A LIVRE OFERTA DO EVANGELHO
Deus utiliza meios para cumprir Seus propósitos
Uma questão intimamente ligada à evangelização e às Doutrinas da Graça é a seguinte: se Deus tem seus escolhidos, que sentido há em pregar o Evangelho? Que sentido há em convidar os pecadores para receber Cristo como Senhor e Salvador? Uma das objeções mais comuns feitas aos que creem nas Doutrinas da Graça é precisamente esta. Se os salvos já foram escolhidos de antemão por Deus, para que evangelizar?
Essa objeção ignora o fato de que Deus não somente escolheu os que serão salvos (At 13.48), mas também o meio pelo qual hão de ser salvos. E esse meio é a pregação do Evangelho. Jesus, como já vimos, enviou Seus discípulos para evangelizar o mundo. A parábola do grande banquete (Lc 14.15-24) ilustra perfeitamente o zelo evangelístico que deve caracterizar os servos do Senhor: "Então o senhor disse ao servo: Vá pelos caminhos e valados e obrigue-os a entrar, para que a minha casa fique cheia" (v. 23). Esse é o teor do ensino de Paulo em Romanos 10.12-17:
"Não há diferença entre judeus e gentios, pois o mesmo Senhor é Senhor de todos e abençoa ricamente todos os que o invocam, porque 'todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo' [Jl 2.32]. Como, pois, invocarão aquele em quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não houver quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: 'Como são belos os pés dos que anunciam boas novas!' [Is 52.7]. No entanto, nem todos os israelitas aceitaram as boas novas. Pois Isaías diz: 'Senhor, quem creu em nossa mensagem?' [53.1]. Consequentemente, a fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo".
Deus efetua Seus propósitos de salvação através da pregação do Evangelho. Não existe nenhuma incoerência entre crer que somente os eleitos serão salvos e afirmar ao mesmo tempo que Deus usará determinados meios para levá-los à salvação. Paulo discorre sobre a eleição em Romanos 9 e agora no capítulo 10 nos recorda que "a fé vem por se ouvir a mensagem". Deus utiliza meios, os meios estabelecidos por Ele mesmo a fim de levar os escolhidos à fé salvífica. Paul Hem, catedrático de História e Filosofia da Religião no King's College de Londres, afirma:
"De acordo com a Escritura, Deus não ordena os fins sem ordenar também os meios; ambos são inseparáveis. Se ordena a vitória, ordena igualmente a batalha, se ordena a batalha, ordena igualmente os exércitos, e assim sucessivamente. Portanto, ao ordenar um fim, Deus ordena igualmente os meios que farão acontecer esse fim, e eu, como criatura que está incluída nesse ordenamento divino, participo com um papel importante nesses meios. O papel que desempenho talvez não seja sempre o que desejo desempenhar, e às vezes nem estou consciente de desempenhar algum papel. Não obstante, minhas ações têm consequências, querendo eu ou não, e ao realizar essas ações, estou contribuindo para a soma total desse ordenamento de meios chamado providência divina" [18].
Além disso, a História da Igreja demonstra que, longe de diminuir o zelo evangelístico, as Doutrinas da Graça sempre funcionaram como uma mola impulsora de missões e evangelismo. Os maiores pregadores e evangelistas da Igreja (com raríssimas exceções) creram firmemente nas Doutrinas da Graça. Basta ler sobre as vidas de homens como Charles Haddon Spurgeon ou George Whitefield para comprovarmos essa realidade. Como exemplo, talvez seja suficiente mencionar alguns dos princípios fundamentais que influenciaram a obra evangelística de um dos maiores missionários da Igreja Cristã em todos os tempos: William Carey. No chamado "Vínculo da Fraternidade Missionária de Serampore", documento redigido por Carey e seus companheiros como expressão dos princípios que norteariam sua obra na Índia, podemos ler estas palavras:
"Estamos completamente persuadidos de que Paulo pode plantar e Apolo pode regar, mas somente Deus pode dar o crescimento. Estamos convencidos de que aqueles que estão ordenados para a vida eterna crerão, e que somente Deus pode acrescentar à Igreja os que serão salvos. No entanto, não podemos observar, sem admiração, que Paulo, o grande campeão das gloriosas doutrinas da graça livre e soberana, foi quem mais se destacou pelo seu zelo na obra de persuadir os homens a se reconciliarem com Deus. Neste aspecto, ele é um nobre exemplo para nós, para que o imitemos. Nosso Senhor anunciou aos Apóstolos que eram pescadores que a partir daquele momento eles seriam pescadores de homens, afirmando que, em todo tempo e mesmo em meio às decepções, eles deveriam ter como único objetivo aproximar os homens às praias da vida eterna" [19].
Portanto, longe de promover a omissão ou a letargia, as Doutrinas da Graça, corretamente compreendidas, são promotoras da mais fervorosa pregação evangelística [20].
O Evangelho é oferecido a todos indiscriminadamente
Outra objeção habitualmente levantada é um pouco mais complexa. Dizem alguns: "Sim, devemos pregar o Evangelho, mas não devemos apelar aos pecadores para que aceitem a Cristo. Isso somente serviria para rebaixar o Rei dos reis a uma posição de mero servo que "apela" aos pecadores para que recebam a Sua bondade. Fazer isso é desonrar a Deus". Essa objeção pressupõe uma barreira intransponível entre a soberania de Deus (o fato de que Deus escolhe os que serão salvos) e o que chamamos de livre oferecimento do Evangelho (o fato de que Deus convida a todos, indiscriminadamente, a receber o Evangelho). Como podemos responder a essa objeção? Em primeiro lugar, precisamos examinar o testemunho bíblico para ver se nosso Senhor ou os Apóstolos sentiram que possa existir alguma impossibilidade em crer na soberania de Deus e ao mesmo tempo proclamar livremente o Evangelho a todos os homens. As Escrituras estão repletas de textos que enfatizam o convite universal de Deus a todos os homens, para que todos recebam a salvação: Mt 23.37; Lc 13.24; 2Pe 3.9; e no Antigo Testamento, podemos citar como exemplo Ez 18.23,32; 33.11.
Faremos bem em prestar atenção nas palavras de Jesus em Mateus 11.25-30:
"Naquela ocasião Jesus disse: Eu te louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado.
"Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho quiser revelar".
Nestas palavras o ensino sobre a soberania de Deus não poderia estar mais claro. Deus o Pai escolhe e revela o Evangelho a quem Ele quer (v. 25). O Filho faz o mesmo (v. 27). Significativamente, Jesus acrescenta um convite às suas afirmações:
"Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve".
Aqui Jesus está convidando a todos para que recebam o Evangelho. Mesmo que somente os eleitos responderão positivamente a esse oferecimento de Cristo, Ele convida a todos indiscriminadamente. Não há na mente de Cristo nenhuma contradição ao afirmar a soberania de Deus na salvação dos pecadores e convidar esses mesmos pecadores para que sejam salvos. Observamos essa mesma atitude na evangelização levada a efeito pelos Apóstolos. Pedro, por exemplo, pregando logo após a cura milagrosa de um aleijado de nascença (At 3.11-26) e após expor os fatos do Evangelho sobre Jesus Cristo, passa a exortar seus ouvintes para que respondam a essas realidades espirituais, dizendo: "Arrependam-se, pois, e voltem-se para Deus, para que os seus pecados sejam cancelados" (v. 19). Spurgeon, pregando sobre esse texto, afirma:
"Pedro falou sobre o Cristo do Evangelho: pregou de forma pessoal e direta à multidão que havia se reunido ao seu redor. Entre nós surgiu uma escola de homens que dizem pregar corretamente o Evangelho aos pecadores, quando na verdade somente afirmam o que o Evangelho diz sobre morrer sem salvação, e se enfurecem quando qualquer um se atreve a dizer ao pecador: 'creia e arrependa-se'. Pedro não pertencia a esta escola". [21]
Paulo também convida o carcereiro de Filipos a receber a salvação, quando, em resposta ao seu clamor, afirma: "Creia no Senhor Jesus" (cf. At 16.30,31). Ou seja, rogar aos pecadores para que recebam o Evangelho não traz nenhuma desonra para Deus. Ele mesmo apela e roga aos pecadores, como Paulo deixa claro em 2Coríntios 5.20: "Portanto, somos embaixadores de Cristo, como se Deus estivesse fazendo o seu apelo por nosso intermédio. Por amor a Cristo lhes suplicamos: reconciliem-se com Deus". Podemos pecar gravemente contra Deus ao transgredir Suas leis, mas ai daqueles que acrescentam a seus pecados o rejeitar os apelos divinos! Deus demonstra a Sua graça e Sua bondade para com todos os homens indistintamente. Comentando Ezequiel 33.11 ("Diga-lhes: Juro pela minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem dos seus caminhos e vivam. Voltem! Voltem-se dos seus maus caminhos! Por que o seu povo haveria de morrer, ó nação de Israel?"), Calvino diz:
"Porque, ainda que a voz exterior faça somente indesculpáveis aqueles que a ouvem e não a obedecem, apesar disso deve ser considerada um testemunho da graça de Deus com que reconcilia os homens consigo. Entendamos, pois, que a intenção do profeta é dizer que Deus não se alegra da morte do pecador, para que os fiéis confiem em que, tão logo como se arrependam de seus pecados, Deus está preparado para perdoá-los; e, pelo contrário, que os ímpios sintam que se duplica seu pecado por não ter correspondido a tão grande clemência e liberalidade de Deus". [22]
Calvino acrescenta, ainda, para que fique bem claro:
"Quando Deus se mostra com a luz de sua Palavra àqueles que não o mereciam, com isso dá um sinal evidente de sua gratuita bondade. Nisto, pois, brilha já sua imensa bondade; mas não como salvação para todos; pois aos réprobos lhes está preparado um julgamento muito mais grave por ter rechaçado o testemunho do amor de Deus". [23]
Finalmente, comentando sobre as promessas de Deus nas quais são mencionados todos os homens, sem distinção alguma, Calvino assinala:
"No entanto, por que nomeia a todos os homens? É evidente que nomeia a todos a fim de que a consciência dos fiéis goze de maior segurança, vendo que não há diferença alguma entre os pecadores, contanto que creiam; e, a fim de que os ímpios não pretextem que não têm refúgio algum ao qual recolher-se para escapar à servidão do pecado, quando eles o rechaçam com sua ingratidão. Assim, pois, como a uns e a outros se oferece a misericórdia de Deus por meio do Evangelho, não resta outra coisa senão a fé, quer dizer, a iluminação de Deus, que distingue entre os fiéis e os incrédulos, de sorte que os primeiros sintam a eficácia e virtude de sua iluminação, e os outros não consigam fruto algum. Ora, esta iluminação se regula segundo a eterna eleição de Deus". [24]
Obviamente Calvino sustentava que o Evangelho deve ser oferecido a todos: "a uns e a outros se oferece a misericórdia de Deus", diz. Deus demonstra a Sua "bondade gratuita", a Sua "clemência e liberalidade" a todos. Porém, somente os eleitos responderão positivamente, mas essa manifestação da bondade de Deus para com todos torna indesculpáveis os que a rejeitam.
Alguns outros apresentam uma objeção estreitamente relacionada com a anterior. Dizem que existe um tipo de pecadores alertas e dispostos a receber o Evangelho, como o carcereiro de Filipos, e que o Evangelho deve ser pregado a eles. Mas o que nós afirmamos, dizem, é que o Evangelho não deve ser pregado aos que se opõem a ele ou aos indiferentes. Novamente devemos recorrer às Escrituras, e nelas vemos que não somente pecadores como o carcereiro de Filipos foram convidados para receber a salvação, mas também todo tipo de pecadores. Em Atos 8, Pedro insta a Simão, o mago, que se arrependesse e orasse (At 8.20-23). No Salmo 2, os inimigos de Deus são exortados a reconciliarem-se com Ele: "Por isso, ó reis, sejam prudentes; aceitem a advertência, autoridades da terra. Adorem o SENHOR com temor; exultem com tremor. Beijem o Filho, para que ele não se ire e vocês não sejam destruídos de repente, pois num instante acende-se a sua ira. Como são felizes todos os que nele se refugiam!" (Sl 2.10-12). Spurgeon via com desagrado aqueles que acreditavam que somente deveriam pregar a pecadores "conscientes de seu pecado". Iain Murray, comentando um sermão de Spurgeon, diz: "Se o Evangelho é somente para pecadores conscientes, como a Igreja poderia obedecer ao mandato 'Vão por todo o mundo e preguem o Evangelho a todas as pessoas'? Se o crer pertence somente aos penitentes, não pertence a todos os homens, pois as multidões da Terra não satisfazem essa condição". Nesse ponto, Murray cita Spurgeon: "Eu gostaria de levar um desses que só pregam para 'pecadores conscientes' até a capital do reino de Benin. Ali não há pecadores conscientes! Olhe para eles, com a boca manchada de sangue humano, com o corpo besuntado com o sangue de suas vítimas imoladas. Como encontrará, ali, algum mérito nos pecadores? Quanto a mim, minhas palavras seriam: Homens e irmãos: Deus, que fez o Céu e a Terra, enviou Seu Filho Jesus Cristo ao mundo para sofrer pelos nossos pecados, e qualquer um que n'Ele crer não perecerá, mas tem a vida eterna". [25]
Não é preciso acrescentar nada mais às palavras de Spurgeon!
Faremos bem em lembrar que é precisamente no convite ao arrependimento e à fé que Deus leva a efeito Seu chamado eficaz. Há um chamado geral que todos devem ouvir. Como já demonstramos, devemos pregar a todos. Devemos semear a Palavra de Deus, essa semente preciosa, em corações sensíveis e em corações de mármore. Mas em meio a esse chamado geral, Deus chama Seus eleitos e estes ouvem a voz de Cristo e a seguem (Jo. 10.27). O puritano Thomas Watson afirmou, referindo-se a este ensino bíblico:
"Existe uma dupla vocação: 1) uma vocação externa, que não é outra coisa senão o bendito oferecimento da graça de Deus por meio do Evangelho, sua mensagem aos pecadores quando os convida a vir e aceitar a misericórdia do Senhor. Sobre isso diz o nosso Salvador: "Pois muitos são chamados, mas poucos são escolhidos" (Mt 22.14). Essa vocação externa é insuficiente para a salvação, mas suficiente para tornar indesculpáveis os homens. 2) Uma vocação interna, eficaz, quando Deus subjuga maravilhosamente o coração e atrai a vontade para Cristo. Isso é, como diz Agostinho, uma vocação eficaz. Deus, por meio da vocação externa, toca uma trombeta nos ouvidos; por meio da vocação interna Ele abre o coração, como fez com Lídia (At 16.14). A vocação externa pode levar os homens a fazer uma profissão de Cristo, mas a vocação interna os leva a tomar posse de Cristo. A vocação externa confronta o pecador, a vocação interna o transforma". [26]
Deus é sincero em Seus convites para a salvação
Mas se Deus sabe que somente os eleitos receberão a salvação, como pode ser sincero quando convida a todos, indiscriminadamente, para que recebam o Evangelho? Há sinceridade em Deus quando diz por meio de Ezequiel: "Juro pela minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem dos seus caminhos e vivam. Voltem! Voltem-se dos seus maus caminhos! Por que o seu povo haveria de morrer, ó nação de Israel?" (Ez 33.11)? São genuínas as expressões de dor e as palavras do Senhor sobre Jerusalém que se encontram registradas em Lucas 19.41,42? "Quando se aproximou e viu a cidade, Jesus chorou sobre ela e disse: Se você compreendesse neste dia, sim, você também, o que traz a paz! Mas agora isso está oculto aos seus olhos". E quando Cristo diz a Jerusalém: "Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram" (Mt 23.37)? Por acaso Deus está fingindo em Deuteronômio 5.29; 32.29; Salmo 81.13 ou Isaías 48.18? É inimaginável e inconcebível pensar tal coisa. O teólogo presbiteriano R. L. Dabney tem toda a razão quando afirma, comentando a passagem de Lucas 19.41,42: "Com alegria cremos que quando vemos Jesus chorando sobre a cidade condenada de Jerusalém, vimos o Pai e podemos ter uma ideia da misericórdia e benignidade divinas". [27]
Nestes e em outros apelos, Deus é sincero e verdadeiro, ainda que existam outras considerações em Sua atuação que, na maioria das vezes, nos são desconhecidas. Refletindo sobre Deuteronômio 5.29; 32.29; Salmo 81.13 e Isaías 48.18, John Murray diz: "Não há dúvida de que o Senhor apresenta a Si mesmo, nessas passagens, como desejando ardentemente o cumprimento de algo que o exercício de Sua vontade soberana não decretou que aconteça". [28]
Novamente Dabney nos proporciona um exemplo histórico que serve para esclarecer um pouco esta questão. O general George Washington assinou uma ordem de execução do major Andrew. Ao mesmo tempo, declarou a assinava "com a mais profunda relutância e condolência". Mas o fato é que a ordem foi assinada. Dabney afirma: "Washington tinha pleno poder para matar ou salvar. Sua compaixão pelo criminoso era real e profunda. No entanto, assinou a sentença de morte espontaneamente. A decisão de Washington de assinar a sentença de morte de Andrew não aconteceu porque sua compaixão fosse fingida, mas porque estava racionalmente vencida por um conjunto de critérios mais elevados, como a sabedoria, o dever, o patriotismo e a indignação moral. Washington tinha autoridade oficial e material para soltar o criminoso, mas não tinha a sanção de sua própria sabedoria ou justiça. Sua piedade era, obviamente, genuína, mas sua decisão de não ceder foi livre e soberana". [29]
Esse exemplo ilustra como Deus pode ser sincero em seus apelos a todos os pecadores, ao mesmo tempo em que sabe que nem todos responderão ao Seu chamado. Louis Berkhof lembra que pode-se fazer várias distinções dentro da vontade de Deus. Fala da vontade decretatória e da vontade preceptiva de Deus.
"A primeira é aquela por meio da qual Deus se propõe ou decreta tudo o que deve acontecer, seja que queira cumpri-lo efetivamente (causativamente) ou permitir que aconteça por meio da livre agência de Suas criaturas racionais. A segunda é a regra de vida que Deus traçou para Suas criaturas morais, indicando os deveres que Ele lhes impõe. A primeira sempre é cumprida, a segunda é desobedecida com frequência". [30]
Comentando essas distinções na vontade de Deus, J. I. Packer acrescenta:
"Ambos os aspectos da vontade de Deus são fatos, ainda que o modo como se relacionam na mente de Deus é inescrutável para nós. Em última instância, estamos diante de um grande mistério. [31] Spurgeon, pregando sobre 1Timóteo 2.3,4, disse: 'É o desejo de Deus que os oprimidos sejam libertados; no entanto, há muitos oprimidos que jamais serão libertados. É o desejo de Deus que os enfermos não sofram. Você duvida disso? Mas não é o seu próprio desejo? E, no entanto, o Senhor não opera um milagre para curar cada enfermo. É o desejo de Deus que Suas criaturas sejam felizes. Pode alguém negar isso? Ele não intervém milagrosamente para fazer com que todos nós sejamos felizes, porém seria perversidade supor que Ele não deseja a felicidade de todas as criaturas que fez. Deus tem uma bondade infinita, que, no entanto, não é levada a cabo pela Sua infinita onipotência; e se alguém me perguntar o motivo, não saberei responder". [32]
Os pecadores, responsáveis por rejeitar o Evangelho
Já assinalamos anteriormente, ao citar Calvino, que o pecador "duplica" seu pecado por não corresponder à tão grande clemência e liberalidade de Deus, isto é, por não aceitar o convite de Deus de reconciliar-se com Ele mesmo, abrigando-se em Sua misericórdia. É crucial reafirmar que a Palavra de Deus declara pessoalmente responsáveis os que ouvem o Evangelho e decidem rejeitá-lo. Ninguém pode fugir ao decreto de Deus, pois Deus nos declara responsáveis se rejeitamos o Evangelho. As Escrituras afirmam com a mesma clareza a soberania de Deus e a responsabilidade do homem. Talvez uma das passagens que ensinem com mais ênfase essas duas realidades seja Lucas 22.22: "O Filho do Homem vai, como foi determinado; mas ai daquele que o trair!". A traição de Judas ocorreu de acordo com o plano de Deus (At 2.23); mas Judas, como indica o lamento do Senhor, é responsável pela mesma. Deus é soberano na determinação dessa entrega e morte de Jesus (At 4.28), mas Judas é culpado por sua motivação perversa ao entregar o Senhor (Mt 26.14-16).
No lamento de Jesus sobre Jerusalém, é o próprio Senhor quem assinala a responsabilidade de seus ouvintes, quando declara: "Quantas vezes eu quis reunir seus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos debaixo de suas asas, mas vocês não quiseram!". A incredulidade é sempre um pecado aos olhos de Deus, e ninguém pode pretender não ser culpado de incredulidade caso rejeite o Evangelho: "Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no nome do Filho Unigênito de Deus" (Jo 3.18). Os Cânones de Dort falam a respeito dessa responsabilidade:
"A culpa de que muitos, sendo chamados pelo ministério do Evangelho, não se aproximem nem se convertam, não está no Evangelho, nem em Cristo, o qual é oferecido por meio do Evangelho, nem em Deus que chama por meio do Evangelho, e inclusive comunica diversos dons aos que Ele chama; a culpa, porém, está nos que são chamados, alguns dos quais, sendo indiferentes, não aceitam a palavra de vida; outros a aceitam, mas não no íntimo de seus corações, e depois de um entusiasmo passageiro retrocedem novamente de sua fé temporária; outros afogam na semente da palavra com os espinhos dos cuidados e deleites deste século, e não dão nenhum fruto; como nos ensina nosso Salvador na parábola do semeador". [33]
Pode ser difícil para nós compreender a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, mas ambas são verdadeiras, e no Dia do Juízo o próprio Deus demonstrará cabalmente a todos aqueles que rejeitaram Jesus que eles são pessoalmente responsáveis por sua culpa e que deverão responder por isso. Em muitos casos nos parece complicado estabelecer tal responsabilidade, mas naquele dia Deus revelará os segredos e as intenções dos corações dos homens e os julgará com justiça (Rm 2.1-16).
Livre oferta versus apelo para vir à frente
Não devemos confundir a livre oferta do Evangelho com os apelos para "vir à frente" que são feitos aos perdidos depois de algumas reuniões evangelísticas. Essa prática, em sua forma mais primitiva, foi introduzida nas igrejas evangélicas pelo evangelista norteamericano Charles Finney no século XIX. [34] Tal costume não tem base bíblica e pode ser perigoso para a saúde espiritual dos novos convertidos. O perigo desse sistema consiste na identificação que se estabelece entre a "decisão" do pecador de levantar a mão ou de ir à frente numa sala de reuniões para "receber a Cristo" com a conversão bíblica. A conversão é, efetivamente, o recebimento de Cristo como Senhor e Salvador de acordo com o ensino do Evangelho: "Contudo, aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus" (Jo 1.12). No entanto, em nenhum lugar do Novo Testamento encontramos esse recebimento de Cristo identificado com uma atividade física determinada. Mas alguns dirão: "Veja, estou certo de que muitos foram salvos desse modo". Não duvido disso, mas, como diz I. H. Murray:
"Sem dúvida, se uma pessoa que está sob a ação salvífica do Espírito Santo é chamada com autoridade por um pregador para ir à frente, é provável que ela o faça, em respeito ao que acredita ser um mandato divino. E se lhe for dito que sua resposta foi vital para seu novo nascimento, ela acreditará nisso até que descubra novas ideias. Nem por um instante diremos que ao aplicar o sistema de apelos não haverá conversão genuína. O que queremos dizer é que tal sistema não possui, verdadeiramente, conexão alguma com o novo nascimento. As pessoas são convertidas apesar dos apelos, e não graças aos apelos". [35]
Sem dúvida alguma, a objeção mais grave ao sistema de apelos é que seus defensores creem que o mandamento bíblico de arrepender-se e crer no Evangelho (Mc 1.15) implica a capacidade do homem caído de responder por si mesmo a esse mandamento. Estamos, realmente, diante de um extraordinário problema teológico. Confunde-se a responsabilidade do homem de arrepender-se e crer com a capacidade de fazê-lo. Biblicamente, o homem é responsável diante de Deus pela sua incredulidade e rejeição ao Evangelho. Mas, ao mesmo tempo, o homem é incapaz de responder positivamente ao Evangelho por si mesmo. [36] Jesus diz aos seus contemporâneos: "Vocês não querem vir a mim para terem vida" (Jo 5.40). Além disso, o homem é responsável pela sua própria incapacidade espiritual de responder ao Evangelho. Se o homem pensa que pode contribuir para sua salvação ou que é necessário para a mesma que faça alguma coisa como levantar a mão ou ir à frente numa reunião ou culto, então, novamente nas palavras de Murray, "fazem com que creiam que fazem algo digno de mérito diante de Deus, enquanto que aos que não respondem se lhes dá a impressão de que estão desobedecendo a Deus". [37] O homem, desprovido da graça de Deus, não pode fazer nada para predispor-se para a salvação. E nem podemos dizer que a graça ajuda o homem a decidir-se por Cristo. A obra da graça é ainda mais profunda. Transforma completamente o homem para que ele possa, então, responder ao Evangelho. A graça não nos ajuda a crer. A graça nos dá vida em primeiro lugar, para que então possamos crer (Ef 2.5,8).
Não temos base bíblica para igualar a conversão com uma determinada atividade física. O Novo Testamento requer arrependimento para com Deus e fé em nosso Senhor Jesus Cristo (At 20.21) para a salvação. Devemos convidar os pecadores para que recebam Cristo, mas não devemos pensar, nem por um instante sequer, que a fé e o arrependimento consistem em ir à frente no culto ou levantar a mão para, como se diz, receber Cristo. A conversão é uma obra espiritual de Deus, e não deve ser confundida com nenhuma ação externa. Por outro lado, uma vez convertido, o novo crente deve expressar sua fé fisicamente tal como ordena o Senhor (por exemplo, quando nos diz que devemos confessar seu nome diante dos homens, Mt 10.32). Mas esta é uma ação do crente, não daquele que ainda não é crente. Portanto, não temos autoridade para acrescentar uma nova condição, tal como uma expressão física externa, à fé e ao arrependimento estabelecidos nas Escrituras. Devemos exortar e rogar aos pecadores que se reconciliem com Deus em Cristo Jesus e dirigi-los a Ele e somente a Ele, não a nenhuma outra pessoa ou atividade ou gesto ou ritual.
AS DOUTRINAS DA GRAÇA SÃO EFICIENTES NA EVANGELIZAÇÃO
Finalmente, é imprescindível assinalar que as Doutrinas da Graça, longe de ser um obstáculo para a pregação do Evangelho, são na verdade suas melhores aliadas. Sabemos que elas estão reveladas nas Escrituras para o nosso bem espiritual. Por exemplo, Paulo fortalece a fé dos crentes em Roma lembrando-lhes que nada poderá separá-los do amor de Deus em Cristo Jesus. Nem tribulação, nem angústia, nem perseguição, nem fome nem desnudez, nem a guerra ou o diabo, nem a morte poderão separá-los do amor de Deus em Cristo Jesus. Como Paulo pode ter tanta certeza disso? A base dessa segurança está no fato de que todos os que foram predestinados para serem conforme à imagem do Filho serão finalmente glorificados (Rm 8.28-39). [38] É impossível que aqueles que Deus predestinou para a salvação, e por quem Cristo derramou seu sangue e agora intercede por eles, possam se perder. A predestinação e as Doutrinas da Graça de modo geral são um grande consolo para o povo de Deus, especialmente em tempos de medo e tribulação. Alguns pretendem ser mais sábios que Deus e afirmam que tais coisas pertencem aos "mistérios não revelados" de Deus (Dt 29.29). O Espírito Santo não pensa dessa forma. Por isso, vemos como o Senhor repete várias vezes essas verdades em seus ensinos. Como simples amostra, veja os seguintes textos: Mt 11.25-27; Jo 6.37,44,65,70; 8.47; 10.16,26-29; 15.16; 17.2,8,9,12,24; etc...
Além disso, precisamos refletir na razão pela qual essas doutrinas eram pregadas por nosso Senhor Jesus Cristo mesmo num contexto evangelístico e muitas vezes hostil. Creio que a explicação está no fato de que essas doutrinas funcionam como tenazes ou tesouras. Sabemos que esses instrumentos são eficientes em segurar ou cortar pelo emprego simultâneo de seus braços. Do mesmo modo, as Doutrinas da Graça manifestam sua eficácia evangelística no efeito simultâneo que produzem sobre os perdidos. Por um lado, humilham o pecador ao mostrar que ele não pode fazer coisa nenhuma para salvar-se. Ao ensinar que o homem perdido é incapaz de salvar a si próprio, as Doutrinas da Graça humilham o orgulhoso coração humano e atacam a soberba natural que nos faz pensar que podemos nos salvar ou, pelo menos, contribuir de algum modo para a nossa salvação. Esse processo de humilhação é absolutamente necessário, pois sem ele não há conversão verdadeira a Deus.
Por outro lado, essas doutrinas mostram ao homem que Deus é o único capaz de salvá-lo. O uso combinado desses dois ensinos coloca o pecador na posição necessária para pedir a misericórdia de Deus, para clamar a Deus por salvação. Como disse Abraham Kuyper em seu clássico Evangelismo Teocêntrico:
"Não há situação pior do que a do pecador impenitente. Deve crer em Cristo, pois se não o fizer, será condenado. No entanto, não pode crer por si mesmo. Deve estar consciente de ambas verdades. Se entender que a salvação é obra do Espírito Santo, olhará para fora de si mesmo e dependerá unicamente da graça de Deus. E esse é precisamente o ato da fé salvadora". [39]
Para T. Watson, esse olhar para fora de si mesmo, de nossa aparente justiça e méritos, constitui a evidência do chamado eficaz de Deus. Em resposta à pergunta que muitos fazem, sobre como alguém pode saber se foi chamado eficazmente, ele diz:
"Quem é chamado para a salvação é chamado para fora de si mesmo; não somente fora de seu eu pecaminoso, mas também fora de seu eu justo; rejeita sua obediência e seus dons morais. "Não tendo a minha própria justiça" (Fp 3.9). Aquele cujo coração foi tocado por Deus por meio do Espírito Santo coloca o ídolo da justiça própria aos pés de Cristo, para ser pisado por Ele. (...) É maravilhoso quando alguém é chamado para fora de si mesmo. Essa renúncia, como diz Agostinho, é o primeiro passo da fé salvadora". [40]
É possível pregar desse modo, utilizando as Doutrinas da Graça? Sem dúvida, e Spurgeon, o Príncipe dos Pregadores, o fez com frequência. Observemos como ele fazia isso. Pregando sobre a expiação limitada, por exemplo, exorta o pecador da seguinte forma:
"Responderei a uma pergunta: Por quem Cristo morreu? Responda-me algumas perguntas e eu direi se Cristo morreu por você ou não. Você quer um Salvador? Sente necessidade de um? Você tem consciência do pecado nesta manhã? O Espírito Santo o fez ver que está perdido? Você está consciente de que Cristo é a sua única esperança neste mundo? Compreende que não pode oferecer por você mesmo uma expiação que satisfaça a justiça de Deus? Você abandonou toda esperança em você mesmo? É capaz de colocar-se de joelhos e dizer: 'Salva-me, Senhor, ou perecerei'? Se sim, Cristo morreu por você". [41]
Em outra oportunidade, pregando sobre a doutrina da eleição, Spurgeon disse:
"E agora, finalmente, algumas palavras para os não-convertidos. (...) Animem-se, tenham esperança, pecadores, porque há eleição! Longe de desesperá-los e entristecê-los, é verdadeiramente animador que haja eleição. O que aconteceria se eu lhes dissesse que ninguém pode salvar-se, que não há ninguém ordenado para a vida eterna? Não retorceriam suas mãos em desespero, dizendo: 'Como nos salvaremos, então, se não há eleitos?'. Mas eu digo a vocês que há uma multidão de eleitos, multidão incontável, hoste inumerável, além de todo cálculo. Portanto, tenham ânimo, pobres pecadores! Sacudam seu abatimento - não poderá você ser um eleito, visto que há tantos? Há alegria e consolo para você! Não somente tenha ânimo, mas venha e prove o Senhor. Lembre-se que, se você não tivesse sido eleito, não perderia nada com isso. O que disseram os quatro leprosos? 'Vamos, pois, agora, e passemos ao exército dos sírios; se eles nos deixarem viver, viveremos, e se nos matarem, morreremos'. Oh, pecador, venha ao trono da graça! Você pode morrer aí mesmo onde está. Venha a Deus, mesmo supondo que Ele o rejeita, supondo que Ele rechaçará suas mãos suplicantes - coisa impossível - e contudo, você não perderá nada, não será mais condenado do que é agora; e se fosse, você teria, pelo menos, a satisfação de poder dizer a Deus, levantando seus olhos no inferno: 'Deus, eu pedi misericórdia e Tu não a concedeste; supliquei e chorei, mas Tu a negaste'". [42]
Como podemos ver nos sermões de Spurgeon, as Doutrinas da Graça podem ser utilizadas como tenazes espirituais que aprisionam o pecador. Por um lado, dizem a ele que não pode fazer nada para salvar-se; por outro lado, afirmam igualmente que somente Deus pode salvar e que Ele somente salvará Seus escolhidos, aqueles pelos quais Cristo morreu. Então o pecador estará em condições de clamar a Deus por misericórdia. Spurgeon termina o sermão anterior com a seguinte observação:
"E mais, pobre alma! Creia que não somente não perderá nada ao vir a Deus, mas que há algo muito melhor. Você ama a doutrina da eleição? Está disposto a aceitar a sua justiça? Diga, pois: 'Sei que estou perdido e que o mereço; e que se meu irmão está salvo, não posso reclamar. Se Deus me destruir, sou merecedor disso, e se salva os que estão ao meu lado, Ele pode fazer o que quiser com o que é Seu, e eu não posso sentir-me ofendido por isso'. Você pode dizer isso sinceramente, desde o mais profundo de seu coração? Se for assim, a doutrina da eleição fez justo efeito em seu espírito, e você não está longe do Reino dos céus. Você foi trazido aonde deveria estar, onde o Espírito quer que você esteja, e sendo assim esta manhã, vá em paz; Deus perdoou seus pecados. É impossível ter essa sensação se o Espírito de Deus não operar em seus corações. Alegrem-se, pois, por isso. Descansem sua esperança na cruz de Cristo. Não pensem na eleição, mas pensem n'Ele: Jesus no princípio, depois e por toda a eternidade". [43]
A história de Igreja testifica que, em inúmeras ocasiões, aprouve a Deus salvar por meio da exposição dessas doutrinas, já que elas são o meio pelo qual Ele humilha o pecador e o prepara para receber Sua graça. No assim chamado Grande Despertamento, o avivamento que aconteceu em diversas partes da Inglaterra e de suas colônias na América, durante os anos 1740-1742 (e em alguns lugares depois dessas datas), Deus utilizou a pregação de mensagens que enfatizavam a soberania absoluta de Deus com respeito à salvação dos pecadores. Um dos historiadores desse avivamento, Joseph Tracy, fala das doutrinas que eram ensinadas então, e do efeito que tiveram nos corações daquelas pessoas:
"A ideia da 'liberdade justa de Deus' é de um poder tremendo. Inclui tudo aquilo que significa a doutrina da eleição. (...) Deus é livre com respeito à outorga da salvação. Sua liberdade é perfeita. Nada que o homem natural tenha feito, ou possa fazer, de modo nenhum coloca em obrigação essa liberdade nem força Deus a adotar uma decisão favorável. E essa Sua liberdade é justa. É correto que seja assim. Os pecadores merecem e são dignos de uma condenação instantânea; e a liberdade de Deus para infligi-la agora mesmo ou diferi-la por alguns momentos, ou salvá-los dela completamente, de acordo com o desígnio de Sua vontade, é uma liberdade justa. Quando o pecador vê e sente que essa doutrina é verdadeira, sabe que não lhe resta outra alternativa senão clamar a Deus pedindo misericórdia; e sabe que quando clama ao Senhor não há nada em suas orações que obrigue a liberdade justa de Deus a ouvi-lo e que ele não tem nada do que depender, como fundamento para sua esperança de ser ouvido, que não esteja na misericórdia de Deus em Cristo. Não pode apelar à justiça de Deus, já que esta somente o condena; nem a nenhum outro atributo que não seja a misericórdia, que, em sua própria natureza, é livre e não pode ser coagida. E não pode encontrar nenhuma evidência satisfatória de que Deus esteja disposto a ser misericordioso para com os pecadores, senão somente no fato de que Ele deu Seu Filho para morrer por eles. Aqui está a única base para a esperança. Então o pecador deve apresentar-se e elevar sua oração sabendo que merece ser rejeitado, sabendo que nada próprio, nem mesmo a sua oração, diminui a liberdade da justiça de Deus, para receber ou rejeitar de acordo ao desígnio de Sua vontade. E esse é o lugar ao qual o pecador deve ser atraído. Essa é a dependência que precisa sentir e esse é o sentimento que o levará a buscar a Deus em oração". [44]
Evidentemente, Spurgeon não pregou sempre, em todos os seus sermões, sobre as Doutrinas da Graça, nem todos os avivamentos tiveram esse enfoque, nem é imprescindível que nós preguemos sempre essas doutrinas em toda e qualquer mensagem evangelística. O propósito dessas citações é mostrar que, longe de ser um obstáculo à evangelização, as Doutrinas da Graça humilham o pecador e o levam a reconhecer que a salvação pertence ao Senhor e procede somente do Senhor. De uma coisa podemos estar certos: no Céu haverá "uma grande multidão que ninguém" pode "contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé, diante do trono e do Cordeiro, com vestes brancas e segurando palmas. E" clamarão "em alta voz: A salvação pertence ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro. Todos os anjos" estarão "em pé ao redor do trono, dos anciãos e dos quatro seres viventes. Eles se" prostrarão "com o rosto em terra diante do trono e" adorarão "a Deus, dizendo: Amém! Louvor e glória, sabedoria, ação de graças, honra, poder e força sejam ao nosso Deus para todo o sempre. Amém!" (Ap 7.9-12). Com essa certeza, perseveraremos em evangelizar. Os propósitos divinos de graça e salvação não podem ser frustrados pelos pecadores nem por Satanás. Deus receberá toda a glória de todos e de cada um de Seus eleitos, nenhum deles faltará diante de Deus. Essa é a nossa esperança e consolo ao levar o Evangelho em nosso tempo. Que essa visão domine nossa forma de pensar e agir, sempre.
Segunda e última parte de Una fe para un mundo perdido, Capítulo 5 do livro:
PUIGVERT, Pedro (ed.). Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo Histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava: Peregrino, 2002, pp. 213-239. Leia a parte 1 aqui.
NOTAS
[18] Paul Helm: The Providence of God, p. 219 (Inter-Varsity Press, 1993).
[19] Parte desse vínculo está reproduzida em Ian S. Barter: "Some Missionary Lessons for Today", Banner of Truth Magazine, p. 13, nº 305, fevereiro de 1989.
[20] Spurgeon teve de levantar sua voz durante seu ministério contra aqueles que abraçaram o hipercalvinismo. Sua preocupação era primordialmente prática. Iain Murray diz: "O hipercalvinismo é mais do que um mero desvio teológico, e Spurgeon o combateu energicamente porque sabia que ele reduz as igrejas à inatividade ou mesmo à parálise completa. Conheci alguns irmãos que liam a Bíblia ao contrário. Diziam: 'Deus tem um propósito que certamente será cumprido; portanto, não nos moveremos nem um palmo. Todo o poder está nas mãos de Cristo; portanto, ficaremos quietos'. Mas não é assim que Cristo lê essa passagem. Ao contrário, Ele diz: 'Todo o poder foi-me dado, portanto, indo, façam algo'. Aos olhos de Spurgeon, o hipercalvinismo tinha seu ponto mais defeituoso no fato de não possuir zelo nenhum pelo evangelismo militante e de alcance mundial. Mesmo que soubesse que muitos cristãos imersos no hipercalvinismo eram melhores do que o credo que defendiam, via claramente que tanto as evidências teológicas quanto as históricas indicavam que a influência desses ensinos nunca encorajou a obra missionária fervorosa". Iain H. Murray, Spurgeon: um príncipe esquecido, pp. 53-54 (The Banner of Truth, 1964). Publicado no Brasil sob o título O Spurgeon que foi esquecido pela Editora PES.
[21] Iain H. Murray: Spurgeon vs. Hyper-Calvinism. The Battle for Gospel Preaching, p. 71 (The Banner of Truth, 1997).
[22] João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III, XXIV, 15 (Editora Unesp, página 436).
[23] Ibid., III, XXIV, 2 (Editora Unesp, páginas 420-421).
[24] Ibid., III, XXIV, 16 (Editora Unesp, páginas 438-439).
[25] Iain H. Murray: Spurgeon, um príncipe esquecido, pp. 54-55 (The Banner of Truth, 1964).
[26] T. Watson: Consolación Divina, pp. 115-116. Editorial Peregrino. Alcázar de S. Juan, 1989.
[27] "God's indiscriminate Proposals of Mercy, as related to his Power, Wisdom and Sincerity", em Discussions, de R. L. Dabney. The Banner of Truth, 1967, pp. 308-309. Veja o Apêndice 2: "God's love to the non-elect", artigo de Robert J. Sheehan.
[28] John Murray: "The Free Offer of the Gospel", p. 119, em Collected Writings, vol. 4 (The Banner of Truth, 1982).
[29] Ibid., pp. 285-286.
[30] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 90 (TELL, Grand Rapids, Michigan, 1983).
[31] Packer, p. 94.
[32] Iain H. Murray: Spurgeon vs. Hyper-Calvinism. The Battle for Gospel Preaching, p. 152 (The Banner of Truth, 1997).
[33] Cânones de Dort, capítulos III, IV, 9, em Confesiones de fe de la Iglesia, p. 125 (Literatura Evangélica, Rotterdam, 1983).
[34] Sobre Finney, veja K. J. Hardman: C. G. Finney Revivalist and Reformer (Evangelical Press, 1990). Veja também Iain Murray: Revival & Revivalism (The Banner of Truth, 1994) e Iain Murray: Pentecost Today?, capítulo 2 (The Banner of Truth, 1998).
[35] Iain Murray: El Obstáculo al Evangelismo, pp. 31-32 (Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1973).
[36] Sobre a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, o material publicado por Robert J. Sheehan no livro Responsables ante el Dios Soberano (Editorial Peregrino, Moral de Calatrava, 1997), é excelente. Veja também Iain Murray: Pentecost Today?, Apêndice 2: "Co-ordination of Grace and Duty" (The Banner of Truth, 1998).
[37] Iain Murray. El Obstáculo al Evangelismo, p. 34 (Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1973).
[38] Comentando sobre a expressão "aos que justificou, também glorificou" em Romanos 8.30, John Murray afirma: "A glorificação, diferentemente da chamada e da justificação, pertence ao futuro. Não seria possível, nesse contexto (cf. 5.2; vv. 17,18,21,24,25,29), considerá-la como outra coisa além da plenitude do processo de salvação; e, embora "glorificou" esteja no tempo passado, esta forma verbal é proléptica, dando a certeza de sua realização". Na nota de rodapé, ele acrescenta: "Por certo, a forma verbal é um aoristo proléptico que representa, conforme declara Meyer, 'a glorificação futura como tão necessária e certa, que ela aparece como algo já outorgado e completado juntamente com edikaiosen'" (MURRAY, John. Romanos. São José dos Campos: Fiel, 2003, p. 349).
[39] R. B. Kuiper: Evangelismo teocéntrico, p. 175 (TELL, Grand Rapids, Michigan, 1977).
[40] T. Watson, pp. 127-128.
[41] C. H. Spurgeon: No hay otro Evangelio, p. 253, sermão sobre a expiação limitada (El Estandarte de la Verdad, 1997).
[42] Ibid., sermão sobre a eleição, pp. 274-275.
[43] Ibid., p. 275.
[44] J. Tracy: The Great Awakening, pp. 10-11 (The Banner of Truth, 1976).
Faremos bem em prestar atenção nas palavras de Jesus em Mateus 11.25-30:
"Naquela ocasião Jesus disse: Eu te louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado.
"Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho quiser revelar".
Nestas palavras o ensino sobre a soberania de Deus não poderia estar mais claro. Deus o Pai escolhe e revela o Evangelho a quem Ele quer (v. 25). O Filho faz o mesmo (v. 27). Significativamente, Jesus acrescenta um convite às suas afirmações:
"Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve".
Aqui Jesus está convidando a todos para que recebam o Evangelho. Mesmo que somente os eleitos responderão positivamente a esse oferecimento de Cristo, Ele convida a todos indiscriminadamente. Não há na mente de Cristo nenhuma contradição ao afirmar a soberania de Deus na salvação dos pecadores e convidar esses mesmos pecadores para que sejam salvos. Observamos essa mesma atitude na evangelização levada a efeito pelos Apóstolos. Pedro, por exemplo, pregando logo após a cura milagrosa de um aleijado de nascença (At 3.11-26) e após expor os fatos do Evangelho sobre Jesus Cristo, passa a exortar seus ouvintes para que respondam a essas realidades espirituais, dizendo: "Arrependam-se, pois, e voltem-se para Deus, para que os seus pecados sejam cancelados" (v. 19). Spurgeon, pregando sobre esse texto, afirma:
"Pedro falou sobre o Cristo do Evangelho: pregou de forma pessoal e direta à multidão que havia se reunido ao seu redor. Entre nós surgiu uma escola de homens que dizem pregar corretamente o Evangelho aos pecadores, quando na verdade somente afirmam o que o Evangelho diz sobre morrer sem salvação, e se enfurecem quando qualquer um se atreve a dizer ao pecador: 'creia e arrependa-se'. Pedro não pertencia a esta escola". [21]
Paulo também convida o carcereiro de Filipos a receber a salvação, quando, em resposta ao seu clamor, afirma: "Creia no Senhor Jesus" (cf. At 16.30,31). Ou seja, rogar aos pecadores para que recebam o Evangelho não traz nenhuma desonra para Deus. Ele mesmo apela e roga aos pecadores, como Paulo deixa claro em 2Coríntios 5.20: "Portanto, somos embaixadores de Cristo, como se Deus estivesse fazendo o seu apelo por nosso intermédio. Por amor a Cristo lhes suplicamos: reconciliem-se com Deus". Podemos pecar gravemente contra Deus ao transgredir Suas leis, mas ai daqueles que acrescentam a seus pecados o rejeitar os apelos divinos! Deus demonstra a Sua graça e Sua bondade para com todos os homens indistintamente. Comentando Ezequiel 33.11 ("Diga-lhes: Juro pela minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem dos seus caminhos e vivam. Voltem! Voltem-se dos seus maus caminhos! Por que o seu povo haveria de morrer, ó nação de Israel?"), Calvino diz:
"Porque, ainda que a voz exterior faça somente indesculpáveis aqueles que a ouvem e não a obedecem, apesar disso deve ser considerada um testemunho da graça de Deus com que reconcilia os homens consigo. Entendamos, pois, que a intenção do profeta é dizer que Deus não se alegra da morte do pecador, para que os fiéis confiem em que, tão logo como se arrependam de seus pecados, Deus está preparado para perdoá-los; e, pelo contrário, que os ímpios sintam que se duplica seu pecado por não ter correspondido a tão grande clemência e liberalidade de Deus". [22]
Calvino acrescenta, ainda, para que fique bem claro:
"Quando Deus se mostra com a luz de sua Palavra àqueles que não o mereciam, com isso dá um sinal evidente de sua gratuita bondade. Nisto, pois, brilha já sua imensa bondade; mas não como salvação para todos; pois aos réprobos lhes está preparado um julgamento muito mais grave por ter rechaçado o testemunho do amor de Deus". [23]
Finalmente, comentando sobre as promessas de Deus nas quais são mencionados todos os homens, sem distinção alguma, Calvino assinala:
"No entanto, por que nomeia a todos os homens? É evidente que nomeia a todos a fim de que a consciência dos fiéis goze de maior segurança, vendo que não há diferença alguma entre os pecadores, contanto que creiam; e, a fim de que os ímpios não pretextem que não têm refúgio algum ao qual recolher-se para escapar à servidão do pecado, quando eles o rechaçam com sua ingratidão. Assim, pois, como a uns e a outros se oferece a misericórdia de Deus por meio do Evangelho, não resta outra coisa senão a fé, quer dizer, a iluminação de Deus, que distingue entre os fiéis e os incrédulos, de sorte que os primeiros sintam a eficácia e virtude de sua iluminação, e os outros não consigam fruto algum. Ora, esta iluminação se regula segundo a eterna eleição de Deus". [24]
Obviamente Calvino sustentava que o Evangelho deve ser oferecido a todos: "a uns e a outros se oferece a misericórdia de Deus", diz. Deus demonstra a Sua "bondade gratuita", a Sua "clemência e liberalidade" a todos. Porém, somente os eleitos responderão positivamente, mas essa manifestação da bondade de Deus para com todos torna indesculpáveis os que a rejeitam.
Alguns outros apresentam uma objeção estreitamente relacionada com a anterior. Dizem que existe um tipo de pecadores alertas e dispostos a receber o Evangelho, como o carcereiro de Filipos, e que o Evangelho deve ser pregado a eles. Mas o que nós afirmamos, dizem, é que o Evangelho não deve ser pregado aos que se opõem a ele ou aos indiferentes. Novamente devemos recorrer às Escrituras, e nelas vemos que não somente pecadores como o carcereiro de Filipos foram convidados para receber a salvação, mas também todo tipo de pecadores. Em Atos 8, Pedro insta a Simão, o mago, que se arrependesse e orasse (At 8.20-23). No Salmo 2, os inimigos de Deus são exortados a reconciliarem-se com Ele: "Por isso, ó reis, sejam prudentes; aceitem a advertência, autoridades da terra. Adorem o SENHOR com temor; exultem com tremor. Beijem o Filho, para que ele não se ire e vocês não sejam destruídos de repente, pois num instante acende-se a sua ira. Como são felizes todos os que nele se refugiam!" (Sl 2.10-12). Spurgeon via com desagrado aqueles que acreditavam que somente deveriam pregar a pecadores "conscientes de seu pecado". Iain Murray, comentando um sermão de Spurgeon, diz: "Se o Evangelho é somente para pecadores conscientes, como a Igreja poderia obedecer ao mandato 'Vão por todo o mundo e preguem o Evangelho a todas as pessoas'? Se o crer pertence somente aos penitentes, não pertence a todos os homens, pois as multidões da Terra não satisfazem essa condição". Nesse ponto, Murray cita Spurgeon: "Eu gostaria de levar um desses que só pregam para 'pecadores conscientes' até a capital do reino de Benin. Ali não há pecadores conscientes! Olhe para eles, com a boca manchada de sangue humano, com o corpo besuntado com o sangue de suas vítimas imoladas. Como encontrará, ali, algum mérito nos pecadores? Quanto a mim, minhas palavras seriam: Homens e irmãos: Deus, que fez o Céu e a Terra, enviou Seu Filho Jesus Cristo ao mundo para sofrer pelos nossos pecados, e qualquer um que n'Ele crer não perecerá, mas tem a vida eterna". [25]
Não é preciso acrescentar nada mais às palavras de Spurgeon!
Faremos bem em lembrar que é precisamente no convite ao arrependimento e à fé que Deus leva a efeito Seu chamado eficaz. Há um chamado geral que todos devem ouvir. Como já demonstramos, devemos pregar a todos. Devemos semear a Palavra de Deus, essa semente preciosa, em corações sensíveis e em corações de mármore. Mas em meio a esse chamado geral, Deus chama Seus eleitos e estes ouvem a voz de Cristo e a seguem (Jo. 10.27). O puritano Thomas Watson afirmou, referindo-se a este ensino bíblico:
"Existe uma dupla vocação: 1) uma vocação externa, que não é outra coisa senão o bendito oferecimento da graça de Deus por meio do Evangelho, sua mensagem aos pecadores quando os convida a vir e aceitar a misericórdia do Senhor. Sobre isso diz o nosso Salvador: "Pois muitos são chamados, mas poucos são escolhidos" (Mt 22.14). Essa vocação externa é insuficiente para a salvação, mas suficiente para tornar indesculpáveis os homens. 2) Uma vocação interna, eficaz, quando Deus subjuga maravilhosamente o coração e atrai a vontade para Cristo. Isso é, como diz Agostinho, uma vocação eficaz. Deus, por meio da vocação externa, toca uma trombeta nos ouvidos; por meio da vocação interna Ele abre o coração, como fez com Lídia (At 16.14). A vocação externa pode levar os homens a fazer uma profissão de Cristo, mas a vocação interna os leva a tomar posse de Cristo. A vocação externa confronta o pecador, a vocação interna o transforma". [26]
Deus é sincero em Seus convites para a salvação
Mas se Deus sabe que somente os eleitos receberão a salvação, como pode ser sincero quando convida a todos, indiscriminadamente, para que recebam o Evangelho? Há sinceridade em Deus quando diz por meio de Ezequiel: "Juro pela minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem dos seus caminhos e vivam. Voltem! Voltem-se dos seus maus caminhos! Por que o seu povo haveria de morrer, ó nação de Israel?" (Ez 33.11)? São genuínas as expressões de dor e as palavras do Senhor sobre Jerusalém que se encontram registradas em Lucas 19.41,42? "Quando se aproximou e viu a cidade, Jesus chorou sobre ela e disse: Se você compreendesse neste dia, sim, você também, o que traz a paz! Mas agora isso está oculto aos seus olhos". E quando Cristo diz a Jerusalém: "Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram" (Mt 23.37)? Por acaso Deus está fingindo em Deuteronômio 5.29; 32.29; Salmo 81.13 ou Isaías 48.18? É inimaginável e inconcebível pensar tal coisa. O teólogo presbiteriano R. L. Dabney tem toda a razão quando afirma, comentando a passagem de Lucas 19.41,42: "Com alegria cremos que quando vemos Jesus chorando sobre a cidade condenada de Jerusalém, vimos o Pai e podemos ter uma ideia da misericórdia e benignidade divinas". [27]
Nestes e em outros apelos, Deus é sincero e verdadeiro, ainda que existam outras considerações em Sua atuação que, na maioria das vezes, nos são desconhecidas. Refletindo sobre Deuteronômio 5.29; 32.29; Salmo 81.13 e Isaías 48.18, John Murray diz: "Não há dúvida de que o Senhor apresenta a Si mesmo, nessas passagens, como desejando ardentemente o cumprimento de algo que o exercício de Sua vontade soberana não decretou que aconteça". [28]
Novamente Dabney nos proporciona um exemplo histórico que serve para esclarecer um pouco esta questão. O general George Washington assinou uma ordem de execução do major Andrew. Ao mesmo tempo, declarou a assinava "com a mais profunda relutância e condolência". Mas o fato é que a ordem foi assinada. Dabney afirma: "Washington tinha pleno poder para matar ou salvar. Sua compaixão pelo criminoso era real e profunda. No entanto, assinou a sentença de morte espontaneamente. A decisão de Washington de assinar a sentença de morte de Andrew não aconteceu porque sua compaixão fosse fingida, mas porque estava racionalmente vencida por um conjunto de critérios mais elevados, como a sabedoria, o dever, o patriotismo e a indignação moral. Washington tinha autoridade oficial e material para soltar o criminoso, mas não tinha a sanção de sua própria sabedoria ou justiça. Sua piedade era, obviamente, genuína, mas sua decisão de não ceder foi livre e soberana". [29]
Esse exemplo ilustra como Deus pode ser sincero em seus apelos a todos os pecadores, ao mesmo tempo em que sabe que nem todos responderão ao Seu chamado. Louis Berkhof lembra que pode-se fazer várias distinções dentro da vontade de Deus. Fala da vontade decretatória e da vontade preceptiva de Deus.
"A primeira é aquela por meio da qual Deus se propõe ou decreta tudo o que deve acontecer, seja que queira cumpri-lo efetivamente (causativamente) ou permitir que aconteça por meio da livre agência de Suas criaturas racionais. A segunda é a regra de vida que Deus traçou para Suas criaturas morais, indicando os deveres que Ele lhes impõe. A primeira sempre é cumprida, a segunda é desobedecida com frequência". [30]
Comentando essas distinções na vontade de Deus, J. I. Packer acrescenta:
"Ambos os aspectos da vontade de Deus são fatos, ainda que o modo como se relacionam na mente de Deus é inescrutável para nós. Em última instância, estamos diante de um grande mistério. [31] Spurgeon, pregando sobre 1Timóteo 2.3,4, disse: 'É o desejo de Deus que os oprimidos sejam libertados; no entanto, há muitos oprimidos que jamais serão libertados. É o desejo de Deus que os enfermos não sofram. Você duvida disso? Mas não é o seu próprio desejo? E, no entanto, o Senhor não opera um milagre para curar cada enfermo. É o desejo de Deus que Suas criaturas sejam felizes. Pode alguém negar isso? Ele não intervém milagrosamente para fazer com que todos nós sejamos felizes, porém seria perversidade supor que Ele não deseja a felicidade de todas as criaturas que fez. Deus tem uma bondade infinita, que, no entanto, não é levada a cabo pela Sua infinita onipotência; e se alguém me perguntar o motivo, não saberei responder". [32]
Os pecadores, responsáveis por rejeitar o Evangelho
Já assinalamos anteriormente, ao citar Calvino, que o pecador "duplica" seu pecado por não corresponder à tão grande clemência e liberalidade de Deus, isto é, por não aceitar o convite de Deus de reconciliar-se com Ele mesmo, abrigando-se em Sua misericórdia. É crucial reafirmar que a Palavra de Deus declara pessoalmente responsáveis os que ouvem o Evangelho e decidem rejeitá-lo. Ninguém pode fugir ao decreto de Deus, pois Deus nos declara responsáveis se rejeitamos o Evangelho. As Escrituras afirmam com a mesma clareza a soberania de Deus e a responsabilidade do homem. Talvez uma das passagens que ensinem com mais ênfase essas duas realidades seja Lucas 22.22: "O Filho do Homem vai, como foi determinado; mas ai daquele que o trair!". A traição de Judas ocorreu de acordo com o plano de Deus (At 2.23); mas Judas, como indica o lamento do Senhor, é responsável pela mesma. Deus é soberano na determinação dessa entrega e morte de Jesus (At 4.28), mas Judas é culpado por sua motivação perversa ao entregar o Senhor (Mt 26.14-16).
No lamento de Jesus sobre Jerusalém, é o próprio Senhor quem assinala a responsabilidade de seus ouvintes, quando declara: "Quantas vezes eu quis reunir seus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos debaixo de suas asas, mas vocês não quiseram!". A incredulidade é sempre um pecado aos olhos de Deus, e ninguém pode pretender não ser culpado de incredulidade caso rejeite o Evangelho: "Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no nome do Filho Unigênito de Deus" (Jo 3.18). Os Cânones de Dort falam a respeito dessa responsabilidade:
"A culpa de que muitos, sendo chamados pelo ministério do Evangelho, não se aproximem nem se convertam, não está no Evangelho, nem em Cristo, o qual é oferecido por meio do Evangelho, nem em Deus que chama por meio do Evangelho, e inclusive comunica diversos dons aos que Ele chama; a culpa, porém, está nos que são chamados, alguns dos quais, sendo indiferentes, não aceitam a palavra de vida; outros a aceitam, mas não no íntimo de seus corações, e depois de um entusiasmo passageiro retrocedem novamente de sua fé temporária; outros afogam na semente da palavra com os espinhos dos cuidados e deleites deste século, e não dão nenhum fruto; como nos ensina nosso Salvador na parábola do semeador". [33]
Pode ser difícil para nós compreender a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, mas ambas são verdadeiras, e no Dia do Juízo o próprio Deus demonstrará cabalmente a todos aqueles que rejeitaram Jesus que eles são pessoalmente responsáveis por sua culpa e que deverão responder por isso. Em muitos casos nos parece complicado estabelecer tal responsabilidade, mas naquele dia Deus revelará os segredos e as intenções dos corações dos homens e os julgará com justiça (Rm 2.1-16).
Livre oferta versus apelo para vir à frente
Não devemos confundir a livre oferta do Evangelho com os apelos para "vir à frente" que são feitos aos perdidos depois de algumas reuniões evangelísticas. Essa prática, em sua forma mais primitiva, foi introduzida nas igrejas evangélicas pelo evangelista norteamericano Charles Finney no século XIX. [34] Tal costume não tem base bíblica e pode ser perigoso para a saúde espiritual dos novos convertidos. O perigo desse sistema consiste na identificação que se estabelece entre a "decisão" do pecador de levantar a mão ou de ir à frente numa sala de reuniões para "receber a Cristo" com a conversão bíblica. A conversão é, efetivamente, o recebimento de Cristo como Senhor e Salvador de acordo com o ensino do Evangelho: "Contudo, aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus" (Jo 1.12). No entanto, em nenhum lugar do Novo Testamento encontramos esse recebimento de Cristo identificado com uma atividade física determinada. Mas alguns dirão: "Veja, estou certo de que muitos foram salvos desse modo". Não duvido disso, mas, como diz I. H. Murray:
"Sem dúvida, se uma pessoa que está sob a ação salvífica do Espírito Santo é chamada com autoridade por um pregador para ir à frente, é provável que ela o faça, em respeito ao que acredita ser um mandato divino. E se lhe for dito que sua resposta foi vital para seu novo nascimento, ela acreditará nisso até que descubra novas ideias. Nem por um instante diremos que ao aplicar o sistema de apelos não haverá conversão genuína. O que queremos dizer é que tal sistema não possui, verdadeiramente, conexão alguma com o novo nascimento. As pessoas são convertidas apesar dos apelos, e não graças aos apelos". [35]
Sem dúvida alguma, a objeção mais grave ao sistema de apelos é que seus defensores creem que o mandamento bíblico de arrepender-se e crer no Evangelho (Mc 1.15) implica a capacidade do homem caído de responder por si mesmo a esse mandamento. Estamos, realmente, diante de um extraordinário problema teológico. Confunde-se a responsabilidade do homem de arrepender-se e crer com a capacidade de fazê-lo. Biblicamente, o homem é responsável diante de Deus pela sua incredulidade e rejeição ao Evangelho. Mas, ao mesmo tempo, o homem é incapaz de responder positivamente ao Evangelho por si mesmo. [36] Jesus diz aos seus contemporâneos: "Vocês não querem vir a mim para terem vida" (Jo 5.40). Além disso, o homem é responsável pela sua própria incapacidade espiritual de responder ao Evangelho. Se o homem pensa que pode contribuir para sua salvação ou que é necessário para a mesma que faça alguma coisa como levantar a mão ou ir à frente numa reunião ou culto, então, novamente nas palavras de Murray, "fazem com que creiam que fazem algo digno de mérito diante de Deus, enquanto que aos que não respondem se lhes dá a impressão de que estão desobedecendo a Deus". [37] O homem, desprovido da graça de Deus, não pode fazer nada para predispor-se para a salvação. E nem podemos dizer que a graça ajuda o homem a decidir-se por Cristo. A obra da graça é ainda mais profunda. Transforma completamente o homem para que ele possa, então, responder ao Evangelho. A graça não nos ajuda a crer. A graça nos dá vida em primeiro lugar, para que então possamos crer (Ef 2.5,8).
Não temos base bíblica para igualar a conversão com uma determinada atividade física. O Novo Testamento requer arrependimento para com Deus e fé em nosso Senhor Jesus Cristo (At 20.21) para a salvação. Devemos convidar os pecadores para que recebam Cristo, mas não devemos pensar, nem por um instante sequer, que a fé e o arrependimento consistem em ir à frente no culto ou levantar a mão para, como se diz, receber Cristo. A conversão é uma obra espiritual de Deus, e não deve ser confundida com nenhuma ação externa. Por outro lado, uma vez convertido, o novo crente deve expressar sua fé fisicamente tal como ordena o Senhor (por exemplo, quando nos diz que devemos confessar seu nome diante dos homens, Mt 10.32). Mas esta é uma ação do crente, não daquele que ainda não é crente. Portanto, não temos autoridade para acrescentar uma nova condição, tal como uma expressão física externa, à fé e ao arrependimento estabelecidos nas Escrituras. Devemos exortar e rogar aos pecadores que se reconciliem com Deus em Cristo Jesus e dirigi-los a Ele e somente a Ele, não a nenhuma outra pessoa ou atividade ou gesto ou ritual.
AS DOUTRINAS DA GRAÇA SÃO EFICIENTES NA EVANGELIZAÇÃO
Finalmente, é imprescindível assinalar que as Doutrinas da Graça, longe de ser um obstáculo para a pregação do Evangelho, são na verdade suas melhores aliadas. Sabemos que elas estão reveladas nas Escrituras para o nosso bem espiritual. Por exemplo, Paulo fortalece a fé dos crentes em Roma lembrando-lhes que nada poderá separá-los do amor de Deus em Cristo Jesus. Nem tribulação, nem angústia, nem perseguição, nem fome nem desnudez, nem a guerra ou o diabo, nem a morte poderão separá-los do amor de Deus em Cristo Jesus. Como Paulo pode ter tanta certeza disso? A base dessa segurança está no fato de que todos os que foram predestinados para serem conforme à imagem do Filho serão finalmente glorificados (Rm 8.28-39). [38] É impossível que aqueles que Deus predestinou para a salvação, e por quem Cristo derramou seu sangue e agora intercede por eles, possam se perder. A predestinação e as Doutrinas da Graça de modo geral são um grande consolo para o povo de Deus, especialmente em tempos de medo e tribulação. Alguns pretendem ser mais sábios que Deus e afirmam que tais coisas pertencem aos "mistérios não revelados" de Deus (Dt 29.29). O Espírito Santo não pensa dessa forma. Por isso, vemos como o Senhor repete várias vezes essas verdades em seus ensinos. Como simples amostra, veja os seguintes textos: Mt 11.25-27; Jo 6.37,44,65,70; 8.47; 10.16,26-29; 15.16; 17.2,8,9,12,24; etc...
Além disso, precisamos refletir na razão pela qual essas doutrinas eram pregadas por nosso Senhor Jesus Cristo mesmo num contexto evangelístico e muitas vezes hostil. Creio que a explicação está no fato de que essas doutrinas funcionam como tenazes ou tesouras. Sabemos que esses instrumentos são eficientes em segurar ou cortar pelo emprego simultâneo de seus braços. Do mesmo modo, as Doutrinas da Graça manifestam sua eficácia evangelística no efeito simultâneo que produzem sobre os perdidos. Por um lado, humilham o pecador ao mostrar que ele não pode fazer coisa nenhuma para salvar-se. Ao ensinar que o homem perdido é incapaz de salvar a si próprio, as Doutrinas da Graça humilham o orgulhoso coração humano e atacam a soberba natural que nos faz pensar que podemos nos salvar ou, pelo menos, contribuir de algum modo para a nossa salvação. Esse processo de humilhação é absolutamente necessário, pois sem ele não há conversão verdadeira a Deus.
Por outro lado, essas doutrinas mostram ao homem que Deus é o único capaz de salvá-lo. O uso combinado desses dois ensinos coloca o pecador na posição necessária para pedir a misericórdia de Deus, para clamar a Deus por salvação. Como disse Abraham Kuyper em seu clássico Evangelismo Teocêntrico:
"Não há situação pior do que a do pecador impenitente. Deve crer em Cristo, pois se não o fizer, será condenado. No entanto, não pode crer por si mesmo. Deve estar consciente de ambas verdades. Se entender que a salvação é obra do Espírito Santo, olhará para fora de si mesmo e dependerá unicamente da graça de Deus. E esse é precisamente o ato da fé salvadora". [39]
Para T. Watson, esse olhar para fora de si mesmo, de nossa aparente justiça e méritos, constitui a evidência do chamado eficaz de Deus. Em resposta à pergunta que muitos fazem, sobre como alguém pode saber se foi chamado eficazmente, ele diz:
"Quem é chamado para a salvação é chamado para fora de si mesmo; não somente fora de seu eu pecaminoso, mas também fora de seu eu justo; rejeita sua obediência e seus dons morais. "Não tendo a minha própria justiça" (Fp 3.9). Aquele cujo coração foi tocado por Deus por meio do Espírito Santo coloca o ídolo da justiça própria aos pés de Cristo, para ser pisado por Ele. (...) É maravilhoso quando alguém é chamado para fora de si mesmo. Essa renúncia, como diz Agostinho, é o primeiro passo da fé salvadora". [40]
É possível pregar desse modo, utilizando as Doutrinas da Graça? Sem dúvida, e Spurgeon, o Príncipe dos Pregadores, o fez com frequência. Observemos como ele fazia isso. Pregando sobre a expiação limitada, por exemplo, exorta o pecador da seguinte forma:
"Responderei a uma pergunta: Por quem Cristo morreu? Responda-me algumas perguntas e eu direi se Cristo morreu por você ou não. Você quer um Salvador? Sente necessidade de um? Você tem consciência do pecado nesta manhã? O Espírito Santo o fez ver que está perdido? Você está consciente de que Cristo é a sua única esperança neste mundo? Compreende que não pode oferecer por você mesmo uma expiação que satisfaça a justiça de Deus? Você abandonou toda esperança em você mesmo? É capaz de colocar-se de joelhos e dizer: 'Salva-me, Senhor, ou perecerei'? Se sim, Cristo morreu por você". [41]
Em outra oportunidade, pregando sobre a doutrina da eleição, Spurgeon disse:
"E agora, finalmente, algumas palavras para os não-convertidos. (...) Animem-se, tenham esperança, pecadores, porque há eleição! Longe de desesperá-los e entristecê-los, é verdadeiramente animador que haja eleição. O que aconteceria se eu lhes dissesse que ninguém pode salvar-se, que não há ninguém ordenado para a vida eterna? Não retorceriam suas mãos em desespero, dizendo: 'Como nos salvaremos, então, se não há eleitos?'. Mas eu digo a vocês que há uma multidão de eleitos, multidão incontável, hoste inumerável, além de todo cálculo. Portanto, tenham ânimo, pobres pecadores! Sacudam seu abatimento - não poderá você ser um eleito, visto que há tantos? Há alegria e consolo para você! Não somente tenha ânimo, mas venha e prove o Senhor. Lembre-se que, se você não tivesse sido eleito, não perderia nada com isso. O que disseram os quatro leprosos? 'Vamos, pois, agora, e passemos ao exército dos sírios; se eles nos deixarem viver, viveremos, e se nos matarem, morreremos'. Oh, pecador, venha ao trono da graça! Você pode morrer aí mesmo onde está. Venha a Deus, mesmo supondo que Ele o rejeita, supondo que Ele rechaçará suas mãos suplicantes - coisa impossível - e contudo, você não perderá nada, não será mais condenado do que é agora; e se fosse, você teria, pelo menos, a satisfação de poder dizer a Deus, levantando seus olhos no inferno: 'Deus, eu pedi misericórdia e Tu não a concedeste; supliquei e chorei, mas Tu a negaste'". [42]
Como podemos ver nos sermões de Spurgeon, as Doutrinas da Graça podem ser utilizadas como tenazes espirituais que aprisionam o pecador. Por um lado, dizem a ele que não pode fazer nada para salvar-se; por outro lado, afirmam igualmente que somente Deus pode salvar e que Ele somente salvará Seus escolhidos, aqueles pelos quais Cristo morreu. Então o pecador estará em condições de clamar a Deus por misericórdia. Spurgeon termina o sermão anterior com a seguinte observação:
"E mais, pobre alma! Creia que não somente não perderá nada ao vir a Deus, mas que há algo muito melhor. Você ama a doutrina da eleição? Está disposto a aceitar a sua justiça? Diga, pois: 'Sei que estou perdido e que o mereço; e que se meu irmão está salvo, não posso reclamar. Se Deus me destruir, sou merecedor disso, e se salva os que estão ao meu lado, Ele pode fazer o que quiser com o que é Seu, e eu não posso sentir-me ofendido por isso'. Você pode dizer isso sinceramente, desde o mais profundo de seu coração? Se for assim, a doutrina da eleição fez justo efeito em seu espírito, e você não está longe do Reino dos céus. Você foi trazido aonde deveria estar, onde o Espírito quer que você esteja, e sendo assim esta manhã, vá em paz; Deus perdoou seus pecados. É impossível ter essa sensação se o Espírito de Deus não operar em seus corações. Alegrem-se, pois, por isso. Descansem sua esperança na cruz de Cristo. Não pensem na eleição, mas pensem n'Ele: Jesus no princípio, depois e por toda a eternidade". [43]
A história de Igreja testifica que, em inúmeras ocasiões, aprouve a Deus salvar por meio da exposição dessas doutrinas, já que elas são o meio pelo qual Ele humilha o pecador e o prepara para receber Sua graça. No assim chamado Grande Despertamento, o avivamento que aconteceu em diversas partes da Inglaterra e de suas colônias na América, durante os anos 1740-1742 (e em alguns lugares depois dessas datas), Deus utilizou a pregação de mensagens que enfatizavam a soberania absoluta de Deus com respeito à salvação dos pecadores. Um dos historiadores desse avivamento, Joseph Tracy, fala das doutrinas que eram ensinadas então, e do efeito que tiveram nos corações daquelas pessoas:
"A ideia da 'liberdade justa de Deus' é de um poder tremendo. Inclui tudo aquilo que significa a doutrina da eleição. (...) Deus é livre com respeito à outorga da salvação. Sua liberdade é perfeita. Nada que o homem natural tenha feito, ou possa fazer, de modo nenhum coloca em obrigação essa liberdade nem força Deus a adotar uma decisão favorável. E essa Sua liberdade é justa. É correto que seja assim. Os pecadores merecem e são dignos de uma condenação instantânea; e a liberdade de Deus para infligi-la agora mesmo ou diferi-la por alguns momentos, ou salvá-los dela completamente, de acordo com o desígnio de Sua vontade, é uma liberdade justa. Quando o pecador vê e sente que essa doutrina é verdadeira, sabe que não lhe resta outra alternativa senão clamar a Deus pedindo misericórdia; e sabe que quando clama ao Senhor não há nada em suas orações que obrigue a liberdade justa de Deus a ouvi-lo e que ele não tem nada do que depender, como fundamento para sua esperança de ser ouvido, que não esteja na misericórdia de Deus em Cristo. Não pode apelar à justiça de Deus, já que esta somente o condena; nem a nenhum outro atributo que não seja a misericórdia, que, em sua própria natureza, é livre e não pode ser coagida. E não pode encontrar nenhuma evidência satisfatória de que Deus esteja disposto a ser misericordioso para com os pecadores, senão somente no fato de que Ele deu Seu Filho para morrer por eles. Aqui está a única base para a esperança. Então o pecador deve apresentar-se e elevar sua oração sabendo que merece ser rejeitado, sabendo que nada próprio, nem mesmo a sua oração, diminui a liberdade da justiça de Deus, para receber ou rejeitar de acordo ao desígnio de Sua vontade. E esse é o lugar ao qual o pecador deve ser atraído. Essa é a dependência que precisa sentir e esse é o sentimento que o levará a buscar a Deus em oração". [44]
Evidentemente, Spurgeon não pregou sempre, em todos os seus sermões, sobre as Doutrinas da Graça, nem todos os avivamentos tiveram esse enfoque, nem é imprescindível que nós preguemos sempre essas doutrinas em toda e qualquer mensagem evangelística. O propósito dessas citações é mostrar que, longe de ser um obstáculo à evangelização, as Doutrinas da Graça humilham o pecador e o levam a reconhecer que a salvação pertence ao Senhor e procede somente do Senhor. De uma coisa podemos estar certos: no Céu haverá "uma grande multidão que ninguém" pode "contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé, diante do trono e do Cordeiro, com vestes brancas e segurando palmas. E" clamarão "em alta voz: A salvação pertence ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro. Todos os anjos" estarão "em pé ao redor do trono, dos anciãos e dos quatro seres viventes. Eles se" prostrarão "com o rosto em terra diante do trono e" adorarão "a Deus, dizendo: Amém! Louvor e glória, sabedoria, ação de graças, honra, poder e força sejam ao nosso Deus para todo o sempre. Amém!" (Ap 7.9-12). Com essa certeza, perseveraremos em evangelizar. Os propósitos divinos de graça e salvação não podem ser frustrados pelos pecadores nem por Satanás. Deus receberá toda a glória de todos e de cada um de Seus eleitos, nenhum deles faltará diante de Deus. Essa é a nossa esperança e consolo ao levar o Evangelho em nosso tempo. Que essa visão domine nossa forma de pensar e agir, sempre.
Segunda e última parte de Una fe para un mundo perdido, Capítulo 5 do livro:
PUIGVERT, Pedro (ed.). Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo Histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava: Peregrino, 2002, pp. 213-239. Leia a parte 1 aqui.
NOTAS
[18] Paul Helm: The Providence of God, p. 219 (Inter-Varsity Press, 1993).
[19] Parte desse vínculo está reproduzida em Ian S. Barter: "Some Missionary Lessons for Today", Banner of Truth Magazine, p. 13, nº 305, fevereiro de 1989.
[20] Spurgeon teve de levantar sua voz durante seu ministério contra aqueles que abraçaram o hipercalvinismo. Sua preocupação era primordialmente prática. Iain Murray diz: "O hipercalvinismo é mais do que um mero desvio teológico, e Spurgeon o combateu energicamente porque sabia que ele reduz as igrejas à inatividade ou mesmo à parálise completa. Conheci alguns irmãos que liam a Bíblia ao contrário. Diziam: 'Deus tem um propósito que certamente será cumprido; portanto, não nos moveremos nem um palmo. Todo o poder está nas mãos de Cristo; portanto, ficaremos quietos'. Mas não é assim que Cristo lê essa passagem. Ao contrário, Ele diz: 'Todo o poder foi-me dado, portanto, indo, façam algo'. Aos olhos de Spurgeon, o hipercalvinismo tinha seu ponto mais defeituoso no fato de não possuir zelo nenhum pelo evangelismo militante e de alcance mundial. Mesmo que soubesse que muitos cristãos imersos no hipercalvinismo eram melhores do que o credo que defendiam, via claramente que tanto as evidências teológicas quanto as históricas indicavam que a influência desses ensinos nunca encorajou a obra missionária fervorosa". Iain H. Murray, Spurgeon: um príncipe esquecido, pp. 53-54 (The Banner of Truth, 1964). Publicado no Brasil sob o título O Spurgeon que foi esquecido pela Editora PES.
[21] Iain H. Murray: Spurgeon vs. Hyper-Calvinism. The Battle for Gospel Preaching, p. 71 (The Banner of Truth, 1997).
[22] João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III, XXIV, 15 (Editora Unesp, página 436).
[23] Ibid., III, XXIV, 2 (Editora Unesp, páginas 420-421).
[24] Ibid., III, XXIV, 16 (Editora Unesp, páginas 438-439).
[25] Iain H. Murray: Spurgeon, um príncipe esquecido, pp. 54-55 (The Banner of Truth, 1964).
[26] T. Watson: Consolación Divina, pp. 115-116. Editorial Peregrino. Alcázar de S. Juan, 1989.
[27] "God's indiscriminate Proposals of Mercy, as related to his Power, Wisdom and Sincerity", em Discussions, de R. L. Dabney. The Banner of Truth, 1967, pp. 308-309. Veja o Apêndice 2: "God's love to the non-elect", artigo de Robert J. Sheehan.
[28] John Murray: "The Free Offer of the Gospel", p. 119, em Collected Writings, vol. 4 (The Banner of Truth, 1982).
[29] Ibid., pp. 285-286.
[30] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 90 (TELL, Grand Rapids, Michigan, 1983).
[31] Packer, p. 94.
[32] Iain H. Murray: Spurgeon vs. Hyper-Calvinism. The Battle for Gospel Preaching, p. 152 (The Banner of Truth, 1997).
[33] Cânones de Dort, capítulos III, IV, 9, em Confesiones de fe de la Iglesia, p. 125 (Literatura Evangélica, Rotterdam, 1983).
[34] Sobre Finney, veja K. J. Hardman: C. G. Finney Revivalist and Reformer (Evangelical Press, 1990). Veja também Iain Murray: Revival & Revivalism (The Banner of Truth, 1994) e Iain Murray: Pentecost Today?, capítulo 2 (The Banner of Truth, 1998).
[35] Iain Murray: El Obstáculo al Evangelismo, pp. 31-32 (Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1973).
[36] Sobre a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, o material publicado por Robert J. Sheehan no livro Responsables ante el Dios Soberano (Editorial Peregrino, Moral de Calatrava, 1997), é excelente. Veja também Iain Murray: Pentecost Today?, Apêndice 2: "Co-ordination of Grace and Duty" (The Banner of Truth, 1998).
[37] Iain Murray. El Obstáculo al Evangelismo, p. 34 (Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1973).
[38] Comentando sobre a expressão "aos que justificou, também glorificou" em Romanos 8.30, John Murray afirma: "A glorificação, diferentemente da chamada e da justificação, pertence ao futuro. Não seria possível, nesse contexto (cf. 5.2; vv. 17,18,21,24,25,29), considerá-la como outra coisa além da plenitude do processo de salvação; e, embora "glorificou" esteja no tempo passado, esta forma verbal é proléptica, dando a certeza de sua realização". Na nota de rodapé, ele acrescenta: "Por certo, a forma verbal é um aoristo proléptico que representa, conforme declara Meyer, 'a glorificação futura como tão necessária e certa, que ela aparece como algo já outorgado e completado juntamente com edikaiosen'" (MURRAY, John. Romanos. São José dos Campos: Fiel, 2003, p. 349).
[39] R. B. Kuiper: Evangelismo teocéntrico, p. 175 (TELL, Grand Rapids, Michigan, 1977).
[40] T. Watson, pp. 127-128.
[41] C. H. Spurgeon: No hay otro Evangelio, p. 253, sermão sobre a expiação limitada (El Estandarte de la Verdad, 1997).
[42] Ibid., sermão sobre a eleição, pp. 274-275.
[43] Ibid., p. 275.
[44] J. Tracy: The Great Awakening, pp. 10-11 (The Banner of Truth, 1976).
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