sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O SOFRIMENTO DO CRENTE

A) CONFISSÃO POSITIVA, EVANGELHO DA PROSPERIDADE E O FALSO TRIUNFALISMO

1 - Um falso ensino que permeia a Igreja hoje é aquele que afirma que, se formos fiéis a Deus,  obrigatoriamente seremos abençoados, prósperos e felizes, e nenhum mal nos atingirá. Se sofremos, é porque cometemos algum pecado. É o que ensinava Elifaz (Jó 4.7-9).

Refutação Bíblica: Neste mundo que jaz no Maligno (cf. 1Jo 5.19), justamente nós, crentes, somos os que mais chances temos de sofrer (Jo 16.33; 15.19,20; 2Tm 3.12; 1Pe 2.21). Na verdade, todos sofrem, crentes e descrentes. A questão é: de que modo encaramos o sofrimento? Ou melhor, o que fazemos com o sofrimento? (E não o que o sofrimento faz conosco). Veja 1Pe 4.12-19.

Exemplos de homens de Deus que sofreram muito neste mundo: Jó, José, Jeremias, Daniel, Ezequiel, Paulo (cf. 2Co 6.4,5; 11.23-27). Estava Paulo em pecado? Estavam aqueles homens em pecado?

2 - Muitos ensinam que o crente genuíno jamais terá dificuldades financeiras, por ser "filho de Deus", filho d'Aquele que é o "dono do ouro e da prata". Se alguém tem problemas nessa área, é porque está em pecado. Será?

Na verdade, na Bíblia, na História e na experiência diária, observamos que os ímpios prosperam muito mais do que os justos (cf. Sl 73). Exemplos de homens de Deus que padeceram necessidades financeiras: Elias (1Rs 17.5-7), Amós (Am 7.14), Habacuque (Hc 3.17-19), Paulo (Fp 4.10-13), e até mesmo o Senhor Jesus (Mt 8.20). Aliás, o que Jesus ensinava sobre o amor às riquezas? Veja Mt 6.24; 13.22; Mc 10.23; Lc 18.24...

A atitude de Jesus deve ser a nossa também (2Co 8.9; Fp 2.5). Nem riqueza, nem pobreza, mas o equilíbrio saudável deve ser o nosso alvo na vida (cf. Pv 30.7-9), muito embora Deus, em Sua soberania, é quem realmente decide quem será rico ou pobre, e por quanto tempo. Seja qual for a nossa situação, devemos descansar n'Ele, sabendo que Ele suprirá todas as nossas necessidades em Cristo Jesus (Fp 4.19). Nossa atitude deve ser sempre de gratidão e dependência de Deus, priorizando nossa comunhão com Ele acima de tudo (Mt 6.33; 1Tm 6.7-10,17-19).

B) NEM TRIUNFALISMO, NEM PESSIMISMO - UMA PERSPECTIVA BÍBLICA DO SOFRIMENTO

1 - Existe um triunfalismo barato sendo pregado atualmente, dizendo que sempre seremos "mais que vencedores", nunca experimentaremos derrotas, revezes, fracassos ou aflições nesta vida, se realmente somos filhos de Deus. Essa é uma interpretação bastante equivocada de Rm 8.37, ignorando inteiramente o contexto desse versículo (Rm 8.18-39), no qual o Apóstolo Paulo nos explica que somos mais que vencedores justamente através dos sofrimentos, não escapando deles. O próprio Jesus jamais escondeu de ninguém o significado de ser Seu discípulo: juntamente com as recompensas, virão as tribulações e perseguições (Mc 10.28-31; Lc 9.23; 14.25-33; Jo 16.33).

2 - Outro ponto de vista, no extremo oposto, é o pessimismo sombrio e sem esperanças, do tipo que encara este mundo apenas como um vale de sombra da morte, e que estamos destinados a sofrer irremediavelmente. Mas veja, novamente, o exemplo do Apóstolo Paulo, que expressava alegria mesmo em situações negativas, porque conhecia o Senhor (Fp 1.18; 2Tm 1.12).

Mais uma vez, o crente é chamado para encarar a vida de um modo equilibrado, baseado na Palavra de Deus. Haverá tempos difíceis e tempos bons (Ec 3.1-8), mas  aqueles que confiam no Senhor sempre terão sua alegria preservada, pois sua felicidade depende de Deus, e não das circunstâncias (Sl 34.19; 125.1).

C) PROPÓSITOS DO SOFRIMENTO

1 - O SOFRIMENTO NOS IDENTIFICA COM CRISTO. Jo 15.20,21; 16.33; At 5.40,41; Rm 8.17; Fp 1.29; 1Ts 2.14; 1Pe 4.13,14. Em todos esses textos, e em muitos outros, vemos que, assim como o Senhor sofreu neste mundo, nós, os que seguimos os Seus passos, também experimentaremos, inevitavelmente e em alguma medida, a oposição e o sofrimento (2Tm 3.12; 1Jo 3.13). Nossa comunhão com Ele no sofrimento é a outra face da nossa comunhão com Ele em Sua glória (Fp 3.10,11).

2 - O SOFRIMENTO FORJA O NOSSO CARÁTER. Este é um corolário do anterior: se, mesmo em meio ao sofrimento, buscarmos a vontade de Deus, seremos semelhantes a Cristo,  e nosso caráter começará a ser transformado pelo Espírito Santo à semelhança do caráter de Cristo (Rm 5.3-5; 2Tm 4.5; Tg 1.2-4; 1Pe 4.12-19).

3 - O SOFRIMENTO AUMENTA A NOSSA FÉ. Andar com Cristo nos dá a oportunidade de conhecê-Lo melhor, e mesmo em meio às lutas, podemos prosseguir "por fé, não por vista" (Rm 8.23-25,28,31-39; Fp 4.4-7; Hb 12.1-3; 1Pe 5.6-10).

4 - O PASSAR POR MOMENTOS DE SOFRIMENTO NOS PERMITE AUXILIAR COM EFICÁCIA OUTROS QUE ESTÃO SOFRENDO. 2Co 1.3-11; 12.7-10; Fp 1.12-18; 1Pe 5.10. O poder de Deus opera através de nossa "fraqueza" humana, quando nos sentimos as pessoas menos capacitadas do mundo e mais necessitadas da graça divina. Deus coloca um tesouro em vasos de barro (2Co 4.7-12), opera poderosamente através daqueles que sofrem confiando no Senhor (2Co 6.8-10; 1Pe 4.19).

5 - O SOFRIMENTO, QUANDO VIER, DEVE SER ENFRENTADO E EXPERIMENTADO PARA A GLÓRIA DE DEUS. Tudo em nossas vidas deve ser feito para a glória de Deus (1Co 6.20; 10.31) e o sofrimento não é exceção (Fp 1.20,21). Fomos criados para o louvor da Sua glória, e isso inclui toda a nossa vida, inclusive durante os períodos de tribulação (Ef 1.11,12). O sofrimento não é desculpa para deixar de servir a Deus e de glorificá-Lo, muito pelo contrário: é uma oportunidade excelente de demonstrar o nosso amor a Deus e a nossa alegria em Cristo, servindo ainda mais, para a glória de Deus (1Pe 4.7-19). A Deus toda a glória!


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

SIMPLICIDADE NA PREGAÇÃO

Por J. C. RYLE.


O rei Salomão diz no livro de Eclesiastes: "Não há limite para a produção de livros" (Ec 12.12). Há poucas coisas nas quais isso seja tão certo como na pregação. Os volumes que escrevi para ensinar os ministros a pregar são suficientes para formar uma pequena biblioteca. Ao publicar outro pequeno tratado, somente me proponho a tocar num aspecto dessa questão. Não pretendo considerar a substância e a matéria de um sermão. Deliberadamente deixarei de lado pontos como a solenidade, unção, vivacidade, fervor e outros semelhantes, ou as respectivas virtudes de sermões escritos ou improvisados. Desejo limitar-me a um ponto somente, que recebe bem menos atenção do que merece. Esse ponto é a simplicidade na linguagem e no estilo.

Se a experiência serve para alguma coisa, devo ser capaz de dizer algo a meus leitores a respeito de "simplicidade". Comecei a pregar há quarenta e cinco anos, quando exerci o ministério pela primeira vez numa pobre paróquia rural; e tenho passado uma grande parte de meu ministério espiritual pregando para trabalhadores rurais e granjeiros. Conheço a enorme dificuldade de pregar a ouvintes como esses, de fazer com que entendam o que queremos dizer e manter sua atenção. No que concerne à linguagem e à composição, afirmo deliberadamente que prefiro pregar na Universidade de Oxford ou em Cambridge, no Templo, em Lincoln's Inn ou no Parlamento, do que dirigir-me a uma congregação agrícola numa quente tarde de agosto. Ouvi de um trabalhador rural que apreciava o domingo mais do que qualquer outro dia da semana porque - dizia - "sento-me confortavelmente na igreja, coloco minhas pernas para o alto, não preciso pensar em nada e simplesmente adormeço". Talvez alguns de meus jovens amigos no ministério sejam chamados para pregar numa congregação assim, como aconteceu comigo, e me alegrarei se forem beneficiados pela minha experiência.

Antes de entrar no assunto, gostaria de iluminar o caminho fazendo quatro comentários preliminares.

a) Por um lado, peço a meus leitores que lembrem-se que alcançar a simplicidade na pregação é de suma importância para todo ministro que aspire ser útil para as almas. Jamais o entenderão, a não ser que você seja simples em seus sermões; e a menos que o entendam, você não poderá fazer o bem a seus ouvintes. Como dizia Quintiliano: "Se você não quer que o entendam, não merece ser ouvido". Outra coisa que deveríamos buscar é que nossos sermões sejam inteligíveis; e a maioria de nossos ouvintes não os entenderão se não forem simples.

b) O que direi a seguir, à guisa de comentário preliminar, é que alcançar a simplicidade não é fácil, absolutamente. Não podemos cometer maior equívoco do que acreditar que é. "Fazer com que as coisas difíceis pareçam difíceis está ao alcance de todos, mas fazer com que as coisas difíceis pareçam fáceis e inteligíveis é algo que mui poucos pregadores conseguem", dizia o arcebispo Usher. Um dos mais sábios e valorosos puritanos disse há 200 anos: "A maior parte dos pregadores dispara suas armas muito acima da cabeça de suas congregações". Isso também acontece em nossa época! Receio que nossos ouvintes não entendam uma grande porção do que pregamos mais do que entendem grego. Quando as pessoas escutam um sermão claro e direto, ou leem uma obra do mesmo gênero, podem dizer: "Que clareza! Que fácil é de entender!"; e pensar que qualquer um pode pregar ou escrever nesse estilo. Permitam-me dizer aos meus leitores que é extremamente difícil escrever de modo simples, claro, direto e vigoroso. Considerem os sermões de Charles Bradley, de Clapham. Podem ser lidos tranquilamente. São simples e naturais. Qualquer um sente de imediato que seu significado está tão claro como o Sol ao meio-dia. Cada palavra é a correta e se encontra no lugar adequado. No entanto, a confecção desses sermões demandou um enorme esforço do Sr. Bradley. Aqueles que leram O Vigário de Wakefield, de Goldsmith, dificilmente deixaram de perceber a maravilhosa naturalidade, fluidez e simplicidade de sua linguagem. E, no entanto, é de domínio público que os esforços, dificuldades e o tempo que levou para essa obra ser terminada foram imensos. Comparemos O Vigário de Wakefield com Rasselas de Johnson - que foi escrita em poucos dias e sob pressão - e imediatamente perceberemos a diferença entre ambas. De fato, utilizar palavras difíceis para parecer culto e fazer com que as pessoas saiam do sermão exclamando "que inteligente! Que erudito!", é tarefa fácil. Mas escrever algo que impacte e fique marcado na memória, falar ou escrever algo agradável e de fácil compreensão, que seja assimilado pela mente do ouvinte e jamais esquecido, isso, podemos estar certos, é algo muito difícil e uma conquista não muito frequente.

c) Permita-me observar, além disso, que quando falo de simplicidade na pregação não estou me referindo a pregação infantil. Se pensarmos que as pessoas humildes apreciam esse tipo de pregação, estamos redondamente enganados. Se nossos ouvintes pensam que os consideramos um bando de ignorantes para os quais qualquer tipo de papinha para bebê é válida, perdemos qualquer possibilidade de fazer-lhes o bem. Normalmente não estarão dispostos a ouvir uma pregação condescendente. Sentirão que não os estamos tratando como iguais, mas como inferiores, e isso sempre desgosta a natureza humana. Imediatamente nos darão as costas, taparão os ouvidos, ficarão ofendidos, e então melhor seria pregar para uma muralha.

d) Finalmente, permita-me observar que não precisamos de uma pregação rude ou vulgar. É perfeitamente possível ser simples e falar como um cavalheiro, com o estilo de uma pessoa gentil e refinada. É um tremendo erro pensar que os homens e mulheres iletrados e analfabetos preferem que lhes falem de modo iletrado e como um analfabeto. É um grande erro supor que um evangelista leigo ou qualquer um que lê as Escrituras, que desconhece o latim e o grego e somente está familiarizado com a Bíblia, é mais aceitável do que um homem de Oxford ou um polemista de Cambridge. Normalmente as pessoas somente toleram a vulgaridade e a rudeza quando não podem ter qualquer outra coisa.

Depois desses comentários preliminares, passarei a oferecer cinco breves indicações do que me parece ser o melhor método para alcançar a simplicidade na pregação.

I. Minha primeira indicação é a seguinte: Se você quer obter a simplicidade na sua pregação, assegure-se de que tem uma ideia clara do assunto sobre o qual irá pregar. Peço uma atenção especial sobre isso. Das cinco indicações que irei dar, esta é a mais importante de todas. Tenha cuidado, pois, de entender e chegar ao fundo do texto que você escolheu; de saber exatamente o que você deseja mostrar, o que quer ensinar, o que pretende estabelecer e o que anela que penetre nas mentes de seus ouvintes. Se você mesmo começar de modo nebuloso, pode ter certeza de que deixará a sua congregação em trevas. Cícero, um dos maiores oradores da Antiguidade, disse: "É impossível que alguém fale de modo claro e eloquente a respeito de um assunto que desconhece"; e creio que ele falou a verdade. O arcebispo Whately era um observador sagaz da natureza humana e falou com razão de um grande número de pregadores "que não apontavam para nada e não acertavam nada. Como homens que chegam a uma ilha desconhecida e começam uma viagem de exploração, partiam da ignorância e viajavam em ignorância durante todo o dia".

Peço especialmente a todos os jovens ministros que lembrem-se desta primeira indicação. Repito categoricamente: "Assegure-se de compreender profundamente seu tema. Jamais escolha um texto cujo significado você não entenda completamente". Cuide-se para não tomar passagens obscuras como aquelas de profecias simbólicas que ainda não se cumpriram. Se um homem prega constantemente a uma congregação normal sobre os selos, as taças e as trombetas do Apocalipse, ou sobre o templo de Ezequiel ou sobre a predestinação, o livre arbítrio e os propósitos eternos de Deus, não será surpreendente se não conseguir pregar com simplicidade. Não estou dizendo que tais questões não devam ser tratadas em ocasiões especiais, em momentos adequados e diante de uma audiência apropriada. O que estou dizendo é que são temas de grande profundidade sobre os quais, geralmente, cristãos sábios estão em desacordo e é quase impossível fazer com que pareçam assuntos simples e corriqueiros. Devemos compreender claramente os temas de nossas pregações, se desejamos torná-los simples. E podemos encontrar centenas de temas claros e simples na Palavra de Deus.

Evite, pelo mesmo motivo, escolher o que denomino temas fantasiosos e "textos forçados" para extrair deles significados que o Espírito Santo jamais teve a intenção de dotá-los. Não há questão necessária para a saúde da alma que não esteja claramente ensinada e exposta na Escritura. Sendo esse o caso, creio que o pregador não deveria nunca tomar um texto e extrair dele, como um dentista faria com um dente, algo que, por mais verdadeiro que seja por si mesmo, não é o significado claro e literal das palavras inspiradas. O sermão pode parecer brilhante e engenhoso, e talvez sua congregação saia dizendo: "Que pastor inteligente nós temos!", mas se após uma análise não puderem encontrar o sermão no texto ou o texto no sermão, ficarão perplexos e começarão a pensar que a Bíblia é um livro cujo significado é profundo demais para ser entendido. Se você quer alcançar a simplicidade, evite os textos forçados.

Permita-me explicar o que quero dizer com textos forçados. Lembro de ouvir um ministro numa cidade do norte que era famoso por pregar com esse estilo. Uma vez escolheu como texto: "Ou com o ídolo do pobre, que pode apenas escolher um bom pedaço de madeira e procurar um marceneiro para fazer uma imagem que não caia?" (Isaías 40.20). Disse aquele pregador: "Aqui temos um homem arruinado e perdido. Não tem nada para oferecer como pagamento pela sua alma. E o que deve fazer? Escolher um bom pedaço de madeira, isto é, a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo". Em outra ocasião, querendo pregar sobre a doutrina do pecado que habita em nós, escolheu seu texto a partir da história de José e seus irmãos: "Como vai o pai de vocês, o homem idoso de quem me falaram? Ainda está vivo?" (Gênesis 43.27). Utilizando essa pergunta, articulou engenhosamente um discurso sobre a infecção produzida pela natureza pecaminosa que permanece no crente: uma grande verdade, sem dúvida, mas com certeza não a verdade daquela passagem. Creio que esses exemplos servirão de advertência a meus irmãos mais jovens. Se você quer pregar sobre a corrupção que permanece na natureza humana ou sobre o Cristo crucificado, não precisa utilizar textos tão "rebuscados" como os que mencionei. Assegure-se de escolher textos claros e diretos.

Além disso, se você deseja analisar a fundo seus temas, ainda que de modo simples e direto, não se envergonhe de dividir seus sermões e de mencionar suas divisões. Quase não preciso dizer que essa é uma questão bem problemática. Em muitos lugares há um receio temeroso a respeito de "em primeiro lugar, em segundo lugar e em terceiro lugar". A tendência atual é fortemente contrária à divisões no sermão, e devo confessar com franqueza que um sermão vivo e não dividido é muito melhor do que um dividido de forma pesada, néscia e ilógica. Que cada homem esteja completamente convencido em seu foro íntimo. Que perseverem aqueles capazes de pregar sermões sem divisões que causem impacto e que sejam facilmente lembrados. Mas que não sejam desprezados aqueles que dividem seus sermões. O que desejo frisar é que, se quisermos usar de simplicidade e clareza, o sermão deve ter uma ordem, como um exército. Que tipo de general misturaria a artilharia, a infantaria e a cavalaria numa massa confusa, no dia da batalha? Que anfitrião, ao preparar um banquete, imaginaria pôr à mesa todos os manjares ao mesmo tempo: sopa, peixe, entradas e saladas, carne e a sobremesa num único grande prato? Podemos dizer o mesmo de sermões: deve haver uma ordem, seja utilizando palavras como "em primeiro lugar, em segundo lugar, em terceiro lugar" ou não. Deve haver ordem, independentemente se suas divisões são expressas ou ocultas; uma ordem tão cuidadosamente disposta que os pontos de seu sermão e suas ideias sucedam uns aos outros com maravilhosa regularidade, assim como os regimentos que desfilam diante da Rainha num dia de revista no parque de Windsor.

Particularmente, confesso que não creio ter pregado dois sermões sem divisões em toda a minha vida. Creio que é da maior importância que as pessoas entendam, lembrem e retornem a suas casas com meu sermão, e estou certo de que as divisões ajudam sobremaneira em tudo isso. De fato, são como ganchos, pinças e estantes na mente. Se estudarmos os sermões de homens que tenham sido ou são grandes pregadores, sempre encontraremos ordem e lógica em seus sermões, e frequentemente, divisões. Não me envergonho nem um pouco de dizer que leio frequentemente os sermões do Sr. Spurgeon. Gosto de colecionar ideias para pregações em vários lugares. Davi não perguntou a respeito da espada de Golias: "Quem a fez? Quem a poliu? Que ferreiro a forjou?". Não; apenas disse: "Não há outra semelhante", porque certa feita a utilizou para cortar a cabeça de seu dono. O Sr. Spurgeon prega de maneira extraordinariamente eficaz e o demonstra mantendo uma enorme congregação reunida. Deveríamos analisar sempre os sermões que unem as pessoas. Ao ler os sermões do Sr. Spurgeon, observe quão clara e inteligivelmente divide um sermão e preenche cada divisão com ideias simples e belas. Facilmente pode-se compreender seu significado! Deliberadamente ele oferece grandes verdades que fisgam seus ouvintes como ganchos de aço e que, uma vez marcadas na memória, jamais são esquecidas!

Meu primeiro ponto é, pois, que se você quer pregar com simplicidade, deve compreender profundamente o tema ou assunto de seu sermão; e se quer saber se o entende, tente dividi-lo e ordená-lo. Só posso dizer que, em minha própria experiência, tenho feito exatamente dessa forma em todo o meu ministério. Durante quarenta e cinco anos tenho guardado cadernos nos quais anotava os textos e títulos dos sermões para quando os necessitasse. Assim que compreendo um texto e o vejo até o fundo, eu o anoto. Se não consigo ver até o fundo, não posso pregar sobre ele, porque sei que não poderei ser simples; e se não posso ser simples, sei que é melhor não pregar em absoluto.

II. A segunda indicação que desejo fazer é a seguinte: Tente utilizar em todos os seus sermões, na medida do possível, palavras e termos simples. Em todo caso, devo explicar o que quero dizer com isso. Quando falo de palavras simples, não estou me referindo a palavras monossilábicas ou puramente saxãs. Nesta questão não posso estar de acordo com o arcebispo Whately. Creio que ele vai longe demais em sua recomendação do uso da linguagem saxã, ainda que exista uma grande verdade no que diz a respeito. Mas sou da opinião daquele velho sábio pagão, Cícero, quando diz que os oradores devem utilizar palavras "de uso diário e comum" entre o povo simples. Sejam palavras de origem saxã ou não, de duas ou três sílabas, não importa - desde que sejam palavras utilizadas comumente e compreensíveis para a maioria das pessoas. Faça o que fizer, evite o que os humildes denominam sagazmente como "palavras de dicionário", isto é, palavras abstratas, científicas, técnicas, pedantes, complicadas, indefinidas ou muito longas. Podem parecer muito elegantes e pomposas, mas em raras ocasiões terão alguma utilidade. Por regra geral, as palavras mais poderosas e enérgicas costumam ser as mais simples. [* Ver Nota no final do artigo.]

Todos precisamos de alguém para chamar-nos a atenção sobre esses pontos. É ótimo utilizar palavras elegantes em Oxford ou Cambridge, diante de ouvintes eruditos e pregando para plateias cultas. Mas tenha certeza, ao pregar para congregações normais, de jogar fora esse tipo de linguagem o mais rápido possível e de utilizar palavras claras e simples. Em qualquer caso, uma coisa é certa: sem palavras simples é impossível alcançar a simplicidade na pregação.

III. A terceira indicação que desejo oferecer a fim de pregar de modo claro e simples é a seguinte: Faça com que a sua composição seja simples. Tentarei ilustrar o que quero dizer. Se considerarmos os sermões que pregou aquele grande e maravilhoso homem que foi o Dr. Chalmers, é quase impossível deixar de perceber o grande número de linhas que transcorrem sem que haja um só ponto. Não posso evitar de considerar isso um erro. Talvez esse tipo de linguagem seja adequado na Escócia, mas nunca na Inglaterra. Se você quer alcançar um estilo simples de pregação, cuide-se para não escrever muitas linhas sem uma pausa para permitir que as mentes de seus ouvintes possam respirar. Tenha cuidado com ponto e vírgula e com os dois pontos. Coloque vírgulas e pontos, assegure-se de escrever como se fosse asmático ou estivesse com falta de ar. Jamais escreva frases ou parágrafos muito longos. Utilize os pontos com frequência e comece novas frases; quanto mais fizer desse modo, mais (provavelmente) você alcançará um estilo simples em sua composição. Sentenças enormes, cheias de dois pontos ou ponto e vírgula, ou de parênteses, com parágrafos de duas ou três páginas, são letais para a simplicidade. Deveríamos ter em mente que os pregadores lidam com ouvintes, não com leitores, e que aquilo que pode ser lido com facilidade nem sempre pode ser ouvido com facilidade. O leitor sempre pode voltar atrás algumas linhas para refrescar sua memória. O ouvinte escuta tudo de uma vez só, e se perder o fio da meada devido a uma longa e complexa sentença de seu sermão, é bem provável que não entenda mais nada a partir dali.

Por outro lado, a simplicidade no estilo de composição de um sermão depende muito da utilização adequada de frases proverbiais e ilustrações. Isto é de grande importância. Esse, creio, é o valor de grande parte do que encontramos nos comentários de Matthew Henry e nas Contemplações do bispo Hall. Há alguns bons ditados desse tipo num livro pouco conhecido, chamado Papers on Preaching by a Wykehamist. Estes são alguns exemplos: "Vestimos na eternidade aquilo que tecemos no tempo"; "O caminho para o inferno está asfaltado de boas intenções"; "O pecado abandonado é uma das melhores provas do pecado perdoado"; "Não importa muito como morremos, mas sim como vivemos"; "Não se meta na vida de ninguém, mas também não ignore os pecados de ninguém"; "Quando cada um varre a calçada de sua casa, toda a cidade fica limpa"; "A mentira aumenta a dívida: é difícil que uma bolsa vazia pare em pé"; "Quem começa orando termina louvando"; "Nem tudo o que reluz é ouro"; "Na religião, como nos negócios, não há lucro sem esforço"; "Na Bíblia há aguas rasas que podem ser atravessadas por um cordeiro e águas profundas nas quais um elefante deve passar a nado"; "Na cruz um ladrão foi salvo para que ninguém se desespere; mas apenas um, para que ninguém se iluda".

Os ditos proverbiais e as ilustrações dão uma maravilhosa clareza e força a um sermão. Esforce-se para lembrar o maior número deles. Utilize-os judiciosamente, especialmente no final dos parágrafos, e você descobrirá uma imensa ajuda para alcançar um estilo simples de pregação. Mas tenha cuidado com frases longas e complicadas.

IV. A quarta indicação que desejo fazer é a seguinte: Se você deseja pregar com simplicidade, empregue um estilo direto. O que quero dizer? Refiro-me à prática e ao costume de falar "você" e "eu". Quando um homem adota esse estilo de pregação, às vezes é chamado de orgulhoso e egoísta. O resultado é que muitos pregadores jamais são diretos e pensam sempre que é mais humilde, modesto e conveniente empregar o pronome "nós". Mas lembro-me do bom bispo Villiers que dizia que "nós" é uma palavra que deve ser utilizada pelos reis, e somente por eles, e que os ministros religiosos deveriam utilizar sempre "eu" e "você". Aprovo sem reservas essa afirmação. Declaro que jamais entendi o que significa o famoso "nós" pronunciado no púlpito. O pregador refere-se a ele mesmo e ao bispo? A ele mesmo e à igreja? A ele mesmo e aos Pais da Igreja? A ele mesmo e aos reformadores? A ele mesmo e a todos os sábios do mundo? Ou, afinal de contas, refere-se a mim, que ouço o sermão? Se refere-se somente a si mesmo, que razão humana pode dar para utilizar o plural e não dizer simples e claramente "eu"? Quando visita seus paroquianos, ou senta-se junto a um enfermo, ou ensina na escola bíblica, ou pede pão ao padeiro ou carne ao açougueiro, não diz "nós", mas "eu". Gostaria de saber, então, por que não pode dizer "eu" no púlpito. Que direito tem, como homem modesto, de falar por mais alguém além de si mesmo? Por quê não apresentar-se no domingo e dizer: "Ao ler a Palavra de Deus, eu encontrei este texto..."?

Estou convencido de que muitas pessoas não entendem o "nós" do pregador. A expressão as deixa no escuro. Se você disser "eu, o pastor" vim aqui para falar de algo que concerne à sua alma, algo que você deve crer, algo que deve fazer; as pessoas o entenderão sempre. Mas se começar a falar empregando a vaga pessoa do plural "nós viemos aqui para lhes falar", muitos de seus ouvintes não saberão aonde você deseja ir nem se está falando para eles ou para si mesmo. Peço e rogo aos meus irmãos mais jovens no ministério que não esqueçam este ponto. Procure ser tão direto quanto puder. Jamais dê importância ao que o povo diz de você. Não imite nessa questão a homens como Chalmers, Melville ou a outras celebridades dos púlpitos atuais. Jamais diga "nós" quando quer dizer "eu". Quanto mais se acostumar a falar claramente às pessoas - na primeira pessoa do singular, como fazia o velho bispo Latimer - mais simples será o seu sermão e mais facilmente será entendido. A glória dos sermões de Whitefield é a sua franqueza. Mas, por desgraça, foram transcritos de modo tão ruim que agora não conseguimos sentir prazer ao ler os mesmos.

V. A quinta e última indicação que desejo fazer é a seguinte: Se quiser alcançar um estilo simples de pregação, você deve utilizar muitas anedotas e ilustrações. Deve considerar as ilustrações como janelas pelas quais a luz entra em seu sermão. Pode-se falar muito sobre isso, mas os limites de um pequeno opúsculo como este obrigam-me a tratar brevemente desse assunto. É quase desnecessário lembrar do exemplo d'Aquele que falou "como nenhum outro homem jamais falou", nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Estude os quatro evangelhos atentamente e observe a riqueza de ilustrações contida em seus discursos. Com que frequência encontramos figura após figura, parábola após parábola, em seus sermões! Parece que não havia nada de que seus olhos não extraíssem grandes lições. Os pássaros no ar, os peixes no mar, as ovelhas, as cabras, o trigo, o joio, a videira, o semeador, o agricultor, o pescador, o pastor, o jardineiro, a mulher preparando a comida, as flores, a relva, o pagamento de tributos, o banquete de casamento, o sepulcro: tudo era veículo para transmitir pensamentos às mentes de seus ouvintes. O que dizer das parábolas do filho pródigo, do bom samaritano, das dez virgens, do rei e das bodas de seu filho, do rico e Lázaro, dos trabalhadores da vinha e de tantas outras histórias que nosso Senhor relata a fim de transmitir uma grande verdade às almas de seus ouvintes? Tente seguir seus passos e seu exemplo.

 Se você se deter em seu sermão e dizer: "Agora vou contar uma história", garanto que todos os que não estejam completamente adormecidos abrirão bem os ouvidos e ouvirão atentamente. As pessoas gostam das comparações, das ilustrações e das histórias bem contadas, e as ouvirão mesmo quando não quiserem ouvir mais nada. E quão inesgotável é o número de fontes para nossas ilustrações! Tomemos o livro da natureza que nos rodeia. Observe o céu sobre a sua cabeça e o mundo ao seu redor. Observe a História. Observe as ramificações da ciência: geologia, botânica, química, astronomia. Porventura, há alguma coisa nos céus e na terra da qual seja impossível extrair uma ilustração que jogue mais luz sobre a mensagem do Evangelho? Leia os sermões do bispo Latimer, talvez sejam os mais populares já publicados. Leia os livros de Brooks, Watson e Swinncock, os puritanos. Como estão cheios de ilustrações, metáforas e histórias! Observe os sermões do Sr. Moody. Quer saber um dos segredos de sua popularidade? Ele enche seus sermões de histórias agradáveis. O melhor orador - diz um provérbio árabe - é aquele capaz de transformar o ouvido em olho.

No que me diz respeito, não somente trato de contar histórias, mas também, especialmente em paróquias rurais, costumo apresentar às pessoas ilustrações familiares, que elas podem ver com seus próprios olhos em seu dia a dia. Por exemplo: "Quero mostrar-lhes que certamente houve uma grande causa primeira ou um Ser que fez este mundo", então tiro meu relógio do bolso e prossigo: "Olhem este relógio. Muito bem feito. Pode alguém pensar que todos os parafusos, rodas e engrenagens deste relógio se uniram por acidente? Não diria que existe um relojoeiro? Igualmente, podemos deduzir com total certeza que houve um Criador do mundo, cuja autoria vemos gravada na face de cada um desses gloriosos planetas girando anualmente e com uma precisão de segundos. Observem o mundo e as coisas maravilhosas que ele contém. Poderão afirmar que não há Deus e que a Criação é resultado do azar?". Às vezes mostro um molho de chaves e as agito. Ao ouvir o ruído, todos olham com atenção. "Estas chaves seriam necessárias se todos os homens fossem perfeitos e honrados? O que estas chaves comprovam? Ora, que o coração do homem é enganoso, mais do que todas as coisas, e perverso". A ilustração, assevero com certeza, é uma das melhores receitas para fazer com que o sermão seja simples, claro, direto e fácil de entender. Busque as ilustrações. Recolha ilustrações onde quer que as encontre. Mantenha seus olhos abertos e use-as bem. Feliz o pregador que tem bom olho para comparações e boa memória para armazenar histórias e ilustrações adequadas. Se você é um verdadeiro homem de Deus e sabe como compartilhar um sermão, jamais pregará para as paredes e para os bancos vazios.

Mas devo fazer-lhe uma advertência. Há um modo adequado de contar histórias. Se alguém não é capaz de contar histórias com naturalidade, é melhor não contá-las. Lembro-me de um notável exemplo disso no caso do grande pregador galês Christmas Evans. Existe um sermão impresso dele, sobre o maravilhoso milagre em Gadara, quando os demônios possuíram os porcos e os animais se precipitaram violentamente no mar. Ele descreve a cena de modo tão detalhado que chega a ser verdadeiramente ridículo, em parte devido às palavras que põe na boca dos trabalhadores que dão a notícia da perda dos porcos ao proprietário:

- Oh, senhor - diz um deles. - Todos os porcos desapareceram!
- Mas aonde eles foram? - pergunta o proprietário.
- Correram para o mar.
- E quem os levou até lá?
- Oh, senhor, aquele homem maravilhoso.
- Bem, que tipo de homem é esse? O que ele fez?
- Bem, senhor, ele disse umas coisas estranhas e todos os porcos precipitaram-se no mar.
- O quê?! Inclusive o velho porco preto?
- Sim, senhor, também ele, pois vimos a ponta de seu rabo desaparecendo pela borda do penhasco.

Isso é ir a um extremo. Por outro lado, os admiráveis sermões do Dr. Guthrie às vezes estão tão carregados de ilustrações que fazem lembrar uma torta feita quase toda de ameixas e com uma quantidade insignificante de farinha de trigo. Não deixe de adornar seu sermão com cores e imagens. Extraia doçura e luz de todas as fontes e de todas as criaturas, dos céus e da Terra, da História e da ciência. Mas, convenhamos, existe um limite. Tenha cuidado ao colorir, para não exagerar. Utilize um pincel de ponta fina para colorir. Lembre-se disso e verá que o colorido de uma ilustração é de imensa ajuda para alcançar a simplicidade e a clareza na pregação.

E agora tenha em mente estes cinco pontos:

Primeiro: Se quiser alcançar a simplicidade na pregação, tenha uma ideia clara do que vai pregar.

Segundo: Se quiser alcançar a simplicidade na pregação, utilize palavras simples.

Terceiro: Se quiser alcançar a simplicidade na pregação, procure adquirir um estilo de composição simples, com frases curtas, breves e objetivas.

Quarto: Se quiser alcançar a simplicidade na pregação, seja direto. Vá direto ao ponto.

Quinto: Se quiser alcançar a simplicidade na pregação, utilize abundantemente ilustrações e histórias.

Permita-me acrescentar a isto algo puramente prático. Jamais alcançaremos a simplicidade na pregação sem muitas dificuldades. Esforços e dificuldades, esforços e dificuldades. Alguém perguntou a Turner, o célebre pintor, como misturava tão bem as cores, e como elas ficavam tão diferentes das cores das telas de outros artistas. Ele respondeu: "Misturar cores? Misturar cores? Misturar cores? Bem, com inteligência, senhor". Estou convencido de que, na pregação, poucas coisas podem ser feitas sem dificuldades e esforços.

Ouvi que um jovem e descuidado ministro religioso disse a Richard Cecil: "Creio que preciso de mais fé". O sábio ancião respondeu: "Não; você precisa de mais obras, de mais esforço. Não deve pensar que Deus fará a obra por você, mas sim por intermédio de você". Peço a meus jovens irmãos que lembrem-se disso. Rogo-lhes que invistam seu tempo na preparação de seus sermões, que se esforcem e exercitem sua inteligência na leitura. Mas cuidem-se para ler somente aquilo que é útil.

Não gostaria que gastassem seu tempo lendo os Pais da Igreja a fim de ajudá-los em sua pregação. Eles são muito úteis à sua maneira, mas existem coisas bem mais úteis nos escritores modernos, se tiverem discernimento para escolher os melhores.

Leia bons exemplos e familiarize-se com o bom senso na pregação. Como melhor modelo, tome a Bíblia Inglesa. Se falar com a linguagem dela, falará bem. Leia a obra imortal de John Bunyan, O Peregrino. Leia a mesma várias vezes se deseja alcançar a simplicidade na pregação. Não deixe de ler os puritanos. Alguns deles, sem dúvida, são pesados. Goodwin e Owen são bem árduos, mas excelente artilharia no lugar certo. Leia muitos livros como os de Richard Baxter, Watson, Traill, Flavel, Charnock, Hall e Henry. São, em minha opinião, modelos do melhor inglês comum que se falava antigamente. Lembre-se, em todo caso, que o idioma muda ao longo dos anos. Falavam inglês como nós, mas seu estilo era diferente do nosso. Além de ler suas obras, leia os melhores modelos de inglês moderno que encontrar. Penso que o melhor escritor inglês dos últimos cem anos tenha sido William Cobbett, o político radical. Penso que escreveu no inglês saxão mais elegante que o mundo já tenha visto. Na atualidade não conheço melhor mestre do inglês saxão falado com pulcritude do que John Bright. Entre os velhos oradores políticos, os discursos de Lorde Chatham e de Patrick Henry, o americano, são modelos de bom inglês. Em último lugar, mas não menos importante, jamais esqueça que, depois da Bíblia, não há nada no idioma inglês que, por força de sua simplicidade, clareza, eloquência e força, possa ser comparado com alguns dos grandes discursos de William Shakespeare. Modelos assim devem ser estudados com consciência e inteligência, se quiser obter um bom estilo de composição em sua pregação. Por outro lado, não deixe de falar com os pobres e de visitar sua congregação de casa em casa. Sente-se com eles junto à lareira e troque pensamentos com eles sobre todos os assuntos. Ao fazê-lo, aprenderá muito sem perceber. Estará recolhendo constantemente formas de pensar e ideias  a respeito do que deverá dizer no púlpito.

Uma vez perguntaram a um humilde ministro rural se estudava os Pais. Aquele homem digno respondeu que tinha poucas oportunidades de estudar os pais, porque geralmente estavam trabalhando nos campos. Mas estudava as mães, porque sempre as encontrava em casa e podia conversar com elas. Conscientemente ou não, aquele homem acertou bem no alvo. Devemos falar com nossa congregação quando estamos fora da igreja, se quisermos saber como pregar a ela.

a) Somente direi como conclusão que, independentemente do que pregamos ou do púlpito que ocupamos, se pregamos com simplicidade ou não, de que o façamos de forma escrita ou sem anotações, não devemos buscar meramente ser como os fogos de artifício que logo desaparecem, mas pregadores que façam um bem duradouro às almas. Rejeitemos os fogos de artifício da pregação. Os sermões "bonitos", os sermões "brilhantes", os sermões "inteligentes", os sermões "populares", são, geralmente, sermões que não produzem efeito algum nas congregações e não levam as pessoas a Jesus Cristo. Busquemos pregar de tal modo que aquilo que dizemos realmente alcance as mentes, as consciências e os corações dos homens e os faça pensar e refletir.

b) Toda a simplicidade do mundo não pode fazer bem algum a menos que você pregue o puro e simples Evangelho de Jesus Cristo, tão completa e claramente que todos possam entendê-lo. Se Cristo crucificado não tem o lugar que merece em seus sermões, o pecado não é exposto como devido e você não diz à sua congregação o que ela deve crer, ser e fazer, a sua pregação carece de utilidade.

c) Toda a simplicidade do mundo é, novamente, inútil sem um bom modo de se expressar. Se você afunda o queixo no peito e murmura seu manuscrito de forma insípida, monótona e repetitiva, como uma mosca presa numa garrafa, de maneira tal que as pessoas não entendem o que você diz, a sua pregação será inútil. Tenha certeza disso, em nossa igreja não se cuida o suficiente a maneira de expor a Palavra. Nisto, como em todas as coisas relacionadas à ciência da pregação, considero que a Igreja da Inglaterra é sumamente deficiente. Eu comecei pregando sozinho em New Forest e ninguém nunca me disse se estava certo ou errado em meus sermões. O resultado foi que o primeiro ano de minha pregação foi uma sucessão de experimentos. Em Oxford e Cambridge não nos ajudam nessas questões. A carência absoluta de qualquer instrução adequada para o púlpito é uma das manchas e nódoas no sistema da Igreja da Inglaterra.

d) Acima de tudo, não esqueçamos jamais que toda a simplicidade do mundo é inútil sem a oração pelo derramamento do Espírito Santo, a concessão da bênção de Deus e uma vida que corresponda em certa medida com o que pregamos. Sintamos um fervoroso desejo de alcançar as almas dos homens enquanto buscamos a simplicidade na pregação do Evangelho de Jesus Cristo, e não esqueçamos jamais de acompanhar nossos sermões com uma vida santa e de fervente oração.

NOTAS

[1] A parte essencial deste texto foi pregada originalmente, a modo de palestra, a uma audiência clerical na catedral de São Paulo, para a Sociedade Homilética. Devo pedir desculpas por certa aspereza e torpeza no estilo. Mas meus leitores lembrarão amavelmente de que foi uma palestra oral e não escrita, preparada para a impressão a partir das notas de um taquígrafo.

[*] Neste ponto o autor faz uma digressão sobre o emprego de termos próprios do idioma anglo-saxão, que, além de intraduzível, pouco ou nada pode dizer ao leitor contemporâneo (Nota dos tradutores da versão em espanhol).

John Charles Ryle (1816-1900) serviu como reitor de St. Thomas, Winchester, e como pastor de Helmingham e Stradbroke (Inglaterra). Em 1880 foi convidado a assumir a nova diocese de Liverpool, da qual foi o primeiro bispo. O impacto de sua organização como estadista, os princípios evangélicos verdadeiros, e o ministério profundamente espiritual deixaram um legado até hoje perceptível naquela grande diocese. Seu sucessor como bispo de Liverpool, F. Chavasse, descreveu Ryle como "um homem de granito, com o coração de uma criança". Sua produção literária foi imensa, alcançando uma tiragem de cerca de 20 milhões de folhetos e contribuindo com seus livros de um modo incalculável à literatura teológica e reformada.

Fonte: RYLE, J. C. El Aposento Alto. Moral de Calatrava: Peregrino, 2005, pp. 32-49. Traduzido do espanhol por F.V.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

UMA FÉ PARA UM MUNDO PERDIDO - PARTE 2

Por JOSÉ MORENO BERROCAL.



A LIVRE OFERTA DO EVANGELHO

Deus utiliza meios para cumprir Seus propósitos

Uma questão intimamente ligada à evangelização e às Doutrinas da Graça é a seguinte: se Deus tem seus escolhidos, que sentido há em pregar o Evangelho? Que sentido há em convidar os pecadores para receber Cristo como Senhor e Salvador? Uma das objeções mais comuns feitas aos que creem nas Doutrinas da Graça é precisamente esta. Se os salvos já foram escolhidos de antemão por Deus, para que evangelizar?

Essa objeção ignora o fato de que Deus não somente escolheu os que serão salvos (At 13.48), mas também o meio pelo qual hão de ser salvos. E esse meio é a pregação do Evangelho. Jesus, como já vimos, enviou Seus discípulos para evangelizar o mundo. A parábola do grande banquete (Lc 14.15-24) ilustra perfeitamente o zelo evangelístico que deve caracterizar os servos do Senhor: "Então o senhor disse ao servo: Vá pelos caminhos e valados e obrigue-os a entrar, para que a minha casa fique cheia" (v. 23). Esse é o teor do ensino de Paulo em Romanos 10.12-17:

"Não há diferença entre judeus e gentios, pois o mesmo Senhor é Senhor de todos e abençoa ricamente todos os que o invocam, porque 'todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo' [Jl 2.32]. Como, pois, invocarão aquele em quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não houver quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: 'Como são belos os pés dos que anunciam boas novas!' [Is 52.7]. No entanto, nem todos os israelitas aceitaram as boas novas. Pois Isaías diz: 'Senhor, quem creu em nossa mensagem?' [53.1]. Consequentemente, a fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo".

Deus efetua Seus propósitos de salvação através da pregação do Evangelho. Não existe nenhuma incoerência entre crer que somente os eleitos serão salvos e afirmar ao mesmo tempo que Deus usará determinados meios para levá-los à salvação. Paulo discorre sobre a eleição em Romanos 9 e agora no capítulo 10 nos recorda que "a fé vem por se ouvir a mensagem". Deus utiliza meios, os meios estabelecidos por Ele mesmo a fim de levar os escolhidos à fé salvífica. Paul Hem, catedrático de História e Filosofia da Religião no King's College de Londres, afirma:

"De acordo com a Escritura, Deus não ordena os fins sem ordenar também os meios; ambos são inseparáveis. Se ordena a vitória, ordena igualmente a batalha, se ordena a batalha, ordena igualmente os exércitos, e assim sucessivamente. Portanto, ao ordenar um fim, Deus ordena igualmente os meios que farão acontecer esse fim, e eu, como criatura que está incluída nesse ordenamento divino, participo com um papel importante nesses meios. O papel que desempenho talvez não seja sempre o que desejo desempenhar, e às vezes nem estou consciente de desempenhar algum papel. Não obstante, minhas ações têm consequências, querendo eu ou não, e ao realizar essas ações, estou contribuindo para a soma total desse ordenamento de meios chamado providência divina" [18].

Além disso, a História da Igreja demonstra que, longe de diminuir o zelo evangelístico, as Doutrinas da Graça sempre funcionaram como uma mola impulsora de missões e evangelismo. Os maiores pregadores e evangelistas da Igreja (com raríssimas exceções) creram firmemente nas Doutrinas da Graça. Basta ler sobre as vidas de homens como Charles Haddon Spurgeon ou George Whitefield para comprovarmos essa realidade. Como exemplo, talvez seja suficiente mencionar alguns dos princípios fundamentais que influenciaram a obra evangelística de um dos maiores missionários da Igreja Cristã em todos os tempos: William Carey. No chamado "Vínculo da Fraternidade Missionária de Serampore", documento redigido por Carey e seus companheiros como expressão dos princípios que norteariam sua obra na Índia, podemos ler estas palavras:

"Estamos completamente persuadidos de que Paulo pode plantar e Apolo pode regar, mas somente Deus pode dar o crescimento. Estamos convencidos de que aqueles que estão ordenados para a vida eterna crerão, e que somente Deus pode acrescentar à Igreja os que serão salvos. No entanto, não podemos observar, sem admiração, que Paulo, o grande campeão das gloriosas doutrinas da graça livre e soberana, foi quem mais se destacou pelo seu zelo na obra de persuadir os homens a se reconciliarem com Deus. Neste aspecto, ele é um nobre exemplo para nós, para que o imitemos. Nosso Senhor anunciou aos Apóstolos que eram pescadores que a partir daquele momento eles seriam pescadores de homens, afirmando que, em todo tempo e mesmo em meio às decepções, eles deveriam ter como único objetivo aproximar os homens às praias da vida eterna" [19].

Portanto, longe de promover a omissão ou a letargia, as Doutrinas da Graça, corretamente compreendidas, são promotoras da mais fervorosa pregação evangelística [20].

O Evangelho é oferecido a todos indiscriminadamente

Outra objeção habitualmente levantada é um pouco mais complexa. Dizem alguns: "Sim,  devemos pregar o Evangelho, mas não devemos apelar aos pecadores para que aceitem a Cristo. Isso somente serviria para rebaixar o Rei dos reis a uma posição de mero servo que "apela" aos pecadores para que recebam a Sua bondade. Fazer isso é desonrar a Deus". Essa objeção pressupõe uma barreira intransponível entre a soberania de Deus (o fato de que Deus escolhe os que serão salvos) e o que chamamos de livre oferecimento do Evangelho (o fato de que Deus convida a todos, indiscriminadamente, a receber o Evangelho). Como podemos responder a essa objeção? Em primeiro lugar, precisamos examinar o testemunho bíblico para ver se nosso Senhor ou os Apóstolos sentiram que possa existir alguma impossibilidade em crer na soberania de Deus e ao mesmo tempo proclamar livremente o Evangelho a todos os homens. As Escrituras estão repletas de textos que enfatizam o convite universal de Deus a todos os homens, para que todos recebam a salvação: Mt 23.37; Lc 13.24; 2Pe 3.9; e no Antigo Testamento, podemos citar como exemplo Ez 18.23,32; 33.11.


Faremos bem em prestar atenção nas palavras de Jesus em Mateus 11.25-30:


"Naquela ocasião Jesus disse: Eu te louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado.
"Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho quiser revelar".


Nestas palavras o ensino sobre a soberania de Deus não poderia estar mais claro. Deus o Pai escolhe e revela o Evangelho a quem Ele quer (v. 25). O Filho faz o mesmo (v. 27). Significativamente, Jesus acrescenta um convite às suas afirmações:


"Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve".


Aqui Jesus está convidando a todos para que recebam o Evangelho. Mesmo que somente os eleitos responderão positivamente a esse oferecimento de Cristo, Ele convida a todos indiscriminadamente. Não há na mente de Cristo nenhuma contradição ao afirmar a soberania de Deus na salvação dos pecadores e convidar esses mesmos pecadores para que sejam salvos. Observamos essa mesma atitude na evangelização levada a efeito pelos Apóstolos. Pedro, por exemplo, pregando logo após a cura milagrosa de um aleijado de nascença (At 3.11-26) e após expor os fatos do Evangelho sobre Jesus Cristo, passa a exortar seus ouvintes para que respondam a essas realidades espirituais, dizendo: "Arrependam-se, pois, e voltem-se para Deus, para que os seus pecados sejam cancelados" (v. 19). Spurgeon, pregando sobre esse texto, afirma:


"Pedro falou sobre o Cristo do Evangelho: pregou de forma pessoal e direta à multidão que havia se reunido ao seu redor. Entre nós surgiu uma escola de homens que dizem pregar corretamente o Evangelho aos pecadores, quando na verdade somente afirmam o que o Evangelho diz sobre morrer sem salvação, e se enfurecem quando qualquer um se atreve a dizer ao pecador: 'creia e arrependa-se'. Pedro não pertencia a esta escola". [21]


Paulo também convida o carcereiro de Filipos a receber a salvação, quando, em resposta ao seu clamor, afirma: "Creia no Senhor Jesus" (cf. At 16.30,31). Ou seja, rogar aos pecadores para que recebam o Evangelho não traz nenhuma desonra para Deus. Ele mesmo apela e roga aos pecadores, como Paulo deixa claro em 2Coríntios 5.20: "Portanto, somos embaixadores de Cristo, como se Deus estivesse fazendo o seu apelo por nosso intermédio. Por amor a Cristo lhes suplicamos: reconciliem-se com Deus". Podemos pecar gravemente contra Deus ao transgredir Suas leis, mas ai daqueles que acrescentam a seus pecados o rejeitar os apelos divinos! Deus demonstra a Sua graça e Sua bondade para com todos os homens indistintamente. Comentando Ezequiel 33.11 ("Diga-lhes: Juro pela minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem dos seus caminhos e vivam. Voltem! Voltem-se dos seus maus caminhos! Por que o seu povo haveria de morrer, ó nação de Israel?"), Calvino diz:


"Porque, ainda que a voz exterior faça somente indesculpáveis aqueles que a ouvem e não a obedecem, apesar disso deve ser considerada um testemunho da graça de Deus com que reconcilia os homens consigo. Entendamos, pois, que a intenção do profeta é dizer que Deus não se alegra da morte do pecador, para que os fiéis confiem em que, tão logo como se arrependam de seus pecados, Deus está preparado para perdoá-los; e, pelo contrário, que os ímpios sintam que se duplica seu pecado por não ter correspondido a tão grande clemência e liberalidade de Deus". [22]


Calvino acrescenta, ainda, para que fique bem claro:


"Quando Deus se mostra com a luz de sua Palavra àqueles que não o mereciam, com isso dá um sinal evidente de sua gratuita bondade. Nisto, pois, brilha já sua imensa bondade; mas não como salvação para todos; pois aos réprobos lhes está preparado um julgamento muito mais grave por ter rechaçado o testemunho do amor de Deus". [23]


Finalmente, comentando sobre as promessas de Deus nas quais são mencionados todos os homens, sem distinção alguma, Calvino assinala:


"No entanto, por que nomeia a todos os homens? É evidente que nomeia a todos a fim de que a consciência dos fiéis goze de maior segurança, vendo que não há diferença alguma entre os pecadores, contanto que creiam; e, a fim de que os ímpios não pretextem que não têm refúgio algum ao qual recolher-se para escapar à servidão do pecado, quando eles o rechaçam com sua ingratidão. Assim, pois, como a uns e a outros se oferece a misericórdia de Deus por meio do Evangelho, não resta outra coisa senão a fé, quer dizer, a iluminação de Deus, que distingue entre os fiéis e os incrédulos, de sorte que os primeiros sintam a eficácia e virtude de sua iluminação, e os outros não consigam fruto algum. Ora, esta iluminação se regula segundo a eterna eleição de Deus". [24]


Obviamente Calvino sustentava que o Evangelho deve ser oferecido a todos: "a uns e a outros se oferece a misericórdia de Deus", diz. Deus demonstra a Sua "bondade gratuita", a Sua "clemência e liberalidade" a todos. Porém, somente os eleitos responderão positivamente, mas essa manifestação da bondade de Deus para com todos torna indesculpáveis os que a rejeitam.


Alguns outros apresentam uma objeção estreitamente relacionada com a anterior. Dizem que existe um tipo de pecadores alertas e dispostos a receber o Evangelho, como o carcereiro de Filipos, e que o Evangelho deve ser pregado a eles. Mas o que nós afirmamos, dizem, é que o Evangelho não deve ser pregado aos que se opõem a ele ou aos indiferentes. Novamente devemos recorrer às Escrituras, e nelas vemos que não somente pecadores como o carcereiro de Filipos foram convidados para receber a salvação, mas também todo tipo de pecadores. Em Atos 8, Pedro insta a Simão, o mago, que se arrependesse e orasse (At 8.20-23). No Salmo 2, os inimigos de Deus são exortados a reconciliarem-se com Ele: "Por isso, ó reis, sejam prudentes; aceitem a advertência, autoridades da terra. Adorem o SENHOR com temor; exultem com tremor. Beijem o Filho, para que ele não se ire e vocês não sejam destruídos de repente, pois num instante acende-se a sua ira. Como são felizes todos os que nele se refugiam!" (Sl 2.10-12). Spurgeon via com desagrado aqueles que acreditavam que somente deveriam pregar a pecadores "conscientes de seu pecado". Iain Murray, comentando um sermão de Spurgeon, diz: "Se o Evangelho é somente para pecadores conscientes, como a Igreja poderia obedecer ao mandato 'Vão por todo o mundo e preguem o Evangelho a todas as pessoas'? Se o crer pertence somente aos penitentes, não pertence a todos os homens, pois as multidões da Terra não satisfazem essa condição". Nesse ponto, Murray cita Spurgeon: "Eu gostaria de levar um desses que só pregam para 'pecadores conscientes' até a capital do reino de Benin. Ali não há pecadores conscientes! Olhe para eles, com a boca manchada de sangue humano, com o corpo besuntado com o sangue de suas vítimas imoladas. Como encontrará, ali, algum mérito nos pecadores? Quanto a mim, minhas palavras seriam: Homens e irmãos: Deus, que fez o Céu e a Terra, enviou Seu Filho Jesus Cristo ao mundo para sofrer pelos nossos pecados, e qualquer um que n'Ele crer não perecerá, mas tem a vida eterna". [25]


Não é preciso acrescentar nada mais às palavras de Spurgeon!


Faremos bem em lembrar que é precisamente no convite ao arrependimento e à fé que Deus leva a efeito Seu chamado eficaz. Há um chamado geral que todos devem ouvir. Como já demonstramos, devemos pregar a todos. Devemos semear a Palavra de Deus, essa semente preciosa, em corações sensíveis e em corações de mármore. Mas em meio a esse chamado geral, Deus chama Seus eleitos e estes ouvem a voz de Cristo e a seguem (Jo. 10.27). O puritano Thomas Watson afirmou, referindo-se a este ensino bíblico:


"Existe uma dupla vocação: 1) uma vocação externa, que não é outra coisa senão o bendito oferecimento da graça de Deus por meio do Evangelho, sua mensagem aos pecadores quando os convida a vir e aceitar a misericórdia do Senhor. Sobre isso diz o nosso Salvador: "Pois muitos são chamados, mas poucos são escolhidos" (Mt 22.14). Essa vocação externa é insuficiente para a salvação, mas suficiente para tornar indesculpáveis os homens. 2) Uma vocação interna, eficaz, quando Deus subjuga maravilhosamente o coração e atrai a vontade para Cristo. Isso é, como diz Agostinho, uma vocação eficaz. Deus, por meio da vocação externa, toca uma trombeta nos ouvidos; por meio da vocação interna Ele abre o coração, como fez com Lídia (At 16.14). A vocação externa pode levar os homens a fazer uma profissão de Cristo, mas a vocação interna os leva a tomar posse de Cristo. A vocação externa confronta o pecador, a vocação interna o transforma". [26]


Deus é sincero em Seus convites para a salvação


Mas se Deus sabe que somente os eleitos receberão a salvação, como pode ser sincero quando convida a todos, indiscriminadamente, para que recebam o Evangelho? Há sinceridade em Deus quando diz por meio de Ezequiel: "Juro pela minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem dos seus caminhos e vivam. Voltem! Voltem-se dos seus maus caminhos! Por que o seu povo haveria de morrer, ó nação de Israel?" (Ez 33.11)? São genuínas as expressões de dor e as palavras do Senhor sobre Jerusalém que se encontram registradas em Lucas 19.41,42? "Quando se aproximou e viu a cidade, Jesus chorou sobre ela e disse: Se você compreendesse neste dia, sim, você também, o que traz a paz! Mas agora isso está oculto aos seus olhos". E quando Cristo diz a Jerusalém: "Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram" (Mt 23.37)? Por acaso Deus está fingindo em Deuteronômio 5.29; 32.29; Salmo 81.13 ou Isaías 48.18? É inimaginável e inconcebível pensar tal coisa. O teólogo presbiteriano R. L. Dabney tem toda a razão quando afirma, comentando a passagem de Lucas 19.41,42: "Com alegria cremos que quando vemos Jesus chorando sobre a cidade condenada de Jerusalém, vimos o Pai e podemos ter uma ideia da misericórdia e benignidade divinas". [27]


Nestes e em outros apelos, Deus é sincero e verdadeiro, ainda que existam outras considerações em Sua atuação que, na maioria das vezes, nos são desconhecidas. Refletindo sobre Deuteronômio 5.29; 32.29; Salmo 81.13 e Isaías 48.18, John Murray diz: "Não há dúvida de que o Senhor apresenta a Si mesmo, nessas passagens, como desejando ardentemente o cumprimento de algo que o exercício de Sua vontade soberana não decretou que aconteça". [28]


Novamente Dabney nos proporciona um exemplo histórico que serve para esclarecer um pouco esta questão. O general George Washington assinou uma ordem de execução do major Andrew. Ao mesmo tempo, declarou a assinava "com a mais profunda relutância e condolência". Mas o fato é que a ordem foi assinada. Dabney afirma: "Washington tinha pleno poder para matar ou salvar. Sua compaixão pelo criminoso era real e profunda. No entanto, assinou a sentença de morte espontaneamente. A decisão de Washington de assinar a sentença de morte de Andrew não aconteceu porque sua compaixão fosse fingida, mas porque estava racionalmente vencida por um conjunto de critérios mais elevados, como a sabedoria, o dever, o patriotismo e a indignação moral. Washington tinha autoridade oficial e material para soltar o criminoso, mas não tinha a sanção de sua própria sabedoria ou justiça. Sua piedade era, obviamente, genuína, mas sua decisão de não ceder foi livre e soberana". [29]


Esse exemplo ilustra como Deus pode ser sincero em seus apelos a todos os pecadores, ao mesmo tempo em que sabe que nem todos responderão ao Seu chamado. Louis Berkhof lembra que pode-se fazer várias distinções dentro da vontade de Deus. Fala da vontade decretatória e da vontade preceptiva de Deus.


"A primeira é aquela por meio da qual Deus se propõe ou decreta tudo o que deve acontecer, seja que queira cumpri-lo efetivamente (causativamente) ou permitir que aconteça por meio da livre agência de Suas criaturas racionais. A segunda é a regra de vida que Deus traçou para Suas criaturas morais, indicando os deveres que Ele lhes impõe. A primeira sempre é cumprida, a segunda é desobedecida com frequência". [30]


Comentando essas distinções na vontade de Deus, J. I. Packer acrescenta:


"Ambos os aspectos da vontade de Deus são fatos, ainda que o modo como se relacionam na mente de Deus é inescrutável para nós. Em última instância, estamos diante de um grande mistério. [31] Spurgeon, pregando sobre 1Timóteo 2.3,4, disse: 'É o desejo de Deus que os oprimidos sejam libertados; no entanto, há muitos oprimidos que jamais serão libertados. É o desejo de Deus que os enfermos não sofram. Você duvida disso? Mas não é o seu próprio desejo? E, no entanto, o Senhor não opera um milagre para curar cada enfermo. É o desejo de Deus que Suas criaturas sejam felizes. Pode alguém negar isso? Ele não intervém milagrosamente para fazer com que todos nós sejamos felizes, porém seria perversidade supor que Ele não deseja a felicidade de todas as criaturas que fez. Deus tem uma bondade infinita, que, no entanto, não é levada a cabo pela Sua infinita onipotência; e se alguém me perguntar o motivo, não saberei responder". [32]


Os pecadores, responsáveis por rejeitar o Evangelho


Já assinalamos anteriormente, ao citar Calvino, que o pecador "duplica" seu pecado por não corresponder à tão grande clemência e liberalidade de Deus, isto é, por não aceitar o convite de Deus de reconciliar-se com Ele mesmo, abrigando-se em Sua misericórdia. É crucial reafirmar que a Palavra de Deus declara pessoalmente responsáveis os que ouvem o Evangelho e decidem rejeitá-lo. Ninguém pode fugir ao decreto de Deus, pois Deus nos declara responsáveis se rejeitamos o Evangelho. As Escrituras afirmam com a mesma clareza a soberania de Deus e a responsabilidade do homem. Talvez uma das passagens que ensinem com mais ênfase essas duas realidades seja Lucas 22.22: "O Filho do Homem vai, como foi determinado; mas ai daquele que o trair!". A traição de Judas ocorreu de acordo com o plano de Deus (At 2.23); mas Judas, como indica o lamento do Senhor, é responsável pela mesma. Deus é soberano na determinação dessa entrega e morte de Jesus (At 4.28), mas Judas é culpado por sua motivação perversa ao entregar o Senhor (Mt 26.14-16).


No lamento de Jesus sobre Jerusalém, é o próprio Senhor quem assinala a responsabilidade de seus ouvintes, quando declara: "Quantas vezes eu quis reunir seus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos debaixo de suas asas, mas vocês não quiseram!". A incredulidade é sempre um pecado aos olhos de Deus, e ninguém pode pretender não ser culpado de incredulidade caso rejeite o Evangelho: "Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no nome do Filho Unigênito de Deus" (Jo 3.18). Os Cânones de Dort falam a respeito dessa responsabilidade:


"A culpa de que muitos, sendo chamados pelo ministério do Evangelho, não se aproximem nem se convertam, não está no Evangelho, nem em Cristo, o qual é oferecido por meio do Evangelho, nem em Deus que chama por meio do Evangelho, e inclusive comunica diversos dons aos que Ele chama; a culpa, porém, está nos que são chamados, alguns dos quais, sendo indiferentes, não aceitam a palavra de vida; outros a aceitam, mas não no íntimo de seus corações, e depois de um entusiasmo passageiro retrocedem novamente de sua fé temporária; outros afogam na semente da palavra com os espinhos dos cuidados e deleites deste século, e não dão nenhum fruto; como nos ensina nosso Salvador na parábola do semeador". [33]


Pode ser difícil para nós compreender a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, mas ambas são verdadeiras, e no Dia do Juízo o próprio Deus demonstrará cabalmente a todos aqueles que rejeitaram Jesus que eles são pessoalmente responsáveis por sua culpa e que deverão responder por isso. Em muitos casos nos parece complicado estabelecer tal responsabilidade, mas naquele dia Deus revelará os segredos e as intenções dos corações dos homens e os julgará com justiça (Rm 2.1-16).


Livre oferta versus apelo para vir à frente


Não devemos confundir a livre oferta do Evangelho com os apelos para "vir à frente" que são feitos aos perdidos depois de algumas reuniões evangelísticas. Essa prática, em sua forma mais primitiva, foi introduzida nas igrejas evangélicas pelo evangelista norteamericano Charles Finney no século XIX. [34] Tal costume não tem base bíblica e pode ser perigoso para a saúde espiritual dos novos convertidos. O perigo desse sistema consiste na identificação que se estabelece entre a "decisão" do pecador de levantar a mão ou de ir à frente numa sala de reuniões para "receber a Cristo" com a conversão bíblica. A conversão é, efetivamente, o recebimento de Cristo como Senhor e Salvador de acordo com o ensino do Evangelho: "Contudo, aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus" (Jo 1.12). No entanto, em nenhum lugar do Novo Testamento encontramos esse recebimento de Cristo identificado com uma atividade física determinada. Mas alguns dirão: "Veja, estou certo de que muitos foram salvos desse modo". Não duvido disso, mas, como diz I. H. Murray:


"Sem dúvida, se uma pessoa que está sob a ação salvífica do Espírito Santo é chamada com autoridade por um pregador para ir à frente, é provável que ela o faça, em respeito ao que acredita ser um mandato divino. E se lhe for dito que sua resposta foi vital para seu novo nascimento, ela acreditará nisso até que descubra novas ideias. Nem por um instante diremos que ao aplicar o sistema de apelos não haverá conversão genuína. O que queremos dizer é que tal sistema não possui, verdadeiramente, conexão alguma com o novo nascimento. As pessoas são convertidas apesar dos apelos, e não graças aos apelos". [35]


Sem dúvida alguma, a objeção mais grave ao sistema de apelos é que seus defensores creem que o mandamento bíblico de arrepender-se e crer no Evangelho (Mc 1.15) implica a capacidade do homem caído de responder por si mesmo a esse mandamento. Estamos, realmente, diante de um extraordinário problema teológico. Confunde-se a responsabilidade do homem de arrepender-se e crer com a capacidade de fazê-lo. Biblicamente, o homem é responsável diante de Deus pela sua incredulidade e rejeição ao Evangelho. Mas, ao mesmo tempo, o homem é incapaz de responder positivamente ao Evangelho por si mesmo. [36] Jesus diz aos seus contemporâneos: "Vocês não querem vir a mim para terem vida" (Jo 5.40). Além disso, o homem é responsável pela sua própria incapacidade espiritual de responder ao Evangelho. Se o homem pensa que pode contribuir para sua salvação ou que é necessário para a mesma que faça alguma coisa como levantar a mão ou ir à frente numa reunião ou culto, então, novamente nas palavras de Murray, "fazem com que creiam que fazem algo digno de mérito diante de Deus, enquanto que aos que não respondem se lhes dá a impressão de que estão desobedecendo a Deus". [37] O homem, desprovido da graça de Deus, não pode fazer nada para predispor-se para a salvação. E nem podemos dizer que a graça ajuda o homem a decidir-se por Cristo. A obra da graça é ainda mais profunda. Transforma completamente o homem para que ele possa, então, responder ao Evangelho. A graça não nos ajuda a crer. A graça nos dá vida em primeiro lugar, para que então possamos crer (Ef 2.5,8).


Não temos base bíblica para igualar a conversão com uma determinada atividade física. O Novo Testamento requer arrependimento para com Deus e fé em nosso Senhor Jesus Cristo (At 20.21) para a salvação. Devemos convidar os pecadores para que recebam Cristo, mas não devemos pensar, nem por um instante sequer, que a fé e o arrependimento consistem em ir à frente no culto ou levantar a mão para, como se diz, receber Cristo. A conversão é uma obra espiritual de Deus, e não deve ser confundida com nenhuma ação externa. Por outro lado, uma vez convertido, o novo crente deve expressar sua fé fisicamente tal como ordena o Senhor (por exemplo, quando nos diz que devemos confessar seu nome diante dos homens, Mt 10.32). Mas esta é uma ação do crente, não daquele que ainda não é crente. Portanto, não temos autoridade para acrescentar uma nova condição, tal como uma expressão física externa, à fé e ao arrependimento estabelecidos nas Escrituras. Devemos exortar e rogar aos pecadores que se reconciliem com Deus em Cristo Jesus e dirigi-los a Ele e somente a Ele, não a nenhuma outra pessoa ou atividade ou gesto ou ritual.


AS DOUTRINAS DA GRAÇA SÃO EFICIENTES NA EVANGELIZAÇÃO


Finalmente, é imprescindível assinalar que as Doutrinas da Graça, longe de ser um obstáculo para a pregação do Evangelho, são na verdade suas melhores aliadas. Sabemos que elas estão reveladas nas Escrituras para o nosso bem espiritual. Por exemplo, Paulo fortalece a fé dos crentes em Roma lembrando-lhes que nada poderá separá-los do amor de Deus em Cristo Jesus. Nem tribulação, nem angústia, nem perseguição, nem fome nem desnudez, nem a guerra ou o diabo, nem a morte poderão separá-los do amor de Deus em Cristo Jesus. Como Paulo pode ter tanta certeza disso? A base dessa segurança está no fato de que todos os que foram predestinados para serem conforme à imagem do Filho serão finalmente glorificados (Rm 8.28-39). [38] É impossível que aqueles que Deus predestinou para a salvação, e por quem Cristo derramou seu sangue e agora intercede por eles, possam se perder. A predestinação e as Doutrinas da Graça de modo geral são um grande consolo para o povo de Deus, especialmente em tempos de medo e tribulação. Alguns pretendem ser mais sábios que Deus e afirmam que tais coisas pertencem aos "mistérios não revelados" de Deus (Dt 29.29). O Espírito Santo não pensa dessa forma. Por isso, vemos como o Senhor repete várias vezes essas verdades em seus ensinos. Como simples amostra, veja os seguintes textos: Mt 11.25-27; Jo 6.37,44,65,70; 8.47; 10.16,26-29; 15.16; 17.2,8,9,12,24; etc...


Além disso, precisamos refletir na razão pela qual essas doutrinas eram pregadas por nosso Senhor Jesus Cristo mesmo num contexto evangelístico e muitas vezes hostil. Creio que a explicação está no fato de que essas doutrinas funcionam como tenazes ou tesouras. Sabemos que esses instrumentos são eficientes em segurar ou cortar pelo emprego simultâneo de seus braços. Do mesmo modo, as Doutrinas da Graça manifestam sua eficácia evangelística no efeito simultâneo que produzem sobre os perdidos. Por um lado, humilham o pecador ao mostrar que ele não pode fazer coisa nenhuma para salvar-se. Ao ensinar que o homem perdido é incapaz de salvar a si próprio, as Doutrinas da Graça humilham o orgulhoso coração humano e atacam a soberba natural que nos faz pensar que podemos nos salvar ou, pelo menos, contribuir de algum modo para a nossa salvação. Esse processo de humilhação é absolutamente necessário, pois sem ele não há conversão verdadeira a Deus.


Por outro lado, essas doutrinas mostram ao homem que Deus é o único capaz de salvá-lo. O uso combinado desses dois ensinos coloca o pecador na posição necessária para pedir a misericórdia de Deus, para clamar a Deus por salvação. Como disse Abraham Kuyper em seu clássico Evangelismo Teocêntrico:


"Não há situação pior do que a do pecador impenitente. Deve crer em Cristo, pois se não o fizer, será condenado. No entanto, não pode crer por si mesmo. Deve estar consciente de ambas verdades. Se entender que a salvação é obra do Espírito Santo, olhará para fora de si mesmo e dependerá unicamente da graça de Deus. E esse é precisamente o ato da fé salvadora". [39]


Para T. Watson, esse olhar para fora de si mesmo, de nossa aparente justiça e méritos, constitui a evidência do chamado eficaz de Deus. Em resposta à pergunta que muitos fazem, sobre como alguém pode saber se foi chamado eficazmente, ele diz:


"Quem é chamado para a salvação é chamado para fora de si mesmo; não somente fora de seu eu pecaminoso, mas também fora de seu eu justo; rejeita sua obediência e seus dons morais. "Não tendo a minha própria justiça" (Fp 3.9). Aquele cujo coração foi tocado por Deus por meio do Espírito Santo coloca o ídolo da justiça própria aos pés de Cristo, para ser pisado por Ele. (...) É maravilhoso quando alguém é chamado para fora de si mesmo. Essa renúncia, como diz Agostinho, é o primeiro passo da fé salvadora". [40]


É possível pregar desse modo, utilizando as Doutrinas da Graça? Sem dúvida, e Spurgeon, o Príncipe dos Pregadores, o fez com frequência. Observemos como ele fazia isso. Pregando sobre a expiação limitada, por exemplo, exorta o pecador da seguinte forma:


"Responderei a uma pergunta: Por quem Cristo morreu? Responda-me algumas perguntas e eu direi se Cristo morreu por você ou não. Você quer um Salvador? Sente necessidade de um? Você tem consciência do pecado nesta manhã? O Espírito Santo o fez ver que está perdido? Você está consciente de que Cristo é a sua única esperança neste mundo? Compreende que não pode oferecer por você mesmo uma expiação que satisfaça a justiça de Deus? Você abandonou toda esperança em você mesmo? É capaz de colocar-se de joelhos e dizer: 'Salva-me, Senhor, ou perecerei'? Se sim, Cristo morreu por você". [41]


Em outra oportunidade, pregando sobre a doutrina da eleição, Spurgeon disse:


"E agora, finalmente, algumas palavras para os não-convertidos. (...) Animem-se, tenham esperança, pecadores, porque há eleição! Longe de desesperá-los e entristecê-los, é verdadeiramente animador que haja eleição. O que aconteceria se eu lhes dissesse que ninguém pode salvar-se, que não há ninguém ordenado para a vida eterna? Não retorceriam suas mãos em desespero, dizendo: 'Como nos salvaremos, então, se não há eleitos?'. Mas eu digo a vocês que há uma multidão de eleitos, multidão incontável, hoste inumerável, além de todo cálculo. Portanto, tenham ânimo, pobres pecadores! Sacudam seu abatimento - não poderá você ser um eleito, visto que há tantos?  Há alegria e consolo para você! Não somente tenha ânimo, mas venha e prove o Senhor. Lembre-se que, se você não tivesse sido eleito, não perderia nada com isso. O que disseram os quatro leprosos? 'Vamos, pois, agora, e passemos ao exército dos sírios; se eles nos deixarem viver, viveremos, e se nos matarem, morreremos'. Oh, pecador, venha ao trono da graça! Você pode morrer aí mesmo onde está. Venha a Deus, mesmo supondo que Ele o rejeita, supondo que Ele rechaçará suas mãos suplicantes - coisa impossível - e contudo, você não perderá nada, não será mais condenado do que é agora; e se fosse, você teria, pelo menos, a satisfação de poder dizer a Deus, levantando seus olhos no inferno: 'Deus, eu pedi misericórdia e Tu não a concedeste; supliquei e chorei, mas Tu a negaste'". [42]


Como podemos ver nos sermões de Spurgeon, as Doutrinas da Graça podem ser utilizadas como tenazes espirituais que aprisionam o pecador. Por um lado, dizem a ele que não pode fazer nada para salvar-se; por outro lado, afirmam igualmente que somente Deus pode salvar e que Ele somente salvará Seus escolhidos, aqueles pelos quais Cristo morreu. Então o pecador estará em condições de clamar a Deus por misericórdia. Spurgeon termina o sermão anterior com a seguinte observação:


"E mais, pobre alma! Creia que não somente não perderá nada ao vir a Deus, mas que há algo muito melhor. Você ama a doutrina da eleição? Está disposto a aceitar a sua justiça? Diga, pois: 'Sei que estou perdido e que o mereço; e que se meu irmão está salvo, não posso reclamar. Se Deus me destruir, sou merecedor disso, e se salva os que estão ao meu lado, Ele pode fazer o que quiser com o que é Seu, e eu não posso sentir-me ofendido por isso'. Você pode dizer isso sinceramente, desde o mais profundo de seu coração? Se for assim, a doutrina da eleição fez justo efeito em seu espírito, e você não está longe do Reino dos céus. Você foi trazido aonde deveria estar, onde o Espírito quer que você esteja, e sendo assim esta manhã, vá em paz; Deus perdoou seus pecados. É impossível ter essa sensação se o Espírito de Deus não operar em seus corações. Alegrem-se, pois, por isso. Descansem sua esperança na cruz de Cristo. Não pensem na eleição, mas pensem n'Ele: Jesus no princípio, depois e por toda a eternidade". [43]

A história de Igreja testifica que, em inúmeras ocasiões, aprouve a Deus salvar por meio da exposição dessas doutrinas, já que elas são o meio pelo qual Ele humilha o pecador e o prepara para receber Sua graça. No assim chamado Grande Despertamento, o avivamento que aconteceu em diversas partes da Inglaterra e de suas colônias na América, durante os anos 1740-1742 (e em alguns lugares depois dessas datas), Deus utilizou a pregação de mensagens que enfatizavam a soberania absoluta de Deus com respeito à salvação dos pecadores. Um dos historiadores desse avivamento, Joseph Tracy, fala das doutrinas que eram ensinadas então, e do efeito que tiveram nos corações daquelas pessoas:


"A ideia da 'liberdade justa de Deus' é de um poder tremendo. Inclui tudo aquilo que significa a doutrina da eleição. (...) Deus é livre com respeito à outorga da salvação. Sua liberdade é perfeita. Nada que o homem natural tenha feito, ou possa fazer, de modo nenhum coloca em obrigação essa liberdade nem força Deus a adotar uma decisão favorável. E essa Sua liberdade é justa. É correto que seja assim. Os pecadores merecem e são dignos de uma condenação instantânea; e a liberdade de Deus para infligi-la agora mesmo ou diferi-la por alguns momentos, ou salvá-los dela completamente, de acordo com o desígnio de Sua vontade, é uma liberdade justa. Quando o pecador vê e sente que essa doutrina é verdadeira, sabe que não lhe resta outra alternativa senão clamar a Deus pedindo misericórdia; e sabe que quando clama ao Senhor não há nada em suas orações que obrigue a liberdade justa de Deus a ouvi-lo e que ele não tem nada do que depender, como fundamento para sua esperança de ser ouvido, que não esteja na misericórdia de Deus em Cristo. Não pode apelar à justiça de Deus, já que esta somente o condena; nem a nenhum outro atributo que não seja a misericórdia, que, em sua própria natureza, é livre e não pode ser coagida. E não pode encontrar nenhuma evidência satisfatória de que Deus esteja disposto a ser misericordioso  para com os pecadores, senão somente no fato de que Ele deu Seu Filho para morrer por eles.  Aqui está a única base para a esperança. Então o pecador deve apresentar-se e elevar sua oração sabendo que merece ser rejeitado, sabendo que nada próprio, nem mesmo a sua oração, diminui a liberdade da justiça de Deus, para receber ou rejeitar de acordo ao desígnio de Sua vontade. E esse é o lugar ao qual o pecador deve ser atraído. Essa é a dependência que precisa sentir e esse é o sentimento que o levará a buscar a Deus em oração". [44]


Evidentemente, Spurgeon não pregou sempre, em todos os seus sermões, sobre as Doutrinas da Graça, nem todos os avivamentos tiveram esse enfoque, nem é imprescindível que nós preguemos sempre essas doutrinas em toda e qualquer mensagem evangelística. O propósito dessas citações é mostrar que, longe de ser um obstáculo à evangelização, as Doutrinas da Graça humilham o pecador e o levam a reconhecer que a salvação pertence ao Senhor e procede somente do Senhor. De uma coisa podemos estar certos: no Céu haverá "uma grande multidão que ninguém" pode "contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé, diante do trono e do Cordeiro, com vestes brancas e segurando palmas. E" clamarão "em alta voz: A salvação pertence ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro. Todos os anjos" estarão "em pé ao redor do trono, dos anciãos e dos quatro seres viventes. Eles se" prostrarão "com o rosto em terra diante do trono e" adorarão "a Deus, dizendo: Amém! Louvor e glória, sabedoria, ação de graças, honra, poder e força sejam ao nosso Deus para todo o sempre. Amém!" (Ap 7.9-12). Com essa certeza, perseveraremos em evangelizar. Os propósitos divinos de graça e salvação não podem ser frustrados pelos pecadores nem por Satanás. Deus receberá toda a glória de todos e de cada um de Seus eleitos, nenhum deles faltará diante de Deus. Essa é a nossa esperança e consolo ao levar o Evangelho em nosso tempo. Que essa visão domine nossa forma de pensar e agir, sempre.


Segunda e última parte de Una fe para un mundo perdido, Capítulo 5 do livro:
PUIGVERT, Pedro (ed.). Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo Histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava: Peregrino, 2002, pp. 213-239. Leia a parte 1 aqui.


NOTAS


[18] Paul Helm: The Providence of God, p. 219 (Inter-Varsity Press, 1993).
[19] Parte desse vínculo está reproduzida em Ian S. Barter: "Some Missionary Lessons for Today", Banner of Truth Magazine, p. 13, nº 305, fevereiro de 1989.
[20] Spurgeon teve de levantar sua voz durante seu ministério contra aqueles que abraçaram o hipercalvinismo. Sua preocupação era primordialmente prática. Iain Murray diz: "O hipercalvinismo é mais do que um mero desvio teológico, e Spurgeon o combateu energicamente porque sabia que ele reduz as igrejas à inatividade ou mesmo à parálise completa. Conheci alguns irmãos que liam a Bíblia ao contrário. Diziam: 'Deus tem um propósito que certamente será cumprido; portanto, não nos moveremos nem um palmo. Todo o poder está nas mãos de Cristo; portanto, ficaremos quietos'. Mas não é assim que Cristo lê essa passagem. Ao contrário, Ele diz: 'Todo o poder foi-me dado, portanto, indo, façam algo'. Aos olhos de Spurgeon, o hipercalvinismo tinha seu ponto mais defeituoso no fato de não possuir zelo nenhum pelo evangelismo militante e de alcance mundial. Mesmo que soubesse que muitos cristãos imersos no hipercalvinismo eram melhores do que o credo que defendiam, via claramente que tanto as evidências teológicas quanto as históricas indicavam que a influência desses ensinos nunca encorajou a obra missionária fervorosa". Iain H. Murray, Spurgeon: um príncipe esquecido, pp. 53-54 (The Banner of Truth, 1964). Publicado no Brasil sob o título O Spurgeon que foi esquecido pela Editora PES.
[21] Iain H. Murray: Spurgeon vs. Hyper-Calvinism. The Battle for Gospel Preaching, p. 71 (The Banner of Truth, 1997).
[22] João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III, XXIV, 15 (Editora Unesp, página 436).
[23] Ibid., III, XXIV, 2 (Editora Unesp, páginas 420-421).
[24] Ibid., III, XXIV, 16 (Editora Unesp, páginas 438-439).
[25] Iain H. Murray: Spurgeon, um príncipe esquecido, pp. 54-55 (The Banner of Truth, 1964).
[26] T. Watson: Consolación Divina, pp. 115-116. Editorial Peregrino. Alcázar de S. Juan, 1989.
[27] "God's indiscriminate Proposals of Mercy, as related to his Power, Wisdom and Sincerity", em Discussions, de R. L. Dabney. The Banner of Truth, 1967, pp. 308-309. Veja o Apêndice 2: "God's love to the non-elect", artigo de Robert J. Sheehan.
[28] John Murray: "The Free Offer of the Gospel", p. 119, em Collected Writings, vol. 4 (The Banner of Truth, 1982).
[29] Ibid., pp. 285-286.
[30] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 90 (TELL, Grand Rapids, Michigan, 1983).
[31] Packer, p. 94.
[32] Iain H. Murray: Spurgeon vs. Hyper-Calvinism. The Battle for Gospel Preaching, p. 152 (The Banner of Truth, 1997).
[33] Cânones de Dort, capítulos III, IV, 9, em Confesiones de fe de la Iglesia, p. 125 (Literatura Evangélica, Rotterdam, 1983).
[34] Sobre Finney, veja K. J. Hardman: C. G. Finney Revivalist and Reformer (Evangelical Press, 1990). Veja também Iain Murray: Revival & Revivalism (The Banner of Truth, 1994) e Iain Murray: Pentecost Today?, capítulo 2 (The Banner of Truth, 1998).
[35] Iain Murray: El Obstáculo al Evangelismo, pp. 31-32 (Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1973).
[36] Sobre a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, o material publicado por Robert J. Sheehan no livro Responsables ante el Dios Soberano (Editorial Peregrino, Moral de Calatrava, 1997), é excelente. Veja também Iain Murray: Pentecost Today?, Apêndice 2: "Co-ordination of Grace and Duty" (The Banner of Truth, 1998).
[37] Iain Murray. El Obstáculo al Evangelismo, p. 34 (Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1973).
[38] Comentando sobre a expressão "aos que justificou, também glorificou" em Romanos 8.30, John Murray afirma: "A glorificação, diferentemente da chamada e da justificação, pertence ao futuro. Não seria possível, nesse contexto (cf. 5.2; vv. 17,18,21,24,25,29), considerá-la como outra coisa além da plenitude do processo de salvação; e, embora "glorificou" esteja no tempo passado, esta forma verbal é proléptica, dando a certeza de sua realização". Na nota de rodapé, ele acrescenta: "Por certo, a forma verbal é um aoristo proléptico que representa, conforme declara Meyer, 'a glorificação futura como tão necessária e certa, que ela aparece como algo já outorgado e completado juntamente com edikaiosen'" (MURRAY, John. Romanos. São José dos Campos: Fiel, 2003, p. 349).
[39] R. B. Kuiper: Evangelismo teocéntrico, p. 175 (TELL, Grand Rapids, Michigan, 1977).
[40] T. Watson, pp. 127-128.
[41] C. H. Spurgeon: No hay otro Evangelio, p. 253, sermão sobre a expiação limitada (El Estandarte de la Verdad, 1997).
[42] Ibid., sermão sobre a eleição, pp. 274-275.
[43] Ibid., p. 275.
[44] J. Tracy: The Great Awakening, pp. 10-11 (The Banner of Truth, 1976).