica. Ele mesmo pediu um debate público, mas não pôde comparecer a ele devido à sua morte prematura.

É interessante observar aqui que Armínio considerou-se até o fim de sua vida como um calvinista autêntico, e jamais teria imaginado ser o líder de um movimento anticalvinista.

Mas em 1610, um ano depois de sua morte, um grupo de seus discípulos escreveu um protesto contra a Confissão Belga e contra o Catecismo de Heidelberg, que eram a expressão oficial das doutrinas das igrejas holandesas.

No dia 13 de novembro de 1618 formou-se um sínodo nacional em Dort, Holanda, com delegados enviados de todo o país, bem como da Alemanha, Suíça e Inglaterra. O sínodo foi encerrado no dia 09 de maio de 1619, respondendo com rejeição total ao "protesto arminiano" e promulgando os Cânones de Dort, também conhecidos como os Cinco Pontos do Calvinismo.

Os cinco pontos do calvinismo não são, portanto, uma invenção, mas antes uma defesa diante de uma invenção-distorção doutrinária, como era o arminianismo.

Em certas ocasiões, desde então, o arminianismo tem se aproximado perigosamente ao pelagianismo, negando o pecado original, fazendo de Adão somente um representante natural e não pactual da Humanidade, e proclamando que o ser humano possui, mesmo depois da Queda, "poder ou habilidade natural para fazer algo espiritualmente bom, de tal modo que pode, de alguma forma, preparar-se para voltar-se para Deus e fazer a vontade de Deus". Mas na atualidade o arminianismo não passa de um semipelagianismo, ou semiarminianismo ou wesleyanismo.

Atualmente, entre os evangélicos, dificilmente poderíamos encontrar um arminianismo puro ou original, exceto, talvez, no movimento Filadélfia, e, de maneira mais suavizada, no Exército de Salvação, nos metodistas, etc.

Essa polêmica, ao longo das épocas até os nossos tempos, às vezes tem crescido até criar situações dramáticas, feridas emocionais e "teológicas" difíceis de curar, e outras vezes, quando o estudo teológico é negligenciado, só há indiferença e ignorância a esse respeito no meio evangélico. Assim tem sido na Espanha [e muitas vezes, no Brasil].

No ano 1964 publicou-se [na Espanha] o livro Spurgeon, um Príncipe Esquecido, tradução resumida do mesmo livro em inglês, de autoria de Iain Murray. Nele o autor apresenta a pessoa de Charles Haddon Spurgeon e faz uma defesa de sua doutrina calvinista. C. H. Spurgeon, pastor batista, o "Príncipe dos Pregadores", era calvinista?! Alguns surpreendidos leitores fizeram-se essa pergunta. Sim, certamente! Para o mundo evangélico espanhol, essa foi uma grande descoberta!

No ano seguinte foram publicados [igualmente na Espanha] dois livros opostos em suas origens e em seus objetivos. Por um lado, Não há outro Evangelho, de Charles Spurgeon, e de outro lado, Escolhidos em Cristo, de Trenchard e Martinez, dois reconhecidos e respeitados líderes evangélicos espanhóis.

O primeiro é uma seleção de sermões do conhecido pregador e pastor inglês, que mostra claramente sua doutrina calvinista. Já na introdução ele afirma: "Recorremos com frequência à palavra calvinismo porque essa palavra designa aquela parte da verdade divina que ensina que a salvação é somente pela graça. Cremos firmemente que o que comumente é chamado calvinismonão é, nem mais nem menos, do que aquele saudável e antigo Evangelho dos puritanos, dos mártires, dos Apóstolos e do Senhor Jesus Cristo". Nessa obra Spurgeon trata de temas como "Livre-arbítrio: um escravo", baseado em Jo 5.40; "A incapacidade humana", em Jo 6.44; "A soberania de Deus", "A redenção limitada", e assim durante 29 sermões, cada um mais contundente e bíblico.

O outro livro, Escolhidos em Cristo, é uma análise da doutrina da eleição em Cristo, com uma seção histórica no final, na qual tenta-se contestar a doutrina calvinista e defender-se dela.

Comentar esse livro foge ao escopo deste artigo, que somente o cita como exemplo dos medos e mal-entendidos que ocorrem na mente dos evangélicos que rejeitam o calvinismo.

O arminianismo, resumidamente, ensina o seguinte:

1. O ser humano nasce num estado de apostasia e depravação, afastado da graça salvífica;

2. Deus determinou salvar aqueles que haveriam de crer e de perseverar até o fim;

3. Cristo morreu por todos e por cada um dos pecadores, para assim poder redimir a todos;

4. Sem graça, não há salvação; a graça, porém, pode ser rejeitada;

5. Os que creem em Cristo têm graça suficiente para vencer o pecado.

Tentarei ser o mais justo e imparcial possível, mas a conclusão que chegamos de acordo com a doutrina arminiana é que o homem, mesmo caído, ainda é capaz e livre para levantar-se e tomar para si a salvação que Deus providenciou para todos e cada um dos seres humanos, já que Ele havia decidido salvar aos que previu que iriam arrepender-se e crer. A estes Ele enviaria o Espírito Santo para efetivar a obra da salvação, mas mesmo assim o Espírito pode ser resistido, rejeitado, inclusive no último momento, e assim a salvação pode ser perdida no final. O homem, mesmo nascido de novo e feito uma nova criatura, ainda assim pode perder o novo nascimento (?), cair da graça e perder a salvação.

Precisamos questionar tudo isso, porque:

1. Tudo o que o arminianismo credita à capacidade humana, diminui o poder, a soberania e a glória de Deus.

2. O arminianismo torna Deus um mero árbitro judicial, mas quem realmente obtém a salvação é o próprio ser humano, ao cumprir com as expectativas e condições divinas.

3. O arminianismo faz Deus depender de seu conhecimento prévio e não de sua livre e soberana vontade, pois somente pode salvar aqueles que Ele viu que irão se salvar.

4. De acordo com o arminianismo, Deus não poderá salvar, nem exercer a sua misericórdia, senão somente declarar a salvação daqueles que se salvam.

5. O arminianismo declara que a morte de Cristo é meramente representativa, e não efetiva (somente será efetiva naqueles que creem, enquanto eles creem); põe o ser humano no caminho, mas não é o caminho; abre a porta para a salvação, mas não é a porta (Jo 14.6; 10.9). Para que a morte de Cristo tenha algum valor diante do Pai, o pecador deve aceitá-la.

6. Se a graça salvífica é para todos, já não é graça. Se a salvação depende, afinal, da vontade do pecador, sem nenhuma intervenção divina na vontade humana, para que enviar o Espírito Santo ao mundo?

Em resposta a tudo isso, o calvinismo declara:

1. Toda a natureza humana está afetada e arruinada pela Queda (depravação total do ser humano).

2. Deus elege alguns, segundo a sua soberana vontade, para dar-lhes o arrependimento e a fé, e, portanto, a salvação (eleição incondicional).

3. Para isso, Cristo morre no lugar do pecador (morte substitutiva), pagando totalmente a dívida do pecado (expiação limitada).

4. Essa confiança, posta na cruz, é gerada pela obra do Espírito Santo no coração do pecador (graça irresistível).

5. Todos os santos, escolhidos e crentes, estão seguros por toda a eternidade, nas mãos e nas promessas de Deus (perseverança dos santos).

De modo que precisamos dizer ao arminianismo e aos detratores da fé reformada que...

Sim, o ser humano nasce com certa graça ou amor de Deus que o capacita a fazer boas obras entre os homens e para os homens, mesmo que diante de Deus não tenham valor nenhum, nem para a salvação. O homem não é tão mau quanto poderia ser, porque Deus não permite que o seja.

Sim, Deus conhece o futuro e o fim de cada um, porque Ele é o doador e o fazedor desse fim.

Sim, a salvação deve ser oferecida a todos. Cristo morreu por todos os tipos de pessoas, sem distinção de raça, cultura, sexo ou gravidade do pecado.

Sim, o Espírito Santo é resistido por uma multidão de pecadores que não querem arrepender-se. Todos são indesculpáveis, assim como cada eleito, até Deus lhe proporcionar um novo coração.

Sim, cada crente deve desenvolver a sua salvação com temor e tremor, para não perder de vista o Senhor e a alegria da salvação.

Não desejei entrar num debate bíblico, apresentando versículos que comprovam o que tenho dito. Não é este o momento, mas há ampla bibliografia que pode ajudar e aprofundar o assunto.

O problema, de ontem e de hoje, não é se a soberania de Deus é maior do que o amor de Deus, ou se o amor de Deus é maior do que a Sua soberania; pois como dizia Spurgeon:

A questão não é se Cristo é poderoso para salvar os que se arrependem, mas que Cristo pode fazer com que os homens se arrependam. Ele levará ao Céu aos que creem, sim, mas é ainda mais poderoso para dar aos homens novo coração e operar a fé neles. Ele é poderoso para fazer com que o homem que odeia a santidade, ame-a; e fazer com que o zombador de Seu Nome dobre os joelhos diante d'Ele. (...) Ele é poderoso para guardar seu povo santo depois que o tornou santo, e para preservá-lo em temor e amor, até a consumação da salvação no Céu.

HIPERCALVINISMO

O hipercalvinismo, como tal, quase não existe mais hoje, mas é muito utilizado pelos inimigos do calvinismo, como se fosse um representante aceitável deste, e assim acusar o calvinismo de um extremismo do qual sempre foi inocente.

Vamos aos fatos. John Gill (1697-1771), nos dois volumes de sua obra The Cause of God on Truth, dizia que "os homens não são responsáveis por vir a Cristo ou crer n'Ele para a salvação de suas almas, porque não podem fazê-lo sem a graça especial de Deus". E também: "Os não-regenerados podem ser unicamente chamados a uma fé histórica" (vol. 2, pp. 56-57). Com "fé histórica" ele referia-se meramente a uma aceitação dos fatos, não à fé salvífica. "O Evangelho não faz promessas aos 'homens mortos', mas somente a pecadores sensíveis" (vol. 1, p. 63), referindo-se a esses "pecadores sensíveis" como os eleitos que haviam recebido uma revelação interior.

Como sempre, os discípulos vão mais longe do que seus mestres. William Humtington (1745-1813) dizia que todo arminiano, incluindo John Wesley, está no inferno, e que "fazer hipócritas é a obra desta geração (...) não creio que exista um só ministro espiritual em Londres, e nem mesmo em toda a nação". Seu hipercalvinismo o levou a negar os Dez Mandamentos como regra de vida para os crentes, mergulhando no antinomismo.

James Wells (1803-1872), batista particular, levou adiante uma grande polêmica durante vários anos com seu contemporâneo C. H. Spurgeon, que acusava de pregar um "calvinismo mestiço". Acreditava sinceramente que a sua visão particular do calvinismo era a única correta, e que afastar-se dela era afastar-se das Escrituras. Daí, segundo ele, Spurgeon estava errado.

Hoje ainda pode-se encontrar alguns que, dizendo-se calvinistas, não consideram necessária a evangelização, afirmando que não devemos proclamar o Evangelho aos perdidos, mas simplesmente esperar em oração.

Os argumentos hipercalvinistas podem ser resumidos da seguinte forma:

1. Deus escolheu alguns para a salvação e a outros para a condenação: é a dupla predestinação do supralapsarianismo. Logo Deus decretou que todos cairiam para, dentre eles, escolher os que seriam salvos.

2. O Evangelho, portanto, é somente para os eleitos e por meio do Espírito.

3. A fé é somente a evidência de que pertencemos ao número dos eleitos, de outro modo a fé seria uma obra.

4. O pecador não tem responsabilidade; convidar o pecador ao arrependimento é hipocrisia, é a negação do decreto de Deus e, em última análise, uma perda de tempo.

O calvinismo responde ao hipercalvinismo do mesmo modo como responde a aqueles que o acusam injustamente desse extremismo.

Em primeiro lugar, os Cânones de Dort ensinam que...

...todos quantos são chamados pelo Evangelho, são chamados com toda a sinceridade. Pois Deus mostra formal e verdadeiramente em sua Palavra aquilo que lhe é agradável, a saber: que os chamados venham a Ele. Promete também sinceramente, a todos os que venham a Ele e creiam, a paz da alma e a vida eterna.

A culpa de que muitos, sendo chamados pelo ministério do Evangelho, não se acheguem nem se convertam, não está no Evangelho, nem em Cristo, quem oferece a Si mesmo pelo Evangelho, nem em Deus, que chama pelo Evangelho e concede diferentes dons aos chamados; mas [a culpa está] naqueles chamados que, sendo descuidados, não aceitam a Palavra da Vida...

Em segundo lugar, nem os reformadores nem os puritanos jamais ensinaram o hipercalvinismo. Fuller escreveu que "nenhum escritor eminente pode ser mencionado antes deste século que tivesse negado que é dever dos homens em geral crer no Senhor Jesus Cristo para a salvação de suas almas".

Terceiro, à luz das Escrituras, devemos rejeitar a fé como uma obra ou mérito humano; mas também a fé como mera evidência, e buscar a fé bíblica salvífica que diz ao pecador: "Venha e creia".

Na introdução a um sermão baseado em 1Tm 2.3,4, Spurgeon dizia (e como eu gostaria de poder transcrever todo aquele sermão):

Neste texto encontram-se dois lados do edifício da verdade. (...) É certo que quando lemos que Deus quer que todos os homens sejam salvos, isso não significa que Ele fará isso por força de algum decreto ou propósito divino, porque, se o fizesse, então todos os homens seriam salvos. (...) Haverá um terrível inferno, do mesmo modo que um glorioso Céu e não há nenhum decreto contrário a esses fatos. (...) O texto não diz que alguns (...) ou que "nem todos os homens serão salvos" (...). Como é meu desejo e desejo de vocês, é o desejo de Deus que todos os homens sejam salvos, porque Ele não é menos benevolente do que nós. O tolo pode fazer perguntas que o sábio não pode responder (...) não sejamos tolos. (...) Não liberta todos os oprimidos (...) não sara todos os enfermos (...) não torna felizes a todos. (...) Logo você saberá o que é a dúvida e a dificuldade e a amargura sobre a sua alma, se quiseres saber o incognoscível (...). Aqui está o texto, e creio que é o desejo de meu Pai que todos os homens sejam salvos (...) mas também sei que não salvará a homem nenhum exceto se perdoa seus pecados e os chama a Ele mudando totalmente o propósito de seus corações.

Em quarto lugar, o hipercalvinismo não sabe discernir entre a vontade secreta e a vontade revelada de Deus, entre o decreto e o plano realizado, deduzindo e conjeturando sobre o dever do homem, sobre o que pensam que Deus quer, em lugar de fazer o que Deus ordena em sua Palavra. Spurgeon dizia:

Tenho um grande respeito à ortodoxia, mas minha reverência pela inspiração é muito maior. Preferiria cem vezes aparentar ser incoerente comigo mesmo do que ser incoerente com a Palavra de Deus.

Deus opera na História tal como decretou em seus planos eternos. Primeiro, cria; segundo, permite a Queda; e depois elege alguns para si mesmo (salvação), deixando o resto em seu próprio estado.

Em quinto lugar, o homem é responsável pelo seu pecado e, portanto, é responsável pela sua incredulidade, pela sua rejeição a Cristo. John Duncan disse certa vez que o arminianismo é uma porta sem casa, e que o hipercalvinismo é uma casa sem porta.

PSEUDOCALVINISMOS

Já afirmamos que Calvino nunca quis pensar em sua doutrina como algo completo; por isso esteve revisando e reeditando constantemente a sua Instituição. Da mesma forma pensaram os outros reformadores e teólogos: "a doutrina reformada sempre se reformando".

Os grandes debates teológicos, as constantes aparições de Confissões de Fé, as escolas e centros de pensamento são provas de que o verdadeiro cristianismo sempre está em busca da verdade, ainda que já a tenha. O mandato de analisar as Escrituras (Jo 5.39; At 17.11) é dever de cada crente, mas também é prazer, é alegria e culto a Deus. Que maior adoração a Deus que a de atender com temor, estudar com devoção e praticar com zelo a sua Palavra! Mas essa assimilação não é cega ou obtusa, mas sim lógica e racional. A verdade não é somente para o coração, também é para a mente.

Nós, reformados, não temos, nem queremos, um papa que nos obrigue a seguir o que não vemos; rejeitamos os teólogos que acreditam ser os únicos detentores da verdade; e não gostamos de igrejas que afirmam ser as únicas igrejas verdadeiras sobre a Terra.

De vez em quando surgem alguns que acreditam ter recebido novas revelações, ou ter descoberto uma verdade que estava escondida: são os escolhidos para despertar e reavivar o povo de Deus. Mas na verdade são os lobos dos quais fala o Senhor (Mt 7.15), ou Paulo (At 20.29ss), ou Pedro (2Pe 2.1ss).

A verdade de Deus é ao mesmo tempo tão poderosa e tão frágil! Nela se refugiam os filhos de Deus para encontrar consolo, esperança e força, mas também é onde procuram refúgio os mercenários da religião, os mentirosos e o próprio diabo, que é capaz de utilizar as Escrituras contra o Filho de Deus (cf. Mt 4) e contra os filhos de Deus.

Certa vez um membro da seita Hare Krishna tentou convencer-me de que a Bíblia, que ele mesmo citava com a ajuda de um livro, ensinava a reencarnação e o vegetarianismo.

Alguém já disse que é possível utilizar as Escrituras para demonstrar qualquer tipo de erro.

Mas não é preciso ir tão longe com exemplos extremos. Entre os chamados evangélicos, e mesmo entre alguns que se dizem reformados, teremos os que creem ser líderes messiânicos, os que creem que os judeus não precisam da mensagem do Evangelho, os que creem que é necessário continuar fazendo sacrifícios, ou voltar à Lei de Moisés, ou que devemos guardar o sábado.

Em meio à luta pela verdade, alguns se deixam levar pelo zelo sem entendimento e começam a defender com furor ideias tão passageiras como o uso de certas roupas na igreja, que a tecnologia é demoníaca, que o único texto aceitável para o Novo Testamento é o Texto Recebido, etc. Calvino dizia que o zelo sem entendimento é como uma espada nas mãos de um louco.

O verdadeiro reformado pode e deve discernir entre aquilo que é fundamental e o que não é, e colocar as prioridades da nossa época na ordem correta. Talvez, e somente talvez, alguém possa chegar à conclusão, depois de muito estudo e oração, que alguma dessas coisas que mencionei possa estar certa; ainda assim, jamais deve colocá-las acima das verdades essenciais à salvação e à santificação. Se alguém quiser, nesta época e neste país, vestir-se de determinado modo na igreja, que o faça, porém Deus não desculpará uma perda de esforço em ativismos inúteis quando há tantas almas que se perdem.

Os reformadores e os movimentos que surgiram depois deles tiveram suas peculiaridades, mas perceberam e entenderam o tempo em que viveram, e agiram com urgência; algumas vezes lutando contra o papado, ou contra a Lei de Conformidade inglesa, ou contra o liberalismo e o secularismo da Igreja, mas jamais utilizaram sua espada, a espada do Espírito, desperdiçando-a na luta contra sombras, moinhos de vento, preconceitos ou questões pessoais.

JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ SOMENTE

482 anos depois de Lutero afixar suas 95 Teses na Igreja de Wittenberg, a Igreja Luterana Mundial, representada por Christian Krause, e o cardeal Edward Cassidy, presidente do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos (uma representação da igreja de Roma), firmaram em Augsburgo (ironicamente, a Confissão Luterana redigida por Phillipe Melanchton leva o nome desse lugar) um documento denominado "Declaração Conjunta sobre a Justificação", uma declaração que satisfaz a muitos, desnorteia outros, mas que não convence a ninguém.

Outra ironia a respeito disso. Dois meses antes dessa assinatura, o cardeal William Baum apresentou o "Manual" (Enchiridion), que tenta atualizar e revitalizar as indulgências, contra as quais Lutero lutou com sua "justificação pela fé somente". Outra vez a astúcia de Roma levou a melhor sobre a candidez protestante.

Certa revista cristã apresentou um curioso questionário de dez perguntas sobre a justificação pela fé que mostrava aos leitores o pouquíssimo conhecimento dos crentes a respeito dessa doutrina. Eu mesmo apliquei o questionário a alguns evangélicos, e muito poucos o responderam de modo 100% protestante.

O que Lutero queria dizer e o que queremos dizer nós, hoje? Nossa resposta mudou? A resposta da igreja de Roma mudou?

O "Catecismo da Igreja Católica" diz (geralmente citando o Concílio de Trento): "A justificação engloba, por um lado, o perdão dos pecados, a santificação e a renovação do homem interior. (...) A justificação é concedida mediante o batismo, sacramento da fé. Nos torna semelhantes à justiça de Deus que nos faz interiormente justos pelo poder da sua misericórdia. (...) A justificação implica a santificação de todo o ser. A graça [de Deus] é uma participação na vida de Deus. (...)". O atual papa Bento XVI, Joseph Ratzinger, que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e que foi presidente da comissão que preparou o projeto do catecismo, disse que "se alguém não é justo, também não é justificado".

Lutero afirmou, com base em Rm 3.28:

Ao excluir nitidamente todo tipo de obras, devemos saber que é somente a fé que justifica; e quem quiser referir-se com clareza a esta exclusão das obras terá que afirmar que somente a fé - e não as obras - é a que justifica. É uma conclusão obrigada pela realidade e pela linguística. (...) Além disso, eu não tenho sido o único nem o primeiro a afirmar que somente a fé justifica; antes de mim Ambrósio, Agostinho e muitos outros também afirmaram o mesmo. E deverão afirmar também - sem nenhuma outra possibilidade - todo aquele que esteja disposto a ler e entender Paulo. (...) Seria muito interessante, melhor e mais cômodo se as pessoas aprendessem que podem justificar-se pelas obras junto com a fé! Seria o mesmo que dizer que não foi somente a morte de Cristo que nos redimiu dos pecados, mas também as nossas obras!

Mais tarde, Phillipe Melanchton (que colaborou com Lutero, entre outras coisas, na tradução da Bíblia para o alemão) disse na Confissão de Fé de Augsburgo, no artigo IV: "Também ensinamos que não somos justificados diante de Deus em virtude de nossos méritos e obras, mas que somos justificados gratuitamente em virtude de Cristo, pela fé, crendo que Cristo morreu para expiar os nossos pecados e que nós recebemos de Cristo o perdão dos pecados. Pois Deus credita a nossa fé como justiça."

H. C. G. Moule disse que "a justificação pela fé é a aceitação do culpado perante Deus em razão de Cristo, em quem depositamos nossa confiança (...). Não é uma virtude, não é um mérito, mas é um processo correto".

Quando dizemos, então, que somos justificados pela fé somente, estamos dizendo que:

1. Essa justificação deve ser entendida em sentido forense: "Uma declaração diante do tribunal de Deus", como disse o Dr. David Martyn Lloyd-Jones.

2. A justificação não nos torna melhores, nem um pouco.

3. Realmente somos salvos pelas obras, mas pelas obras de Cristo, não nossas.

4. A fé é a causa instrumental pela qual o crente une-se a Cristo.

5. A fé não tem valor nenhum por si mesma, se não está posta em Cristo. O mérito da justificação não está na fé, mas no objeto no qual a fé descansa, isto é, Cristo. Todos os seres humanos em todas as religiões afirmam crer em algo, mas isso não os salva. Somente Cristo salva.

6. A fé salvífica, que leva a Cristo, a fé bíblica não é inata no ser humano, nem produto de nenhuma ação humana, mas sim um presente não merecido da graça soberana de Deus (Ef 2.8).

7. Quaisquer coisas acrescentadas à fé, visando a salvação, seja batismo, guarda do sábado ou outras obras meritórias, mandatos ou obrigações, invalidam a fé. Deus não precisa de rituais humanos para salvar. Não merecemos nada pelo ato de aceitar tudo.

NÃO POR OBRAS, MAS COM OBRAS

Numa carta pessoal a Phillipe Melanchton (01 de agosto de 1521), Lutero dizia a seu amigo: "Ainda que peques e peques fortemente, confia e alegra-te mais fortemente ainda em Cristo, vencedor do pecado, da morte e do mundo".

Essas palavras, tiradas de seu contexto firmemente cristocêntrico, têm sido utilizadas por católicos e outros antiprotestantes para nos acusar de imoralidade e de rejeição às boas obras.

Desgraçadamente, a isso devemos acrescentar o mau exemplo de países e pessoas que, dizendo-se cristãos ou protestantes, vivem vidas permissivas e moralmente reprováveis. Constantemente ouvimos falar de líderes caídos, de igrejas sem disciplina bíblica, e, pior ainda, sem sinais de arrependimento, o que faz com que em alguns casos seja impossível discernir entre o "povo de Deus" e o resto do mundo.

Nos últimos anos surgiram alguns que, por meio de livros ou de outros meios, têm defendido a ideia de que é possível ser cristão sem ser discípulo, ou seja, aceitar Jesus como Salvador mas não como Senhor, e assim ser salvo sem santificação. Vemos hoje muito evangelismo no qual basta uma declaração de Jesus como Salvador, uma decisão externa, uma oração superficial recitada, para nunca mais aprofundar-se no assunto. Como escreve Juan Kessler sobre a situação na América Latina:

Antes, devido ao custo social, as pessoas pensavam três vezes antes de responder a um convite evangelístico. Agora pessoas se aproximam do púlpito com a mesma facilidade com que vão ao altar católico para receber a hóstia. Há fortes indícios que em ambos os casos muitos acreditam receber a Cristo de forma automática. Antes as pessoas se comprometiam seriamente com o Senhor, mas agora... as pessoas buscam simplesmente uma bênção ou um milagre ou algum benefício para si mesmas.

A Reforma foi radicalmente diferente disso, e portanto a doutrina reformada ensina valores muito diferentes.

Martinho Lutero disse que "é impossível separar a obra da fé, tão impossível quanto separar o calor e a luz do fogo".

A Palavra de Deus claramente ensina que a salvação não é pelas obras, mas não é sem obras (Tg 2.14), que sem santidade ninguém verá o Senhor (Hb 12.14); que é o Senhor quem nos salva; que sem o senhorio de Cristo sobre a vida do crente não há salvação possível. A confissão que salva é a de que Jesus é Senhor e não somente Salvador (Rm 10.9).

Temos que negar que existam vários tipos de cristãos: carnais, espirituais, perfeitos, etc. Num breve mas completo exame sobre o homem carnal, Ernest C. Reisinger se opõe energicamente a classificar os cristãos. Analizando 1Co 3.1-4, ele diz:

Reconheço que há bebês em Cristo. As marcas do cristianismo não tornam-se igualmente evidentes em todos os cristãos. O progresso no crescimento do cristão não é constante nem ininterrupto.

Ou seja: processo, não tipos.

A. W. Tozer disse:

O Senhor não salvará aqueles a quem não pode mandar.

Tratando do tema da justificação, o Catecismo de Heidelberg (1563) faz a seguinte pergunta: "Mas essa doutrina não torna os homens negligentes e ímpios?", e responde: "Não, porque é impossível que não produzam frutos de gratidão aqueles que pela fé verdadeira têm sido enxertados em Cristo".

Poderíamos continuar trazendo citações que demonstram que, historicamente, a Igreja cristã e reformada tem interpretado corretamente a santificação e a vida cristã.

Quando João escreve sua versão do Evangelho, começa, e assim será em todo o livro, enfatizando a divindade de Jesus. Ele diz que "Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de verdade" (Jo 1.14). Assim como Pedro (2Pe 1.16-18), João afirma que viu em Jesus algo mais do que uma pessoa, ou seja, viu a sua glória, seu peso divino, e dessa plenitude toma todo crente (1.16; 12.45,46). Após a conversão, após a visão de Deus, ninguém - ninguém - continua igual ao que era antes. Isaías acreditou que iria morrer ao ver a glória de Deus, para então dizer a Deus: "Eis-me aqui! Envia-me!" (Is 6.5-8). Paulo, em seu caminho para Damasco e após a sua convicção de pecado, ao encarar Cristo em sua conversão, diz tremendo e temeroso: "Quem és tu, Senhor?" (At 9.5). Em nossas vidas, hoje, não devemos esperar nada menos.

É fato que os países protestantes têm sido mais liberais, mas isso não significa que devem ser mais imorais. O Evangelho, e, portanto, a Reforma, têm atraído, dentre seus muitos benefícios, a liberdade de consciência, na qual cada um é livre e ao mesmo tempo responsável pelo seu pensamento e obra, mesmo que às vezes alguns caiam em excessos perigosos. Por outro lado, na igreja de Roma e em cada canto onde ela domina, tem existido uma atitude paternalista, que leva à repressão e ao medo, que faz o ser humano esconder e desculpar seu pecado.

O ECUMENISMO

John Wesley costumava dizer: “Não há nada mais anticristão do que um cristão solitário”.

Talvez alguém considere tal opinião muito extremista, mas ninguém pode negar que nada somos sem os demais (1Co 12.20-22).

Ao longo de nossa história, descobrimos “cristãos” que não encontraram igrejas ao seu modo, ou as sentiram muito mundanas em práticas ou muito liberais em seu credo, e preferiram viver afastados, como ermitões, enviando de vez em quando suas mensagens ao mundo exterior.

Esses são poucos, mas há muitos “cristãos” que, mesmo tendo claro para si mesmos o que significa ser cristão, não são tão claros assim a respeito dos outros, confundindo-os e confraternizando com qualquer um que afirme ter uma “experiência religiosa”, ou que mencione Jesus ou cite vagamente as Escrituras, esquecendo que nos tempos bíblicos já haviam os “Simões” (At 8.9-24), os Judas (Mt 26.14ss) e os diabos (Mt 4.6).

Devemos nos fazer algumas perguntas: O que significa a unidade dos cristãos ou o ecumenismo? Qual é a sua base e quais são os seus benefícios? Até onde devemos chegar? Essas perguntas devem ser respondidas, e somente a Reforma pode fazê-lo.

O Senhor tem nos chamado à comunhão consigo mesmo e, por meio d’Ele, à comunhão com todos os que Lhe pertencem (Ef 4.2-6).

Numa correta exposição sobre esse assunto, José Grau faz uma pergunta aos entusiastas de Jo 17.21: “Que todos sejam um...”, e diz: “Por quem Cristo estava orando?”, e responde: “O Senhor orou de maneira bem definida pelos crentes, e somente pelos crentes (Jo 17.9,11). Orou por uma unidade de natureza soteriológica, formada por crentes apostólicos, bíblicos (v. 20)”. Estamos obrigados a marcar uma linha, pois nem todo aquele que diz “Senhor, Senhor” pertence realmente ao Senhor.

Essa linha é a verdade e o amor (Ef 4.15), ambos sempre juntos. Como dizia Martyn Lloyd-Jones sobre essa passagem: “Devemos sustentar a verdade em amor e também apresentar a verdade em amor”.

Não está pedindo que nos unamos na busca pela verdade... nos diz que devemos nos manter firmes na verdade e que a representemos e manifestemos em toda a nossa vida, especialmente quando a proclamamos, e com amor.

Podemos buscar unidade, então, porque na realidade ela já existe. A unidade cristã não é em primeiro lugar física, senão espiritual, e a comunhão verdadeira crescerá, se desenvolverá e finalmente se aperfeiçoará.

O seguinte passo é definir essa verdade, até porque o Novo Testamento deixa claro que toda doutrina pode ser definida. A verdade não é mística, não é uma fumaça, ao contrário, é algo sólido, concreto. Uma declaração clara me dirá o que é verdade e em quem encontrá-la, para depois recebê-la. Eu proponho a Confissão de Fé de Westminster (1640) e a su irmã, a Confissão de Fé Batista de 1689.

E assim como devemos exercer a disciplina eclesiástica para com um irmão em pecado (algo que atualmente também está sendo abandonado), deveríamos igualmente fazê-lo com um irmão em erro teológico, mas com alguns diferenciais. Por um lado, precisamos reconhecer que há verdades que não têm a mesma importância e, por outro lado, que o erro às vezes não é pecado. A insistência no erro, sim, é pecado.

Devemos estabelecer a diferença entre verdades fundamentais e verdades secundárias. Não podemos ceder nem um milímetro sequer em questões ligadas à inspiração das Escrituras, à cristologia, à soteriologia, etc., mas talvez sim em assuntos referentes ao batismo, ao governo da Igreja, à liturgia... bem, onde colocar a evangelização, o ministério da mulher, a doutrina do inferno e os dons sobrenaturais do Espírito? Alguns dirão que isso não importa, mas tais coisas não afetam, por acaso, a nossa visão e adoração a Deus? Não nos colocam, dependendo de nossa posição diante delas, em rebelião contra a Palavra de Deus? Não são capazes de prejudicar a pregação do Evangelho?

Nem todas as verdades são iguais em todas as áreas. Há certos alimentos que posso consumir privadamente, mas talvez não em companhia de meu irmão mais fraco, há dias festivos que guardarei às vezes, e outras vezes não (Rm 14.5,15,21; 1Co 10.23-33; Cl 2.16). Poderei orar com certos irmãos mas não poderei evangelizar com eles. Às vezes tenho me deleitado com a mensagem de pregadores sob cujo ministério eu não poderia estar. Há coisas que aceitarei individualmente, mas que não serão aceitáveis em público.

Paulo ordena que “cada um deve estar plenamente convicto em sua própria mente” (Rm 14.5), mas isso não acontece sempre, e devemos ter paciência.

Todo erro dos homens que esteja baseado, segundo pensam, nas Escrituras, mesmo depois de muito estudo e oração, deve produzir em nós um debate, mas a Igreja não é o lugar para debater a verdade; devemos criar foros e mesas redondas. A tarefa da Igreja vem depois, que é a de guardar e proclamar a verdade. A crítica nem sempre é um ataque à verdade. Ao conhecimento das Doutrinas da Graça, por exemplo, não chegamos por nossos próprios méritos, mas pela pura e simples graça de Deus, com estudo e seriedade.

A dependência e o amor à verdade não deve nos fazer perder nossa própria identidade. Eu posso ser amilenista realista, e outro amilenista otimista, e outro ainda pós-milenista, e necessitamos uns dos outros, e nos enriquecemos mutuamente.

Muitas vezes penso que não tem havido teólogos na História que não estivessem enganados em alguma coisa, nem mesmo João Calvino. Quem sou eu, então, para ter 100% da verdade em minha mente? Esse pensamento, mais do que um freio, é um desafio para buscar resposta às minhas deficiências doutrinárias, para o estudo constante das Escrituras, para estar “sempre nos reformando”.

John H. Gerstner escreveu: “A liderança no movimento ecumênico frequentemente tem estado nas mãos daqueles que pouco se preocupam com a teologia...”

Nós temos muito a dizer, e devemos dizê-lo. Devemos rejeitar a tendência a reduzir e não a ampliar, não ficar olhando para dentro para ver quem devemos tirar, mas devemos olhar para fora, para ver quem está faltando em nosso meio.

Outro problema com o qual nos deparamos é o denominacionalismo. A defesa da unidade não passa, não tem conseguido passar, pela denominação, na qual, crendo estar defendendo a verdade, muitas vezes nos encontramos defendendo nossas pequenas verdades.

Outro autor, Alfonso Ropero, escreveu o seguinte: “Quem somente tem visão para o crescimento de sua igreja local, não tem visão de Igreja, tem visão de seita”.

Nós espanhóis colocamos paixão e originalidade em tudo, mesmo na Reforma, na fé, na verdade: à nossa maneira! Mas ao mesmo tempo assimilamos tudo o que é de fora e não queremos reconhecê-lo. [Nota do tradutor: podemos dizer praticamente o mesmo de nós brasileiros, não?] Em algumas ocasiões sou criticado por cantar hinos ingleses. Meus críticos, no entanto, cantam hinos americanos ou brasileiros. Mesmo assim, por que deveríamos cantar somente à moda espanhola? (Se é que existe tal coisa!).

Sim, o cristão reformado tem sido e é “ecumênico”, mas com um ecumenismo histórico e bíblico, somente este tipo de ecumenismo pode nos dar alguma esperança.

QUE É O HOMEM?

“Que é o homem?”. Várias vezes as Escrituras fazem essa pergunta (Jó 7.17; Sl 8.4; Hb 2.6), e sempre nos dão a resposta. Acontece que muitos não gostam dessa resposta.

Recomendo ao leitor deste livro ler neste momento, outra vez, os três primeiros capítulos de Gênesis.

Gostaria de ressaltar aqui somente algumas coisas que nos ajudarão a responder a essa pergunta e a entendermos a nós mesmos.

Primeiramente gostaria de dizer que Deus criou o ser humano – é fundamental começar sabendo que somos criaturas – e que criou o ser humano à Sua imagem e semelhança. Isto é, que a grandeza do homem e da mulher sobre todas as demais criaturas é ser imagem de Deus. Em segundo lugar, a Queda do homem aconteceu por ele querer ser igual a Deus, conhecedor do bem e do mal. Quando desejou aquele fruto proibido, desejou o que a serpente lhe ofereceu e esqueceu quem era, o que era e as palavras que Deus lhe havia dito. Em terceiro lugar, o homem conseguiu finalmente conhecer o bem e o mal; a serpente não mentiu nesse ponto, e isso foi a sua desgraça, não somente porque lhe chegaria a morte física, mas também a morte espiritual. Não estava preparado para ser como Deus, não pôde resistir à tentação e teve medo e vergonha.

Hoje o ser humano ainda é imagem, ainda que danificada, de Deus, e aí está a sua dignidade; mas continua fazendo a vontade do diabo e de sua natureza caída e, mesmo conhecendo o bem e o mal, somente pode fazer o mal (e o bem que Deus lhe permite fazer), porque saber não é poder.

Como Adão e Eva, o ser humano continua desprezando a imagem de Deus que há nele e querendo tomar o lugar de Deus. O que consegue obter é somente afastar-se cada vez mais de Deus na imagem e na graça e aproximar-se cada vez mais a um estado brutal e inferior ao humano.

A Reforma ensinou o verdadeiro lugar e valor do ser humano, mas ao mesmo tempo que ela, o Renascimento e o humanismo ensinaram ao homem a “libertar-se” de Deus, pensando que assim o homem seria engrandecido, ou, talvez, vendo a prosperidade nos diferentes âmbitos sociais, políticos e econômicos, imaginaram sinais de grandeza e glória.

O problema tem se agravado hoje quando, em primeiro lugar, o humanismo tem tomado preeminência nas respostas a respeito do ser humano e tem influenciado o Cristianismo em geral e feito falsas acusações contra o calvinismo, que, mesmo sendo equivocadas, têm sido aceitas de um modo muito amplo, por muitos crentes.

O humanismo quer fazer o homem ser igual a Deus, e para isso deve eliminá-Lo e convencer ao homem que Deus está morto ou que não existe. Embriagado pelos avanços e descobrimentos científicos, o homem acredita estar no cume do universo e começa a brincar de Deus, bem ao estilo do rei Herodes (At 12.20-23). Claro que seus brinquedos são em sua maioria outros seres humanos; daí a eutanásia, o aborto, o uso de embriões, etc...

O homem não é bom, e o humanismo não pode tornar o homem bom; o cristianismo também não pode, mas o que a fé cristã sim pode, é fazer que o homem queira ser bom. O ser humano torna-se mais humano não pelo humanismo, mas pela fé cristã, a fé em Cristo. A dignidade do ser humano não está em acreditar ser bom, ou em querer ser como Deus, mas em imitar a Cristo, em glorificar a Deus e tentar sempre e em todo lugar fazer a vontade de Deus.

O Cristianismo, no entanto, encontra-se atualmente confuso e dividido (ou ao menos assim aparenta estar), deixando que outros grupos sem base moral sólida opinem e atuem em assuntos como a vida social (prisões, pena de morte, imigração, etc), economia (capitalismo, consumismo, empregos...) ou o corpo humano (eutanásia, bioética, genoma humano...), por exemplo.

Esquecemos que o Cristianismo sempre ofereceu as melhores e mais práticas alternativas para esses problemas ou outros similares. Graças ao Cristianismo Reformado existem a Cruz Vermelha, os Alcoólicos Anônimos, o antiescravagismo, etc.

Mas até o humanismo – a sociedade, o Estado – atreve-se a ditar como devemos evangelizar, formar nossas igrejas ou viver em sociedade. Eis aqui alguns exemplos.

Lembro-me de um folheto pretensamente evangelístico que dizia que a motivação de Deus para salvar o homem era o fato de que o ser humano é valioso em si mesmo. Essa é uma ideia contrária à teologia bíblica e reformada, veja-se por exemplo 1Co 1.27-29 ou Rm 9.11. Deus não põe sua atenção nos seres humanos porque vê neles algo de valor inato e meritório, mas pelo valor que Ele mesmo, como Deus, tem em Si mesmo (Is 43.25; Jr 14.7; Ez 36.22).

Algum tempo atrás recebi informações sobre a “Bioigreja” (Desenvolvimento Natural da Igreja), aplicando estratégias de marketing para o crescimento da Igreja. Mas então, o que quer dizer Jesus em Mc 16.15,16 e Paulo em 1Co 2.1-5?

Por outro lado, querem tornar o calvinismo culpado pelo capitalismo selvagem atual. Acusam o calvinismo de fechar os olhos para a dor humana e de outros males.

O próprio Max Weber, em seu conhecido livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, reconhece que o capitalismo protestante ou calvinista que tem sido proclamado desde a Reforma é muito diferente do capitalismo presente, da ética católica e do capitalismo judeu.

Com base somente em citações desse autor – bastante imparcial, pois jamais declarou-se amigo do calvinismo – gostaria de estabelecer alguns princípios para conhecer a teologia – ou teoria – econômica calvinista:

1º. O espírito que movia o calvinismo era o amor ao próximo e a glória de Deus;

2º. Dos versículos bíblicos mais citados ou fundamentais, mencionamos 2Ts 3.10: “Se alguém não quiser trabalhar, também não coma”. Daí que Calvino proibiu a mendicância, mas proporcionou trabalho para as pessoas, construiu hospitais e impôs limites à usura. E como diz Baxter, que o rico também trabalhe: a riqueza é má quando incita à preguiça.

3º. Condena-se o trabalho fútil.

4º. O voto de pobreza e a mendicância são fortemente criticados, pois querer ser pobre é como querer estar enfermo. Lutero acusa o monasticismo de egoísmo, e defende o trabalho como uma prova de amor ao próximo.

5º. O calvinismo, ainda segundo Weber, favorecia o espírito comercial. Daí que entre “comer bem ou dormir bem” o protestante opta por comer e o católico por dormir. Assim pode-se ver como, historicamente, os países de influência católica são pobres, enquanto os de influência reformada têm conseguido prosperar em meio às circunstâncias mais adversas. E houve um tempo em que ouvia-se frequentemente o provérbio “ser honrado como um huguenote”.

6º. A frase de John Wesley – com a qual Max Weber parece concordar – resume muito bem o que estamos dizendo: “Temos que advertir a todos os cristãos que estão na obrigação e no direito de ganhar quanto possam e de economizar o que puderem; isto é, que podem e devem enriquecer (...) e dar quanto puderem para progredir na graça e reunir um tesouro no Céu”. É o gastar para a glória de Deus. Este é o capitalismo social reformado.

Posso terminar este trecho com um exemplo. Um amigo empresário cristão disse-me que tinha dois empregados, um cristão e outro não. Com o primeiro sentia-se seguro em seu negócio, mas com o segundo sentia-se desanimado pela má vontade, pelos queixumes e pela “lei do menor esforço” daquele cidadão.

A dignidade do homem não está no que ele possui (riquezas, fama...), nem mesmo no que o homem é (sua linhagem ou cor da pele), mas no que ele representa: a imagem, ainda que danificada, de Deus (mesmo sendo um ancião com Alzheimer, um doente mental ou um criminoso na cadeia). Tão importante é morrer com dignidade quanto viver com ela. Para nós reformados, no entanto, o homem deve ser considerado em sua totalidade, como dizia Agostinho: “Se eu choro por esse corpo do qual a alma partiu, como então chorarei por essa alma que partiu para Deus?”.

O que podemos dizer a respeito da famosa morte do espanhol Miguel Serveto, que tem sido desde então como uma ferida infectada no nome de João Calvino? Vamos considerar alguns pontos.

1º. Serveto e Calvino, durante muito tempo, trocaram intensa correspondência sobre assuntos teológicos enquanto Serveto viveu em Viena, e Calvino não o denunciou; e antes de morrer em Genebra, já havia sido condenado e sua efígie queimada pela Inquisição.

2º. Já o Código Justiniano, e também o livro de Levítico, condenavam à pena de morte aqueles que negassem a Trindade e aos blasfemos. C. H. Irwin disse que Serveto foi condenado, não tanto por ser herege, mas por ser blasfemo.

3º. Serveto chegou em Genebra num momento de conflito em que o Pequeno Conselho, dominado pelo partido dos libertinos, fazia oposição ao Consistório de pastores e queria destituir Calvino. Serveto seria o instrumento ideal para seus planos. O próprio Serveto tentou utilizar essa situação tensa entre Calvino e os líderes de Genebra a seu favor: em sua defesa pediu a morte de Calvino e solicitou que as posses de Calvino fossem dadas a ele.

4º. Calvino não matou Serveto; a época em que Serveto viveu o matou. Genebra foi o instrumento de uma época brutal. Em 1903, a cidade de Genebra, com os fundos de vários grupos reformados, edificou um monumento com a seguinte inscrição: “Nós, filhos reverentes e agradecidos de Calvino, nosso grande reformador, mas rejeitando um erro, que foi o de seu século, amantes da liberdade de consciência, de acordo com os verdadeiros princípios da Reforma e do Evangelho, levantamos este monumento expiatório”. Hoje deveríamos ter esse mesmo conceito de tolerância e de confissão de pecado e de erro. J. Gemis – católico romano e crítico de Calvino em sua biografia do reformador – reconhece que Calvino fez uma grande contribuição à história do direito à liberdade de pensamento e que teve “como uma de suas bases mais evidentes e sólidas o direito a discordar”.

Quero terminar este trecho sobre o ser humano reconhecendo que não foi dito tudo o que poderia ser dito. O ser humano é muito mais do que pensam alguns, mas muito menos do que pensam outros. Agostinho confessou a Deus: “Só sei de uma coisa: que tudo vai mal longe de Ti, e não somente fora de mim, mas mal dentro de mim. E que toda riqueza que não é meu Deus é pobreza”.

A MODO DE CONCLUSÃO

Nenhum assunto foi tratado com o espaço e o tempo que merecia. Também outros assuntos deixaram de ser tratados, possíveis perguntas ficaram sem resposta, que poderiam ajudar a melhor compreender a fé reformada, em questões como arte e cultura, política e Estado, família e filhos, eclesiologia... O puritanismo e outros movimentos reformados precisariam de um espaço especial.

Mas não importam nossas limitações; na graça de Deus há homens e mulheres preparados para defender e proclamar esta nossa fé, viva e poderosa por ser divina, capaz de enfrentar todos os desafios que o futuro nos apresente, derrubar todos os obstáculos impostos pela ignorância, e lutar todas as batalhas contra os inimigos do Evangelho.

Além disso, Deus tem nos dado, em nosso país [o autor refere-se à Espanha], os meios para isso: liberdade, literatura, encontros ministeriais...

Nós, cristãos reformados, temos um desafio extraordinário: o de dar mais e melhor glória ao nosso Deus. Mas devemos nos lembrar que é possível ter em nossas mentes uma doutrina na qual não cremos na prática; que o conhecimento dessas coisas deve nos dar mente clara, sangue frio e coração quente.

Como dizia Agostinho: “Ó Verdade, luz do meu coração, que minhas trevas calem-se para sempre! Tenho vivido até agora nas trevas. Mas mesmo nas trevas, sim, nas trevas, tenho te amado intensamente. Andei desgarrado e me lembrei de Ti. Atrás de mim ouvi a Tua voz que clamava para que eu voltasse, mas mal pude percebê-la devido à confusão dos que vivem sem paz. E agora, olha, volto sedento, anelando pela fonte. Que ninguém interrompa meu caminhar. Vou beber dela e vou viver nela. Que não seja eu a minha própria vida. Tenho vivido mal por querer viver de mim. Tenho sido, pessoalmente, a causa da minha morte. Mas em Ti comecei a reviver. Fala-me, conversa comigo. Tenho dado crédito aos Teus livros e suas palavras são muito misteriosas”.

Essa é a minha confissão. E a sua?

Traduzido por F.V.S. de:

PUIGVERT, Pedro (org.). Una Fe para el III Milenio: el Cristianismo histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2002, pp. 14-47.