domingo, 24 de junho de 2012

UMA FÉ PARA UM MUNDO PERDIDO - PARTE 1

Por JOSÉ MORENO BERROCAL.

A VERDADEIRA BASE PARA A EVANGELIZAÇÃO: AS DOUTRINAS DA GRAÇA

Definindo nossos termos

Ao estudar a relação entre a evangelização e as Doutrinas da Graça, é importante compreendermos claramente os termos envolvidos. A palavra evangelização provém do Evangelho, sendo uma transliteração do termo grego euangelion, que significava originalmente a recompensa que o mensageiro recebia após trazer a notícia de uma vitória. Mas euangelion significa também a própria mensagem, a notícia de uma vitória ou as boas novas a respeito de um assunto político ou particular. Posteriormente a palavra adquiriu uma acepção religiosa como boas novas ou boas notícias da parte dos deuses. Além disso temos o verbo euangelizomai, que significa trazer boas novas ou boas notícias. Igualmente temos o termo euangelistes, que significa o proclamador das boas notícias, o evangelista. Todos esses termos são derivados de angelos, mensageiro, ou de angello, anunciar, com o prefixo eu que significa "bem".

Essas palavras gregas adquirem uma grande importância nos escritos do Novo Testamento ao designar a mensagem de salvação que Deus traz ao homem perdido na pessoa e na obra de nosso Senhor Jesus Cristo. Entre outras passagens, temos Romanos 1.1-4 e principalmente 1Coríntios 15.1-4: "Irmãos, quero lembrar-lhes que o evangelho que lhes preguei, o qual vocês receberam e no qual estão firmes. Por meio deste evangelho vocês são salvos, desde que se apeguem firmemente à palavra que lhes preguei; caso contrário, vocês têm crido em vão. Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras..."

Portanto, podemos dizer que o Evangelho é uma declaração do amor de Deus Pai pelos pecadores em Seu Filho. Nesta declaração Paulo anuncia que temos um Salvador perfeito na pessoa de Jesus Cristo. O Evangelho é uma boa notícia porque nele é proclamado que, sobre a base da obra de Cristo na cruz, podemos receber o perdão dos pecados e a vida eterna (At 13.38,39; 26.18). Evangelizar é tornar conhecido esse amor de Deus em Cristo e convidar os pecadores a aceitá-lo: "O tempo é chegado. O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas!" (cf. Mc 1.15; 2Co 5.17-21). Evangelizar é também um ato de obediência ao nosso Senhor Jesus Cristo: "Todavia, não me importo, nem considero a minha vida de valor algum para mim mesmo, se tão-somente puder terminar a corrida e completar o ministério que o Senhor Jesus me confiou, de testemunhar do evangelho da graça de Deus" (At 20.24). [1]

Sob a expressão "Doutrinas da Graça" encontram-se cinco ensinamentos bíblicos: a depravação total do homem; a eleição incondicional de um povo pelo Pai em Cristo e na eternidade, a morte substitutiva de Cristo pelos eleitos; o chamado eficaz dos eleitos à conversão pelo ministério do Espírito Santo e a perseverança dos santos em sua fé até o fim. São chamadas de Doutrinas da Graça porque enfatizam as razões pelas quais a salvação é somente pela graça de Deus. Como diz Calvino: "Jamais nos convenceremos como é devido de que nossa salvação procede e emana da fonte da gratuita misericórdia de Deus enquanto não tivermos compreendido sua eleição eterna". [2]

A depravação total do homem assinala o fato de que o ser humano, depois da Queda, é incapaz de salvar-se a si mesmo. Somente Deus pode salvá-lo (Ef 2.1-10). Deus determinou fazê-lo, e para isso, dentre toda a humanidade caída, o Pai, na eternidade, escolheu em Cristo (Ef 1.3-5) uma multidão incontável para a salvação. A eleição ressalta o fato de que a salvação é pela pura graça de Deus, já que, segundo as Escrituras, Deus escolhe incondicionalmente aqueles que serão salvos não por alguma coisa antevista neles, posto que a eleição acontece na eternidade. Como diz o Apóstolo Paulo, comentando sobre o exemplo de Jacó e Esaú: "Todavia, antes que os gêmeos nascessem ou fizessem qualquer coisa boa ou má - a fim de que o propósito de Deus conforme a eleição permanecesse, não por obras, mas por aquele que chama - foi dito a ela: O mais velho servirá ao mais novo. Como está escrito: Amei Jacó, mas rejeitei Esaú" (Rm 9.11-13). Para efetuar esse propósito da graça, era necessário que Cristo entregasse sua vida em resgate por aqueles que o Pai havia escolhido desde toda a eternidade para serem salvos. A morte de Cristo redime aqueles que hão de ser alcançados pela salvação: "Pois nem mesmo o Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Mc 10.45). "Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas" (Jo 10.14,15). Posteriormente, o Pai, por intermédio do Espírito Santo, chamará eficazmente os eleitos: "Fiel é Deus, o qual os chamou à comunhão com seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor" (1Co 1.9). "Enquanto Pedro ainda estava falando estas palavras, o Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam a mensagem" (At 10.44). Estas doutrinas nos ensinam como o Deus Trino salva os Seus eleitos: o Pai escolhe na eternidade, o Filho morre pelos eleitos (Mt 1.21) e o Espírito Santo chama eficazmente os que hão de ser salvos. Essa obra da Trindade não pode falhar, já que a graça de Deus não falha, e, por isso, os santos podem estar seguros de que perseverarão até o fim no caminho de Deus: "As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão; ninguém as poderá arrancar da minha mão. Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; ninguém as pode arrancar da mão de meu Pai" (Jo 10.27-29). Aqueles que foram escolhidos na eternidade pelo Pai, foram redimidos pelo Filho e tornaram-se habitação do Espírito Santo, podem estar seguros de que nada nem ninguém poderá separá-los do amor de Deus que é em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8.39).


O propósito deste artigo é explorar as relações entre a evangelização e as Doutrinas da Graça. Existe mesmo alguma relação?


A Grande Comissão de Cristo à Igreja


Em primeiro lugar, o Novo Testamento ensina que o evangelismo não é uma opção para a Igreja, mas um mandamento. Portanto, "a inatividade evangelística é desobediência" [3]. Todos os Evangelhos [4] e o livro de Atos recolhem, como as últimas palavras de Jesus a seus discípulos antes de sua ascensão aos céus, a ordem de levar o Evangelho até os confins da Terra. João registra a ordem que foi dada aos discípulos após a ressurreição: "Ao cair da tarde daquele primeiro dia da semana, estando os discípulos reunidos a portas trancadas, por medo dos judeus, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: Paz seja com vocês! Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se quando viram o Senhor. Novamente Jesus disse: Paz seja com vocês! Assim como o Pai me enviou, eu os envio. E com isso, soprou sobre eles e disse: Recebam o Espírito Santo. Se perdoarem os pecados de alguém, estarão perdoados; se não os perdoarem, não estarão perdoados" (Jo 20.19-23). Mateus compartilha conosco as ordens evangelísticas de Cristo num monte na Galileia: "Os onze discípulos foram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes indicara. Quando o viram, o adoraram; mas alguns duvidaram. Então, Jesus aproximou-se deles e disse: Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos" (Mt 28.16-20). Lucas faz um resumo de tudo o que Jesus ensinou sobre evangelização durante quarenta dias entre sua ressurreição e ascensão: "E disse-lhes: Foi isso que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês. Era necessário que se cumprisse tudo o que a meu respeito está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Então lhes abriu o entendimento, para que pudessem compreender as Escrituras. E lhes disse; Está escrito que o Cristo haveria de sofrer e ressuscitar dos mortos no terceiro dia, e que em seu nome seria pregado o arrependimento para perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vocês são testemunhas destas coisas. Eu lhes envio a promessa de meu Pai; mas fiquem na cidade até serem revestidos do poder do alto" (Lc 24.44-49). Finalmente, no livro de Atos encontramos as últimas palavras de Cristo antes de sua ascensão. "Então os que estavam reunidos lhe perguntaram: Senhor, é neste tempo que vais restaurar o reino a Israel? Ele lhes respondeu: Não lhes compete saber os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade. Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra" (At 1.6-9). Evangelizar, portanto, é parte integrante de ser cristão e de ser Igreja. Como a Igreja tem cumprido esse mandato missionário e evangelístico? Qual é a nossa situação atual?


Estado atual da evangelização no mundo


Nesse aspecto, estamos, sem dúvida, participando de uma época fascinante para a fé cristã. Por um lado, o Evangelho, 2000 anos depois do nascimento de Cristo, propagou-se por toda a Terra. Patrick Johnstone, em seu famoso livro Operation World, afirma: "O Cristianismo chegou a ser uma religião mundial neste século" [5]. Ele continua: "Além disso, nunca na História uma proporção tão alta da população mundial teve contato com o Evangelho, e nunca o crescimento dos cristãos evangélicos foi tão grande" [6]. Nesse raciocínio, é interessante observar que em 1985 a porcentagem de evangélicos nos países do assim chamado "Terceiro Mundo" (66%) superava notavelmente o de evangélicos dos países ocidentais e do leste europeu juntos (34%). Essa tendência continua atualmente. Não podemos esquecer essa extraordinária expansão missionária. Observamos que em muitos lugares o Evangelho avança e que, em termos comparativos, há mais cristãos evangélicos hoje do que em qualquer época passada.


Apesar disso, e sem temor de enganar-nos, podemos dizer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, vivemos dias extremamente difíceis para o Evangelho. Seja na América, seja na Europa ou em qualquer outro continente, a situação parece bastante complicada. Ainda há multidões que nunca ouviram falar do Evangelho. Existem muitíssimas pessoas que vivem nos chamados "povos não alcançados" (unreached people, em inglês). Muitos vivem na chamada "Janela 10/40" [7]. Esses grupos totalizam mais de dois bilhões de pessoas, de acordo com estatísticas do (já distante) ano de 1992. Além disso, existem mais de 1,2 bilhão de "cristãos nominais" e cerca de 1,6 bilhão de pessoas que, mesmo vivendo em lugares de acesso fácil ao Evangelho, não são cristãs. [8]


No mundo ocidental, muitos pensam que os dias do Cristianismo já passaram. O homem moderno, dizem, já é maior de idade, e com a sua tecnologia e ciência deixou para trás os mitos do Cristianismo. Muitos teólogos liberais contribuíram para construir esse modo de pensar com teologias que buscam expurgar do Evangelho os elementos considerados míticos. [9] O materialismo de nossa sociedade criou pessoas apáticas e confortavelmente alheias às realidades espirituais. O importante é possuir e usufruir de bens materiais, não importando se existe mesmo uma realidade espiritual. É mais importante ter do que ser, para utilizar a terminologia de Eric Fromm. Por isso, a indiferença e o desprezo para com o Evangelho crescem constantemente. Vivemos numa sociedade secular onde o que realmente importa é o aqui e o agora. O velho provérbio "Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos" (1Co 15.32) é mais atual do que nunca.


Ao mesmo tempo, nós cristãos contemplamos, aparentemente impotentes, como o erro e a mentira são difundidos rapidamente e recebidos facilmente. O vazio espiritual deixado pelo enfoque puramente material da sociedade tem levado muitos a tentar preenchê-lo com todo tipo de falsas doutrinas. Assistimos a um auge das seitas, do ocultismo, da superstição e da irracionalidade. G. K. Chesterton estava certo ao afirmar que "quando os homens deixam de crer em Deus, não crerão em nada - crerão em qualquer coisa". Ou, como afirma Emanuel Geibel: "Se fecham a porta à fé, a superstição salta pela janela; se expulsam os deuses, chegam os fantasmas". [10]


Como Goya afirmou: "O sono da razão produz monstros". Essa situação levou muitos cristãos à depressão, ao desânimo e ao abandono da evangelização. Outros decidiram recorrer a técnicas de marketing que nada têm a ver com o Evangelho.


Se atentarmos para outros países do mundo, como os países muçulmanos, veremos que a maior parte deles encontra-se na "Janela 10/40". Ou em países como a Índia, onde o hinduísmo exerce sua hegemonia, parece dificilmente possível que o Evangelho possa triunfar. Há mais de 767 milhões de hindus e 1,2 bilhão de muçulmanos no mundo. [11] Durante séculos, o islã e o hinduísmo têm resistido aos embates do Evangelho e, salvo algumas conversões aqui e ali, parecem permanecer, como um todo, imunes às influências do Cristianismo. Devemos acrescentar a essas cifras os 357 milhões de budistas que há no mundo e a crescente influência dessa filosofia no mundo ocidental. [12] Tem havido certo crescimento evangélico em cada um desses lugares, mas de forma lenta e dificilmente espetacular. Esses países não parecem ser um terreno fácil para a expansão do Evangelho. Nessas circunstâncias, que para muitos são terrivelmente depressivas, há algo que nós podemos fazer para trazer mudanças?


O ministério de Cristo como modelo


Neste novo milênio, precisamos continuar cumprindo o mandato evangelístico de nosso Senhor Jesus Cristo. Apesar do notável crescimento da Igreja nos últimos tempos, continuamos enfrentando grandes desafios. Temos alguma esperança ao evangelizar? Os pecadores receberão o Evangelho, afinal? Onde poderemos encontrar a motivação para enfrentar os desafios de nosso tempo? Minha sugestão é voltar às Escrituras e apreciar novamente o modo como nosso Senhor Jesus Cristo levou a cabo a missão que o Pai lhe deu. É no ministério de Cristo onde encontramos a relação entre a evangelização e as Doutrinas da Graça. É no ministério de Cristo onde poderemos encontrar nosso modelo e nossa motivação para enfrentar a tarefa inacabada da evangelização mundial.


Particularmente interessantes são as palavras de Jesus registradas por João: "Assim como o Pai me enviou, eu os envio" (Jo 20.21). Encontramos aqui não somente um mandato evangelístico, mas também um modo de evangelizar. São palavras parecidas com as pronunciadas pelo mesmo Jesus em sua oração sacerdotal: "Assim como me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo" (Jo 17.18). Sobre este último versículo diz Hendriksen: "Assim como o Pai enviou Jesus ao mundo com uma mensagem, assim também Jesus envia os discípulos ao mundo com uma mensagem. A mensagem é a mesma, a da redenção em Cristo" [13]. A missão dos discípulos é pregar o Evangelho como Cristo pregou. Como o Pai enviou o Filho? Com que missão? A quem o Filho foi enviado? Tentaremos encontrar as respostas no próprio Evangelho segundo João. O Pai enviou a Cristo com uma missão específica: dar vida eterna aos que o Pai lhe deu. Cristo estava persuadido de que aqueles que pertenciam ao Pai e que lhe foram dados pelo Pai certamente creriam, por maiores que fossem os obstáculos, e finalmente seriam salvos. Nossa missão é proclamar o perdão dos pecados em Cristo, na certeza de que aqueles que pertencem a Ele ouvirão e receberão a mensagem e serão salvos.


Sem dúvida nenhuma, nossa atitude deve ser, portanto, a mesma que a de nosso Senhor Jesus Cristo na hora de evangelizar. Jesus pregava o Evangelho do Reino de Deus com confiança, sabendo que a conversão das almas dependia exclusivamente da vontade de Deus. Observamos isso claramente em João 6. Ali vemos como, depois de alimentar milagrosamente uma multidão de mais de cinco mil pessoas, essa mesma multidão procura Jesus para fazê-lo rei (cf. 6.15). Jesus adverte que a motivação daquele povo para segui-lo não era a correta: "A verdade é que vocês estão me procurando, não porque viram os sinais milagrosos, mas porque comeram os pães e ficaram satisfeitos" (v. 26). Jesus lhes mostra qual deve ser a atitude correta diante de Sua pessoa. Em primeiro lugar, devem priorizar suas necessidades espirituais, e não as materiais: "Não trabalhem pela comida que se estraga, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do Homem lhes dará. Deus, o Pai, nele colocou o seu selo de aprovação" (v. 27; cf. Mt 6.33). Devem depositar sua confiança n'Ele como o único que pode salvá-los: "A obra de Deus é esta: crer naquele que ele enviou" (6.29), o único designado pelo Pai para esse propósito. Apesar disso, muitos revelam a incredulidade de seus corações ao exigir um sinal extra de que Jesus é digno de ser crido (v. 30). A situação parece desesperadora: essas pessoas, apesar de terem visto Jesus e seus poderosos sinais, não creem n'Ele.


O que deve ser feito? O que o nosso Senhor fez? Ele se apoiou no fato de que existe um número incontável de pessoas que lhe foram dadas pelo Pai e que crerão n'Ele. Por isso, Jesus pode afirmar com confiança a essa multidão incrédula: "Todo aquele que o Pai me der virá a mim" (v. 37), e "É por isso que eu lhes disse que ninguém pode vir a mim, a não ser que isto lhe seja dado pelo Pai" (v. 65). Do que Jesus está falando? Ele nos responde em João 10, onde, sob a alegoria de um pastor de ovelhas, Jesus ensina com precisão que suas ovelhas são aquelas que ouvem a sua voz e o seguem (v. 27). Os que creem são suas ovelhas; os que não creem, não são suas ovelhas (v. 26). O surpreendente é que Jesus revela que suas ovelhas lhe foram dadas de antemão pelo Pai (v. 29). É no capítulo 17 de João onde vemos claramente, na oração sacerdotal de Jesus, o sentido último dessas palavras. Aqui Jesus reitera a natureza de seu ministério: dar a vida eterna àqueles que lhe foram dados pelo Pai (v. 2). Ele manifestou o nome do Pai aos homens que do mundo o Pai lhe deu (v. 6). Significativamente Ele acrescenta: "Eles eram teus; tu os deste a mim". Jesus roga por aqueles que o Pai lhe deu (v. 9). Pede que o Pai os guarde como Ele os guardou enquanto esteve com eles no mundo (vv. 11-12). Pede que aqueles que o Pai lhe deu estejam, um dia, onde Cristo estará para que possam ver a Sua glória (v. 24). Os que o Pai lhe deu não pertencem a este mundo (vv. 14,16) e são reconhecidos por terem recebido a Palavra do Pai por intermédio de Cristo, sendo, justamente por isso, odiados pelo mundo (vv. 6,14). Porém, são amados pelo Pai. A pergunta que devemos fazer é: quando foram amados pelo Pai e dados pelo Pai ao Filho? A única resposta possível é: na eternidade. Muitas outras passagens do Novo Testamento corroboram essa conclusão. Em Efésios 1.4,5 nos é dito: "Porque Deus nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença. Em amor nos predestinou para sermos adotados como filhos, por meio de Jesus Cristo, conforme o bom propósito da sua vontade". Escrevendo a Timóteo, Paulo descreve Deus como Aquele que "nos salvou e nos chamou com uma santa vocação, não em virtude das nossas obras, mas por causa da sua própria determinação e graça. Esta graça nos foi dada em Cristo Jesus desde os tempos eternos, sendo agora revelada pela manifestação de nosso Salvador, Cristo Jesus" (2Tm 1.9,10). Portanto, o Pai deu um povo ao Filho, na eternidade, e esse povo será infalivelmente salvo.


Se a conversão depende da decisão dos homens, então nossas esperanças de evangelização são nulas. Mas se a conversão é uma obra de Deus, então podemos ter esperança. Esperança como a que Jesus manifestou em seu ministério terreno, quando parecia que ninguém estava disposto a ser seu discípulo. A esperança de que aqueles que o Pai lhe deu na eternidade viriam a Ele e seriam salvos: inclusive todas as outras ovelhas que não eram israelitas (Jo 10.16). Portanto, vemos como a Bíblia de modo geral - e o Novo Testamento em particular - contém várias promessas divinas que garantem a conversão de muitos. Quando Paulo pregava em Corinto, o Senhor lhe apareceu numa visão à noite, para encorajá-lo a continuar pregando. Ele assegurou ao Apóstolo que Deus tinha muita gente naquela cidade (At 18.9-11). Por isso Paulo não podia deixar de pregar.


Em outras palavras, Deus prometeu que muitos que agora estão perdidos responderão, um dia, ao chamado do Evangelho. Essa promessa de Deus é a base de nossos esforços evangelísticos. Temos visto como, durante o seu ministério na Terra, nosso Senhor Jesus Cristo depositou sua confiança na certeza de que as promessas de Deus com respeito à salvação não podem ser falsas: "Eu lhes afirmo que está chegando a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e aqueles que a ouvirem, viverão" (Jo 5.25). Essa é também a nossa confiança!


Diante das dificuldades que existem e que sempre existirão para a expansão do Evangelho, a Palavra de Deus nos dá, portanto, um alento para perseverar na evangelização. De fato, ela nos ensina a encontrar motivação e encorajamento da mesma forma que o nosso Senhor Jesus Cristo e posteriormente seus Apóstolos, ou seja, na certeza de que Deus tem um povo que será infalivelmente salvo pela pregação do Evangelho e pela obra do Espírito Santo nos corações dos eleitos de Deus. Nossa confiança na hora de evangelizar é a que se expressa tão claramente num belo e antigo hino:


Oh, Senhor, teu amor é forte,
Mais forte do que a morte,
Não nos deixará jamais.
Os teus filhos que escolheste
Com teu sangue redimiste
E jamais os perderás.

E teu amor é para sempre,
Pelos séculos permanece.
Jamais tu entregarás
Nas mãos do inimigo
Os teus santos redimidos:
Não os desampararás.

É teu amor inquebrantável
Tão constante e entranhável
Que jamais esfriará.
E seu fogo é forte chama,
Muitas águas não o apagarão,
Rios não o extinguirão. [14]


Somos convidados a descansar na soberania de Deus no tocante à salvação dos pecadores. E uma vez salvos, jamais perderão a salvação. J. I. Packer diz: "A soberania de Deus na graça é o que impede que vejamos a evangelização como algo sem sentido. Cria a possibilidade, a certeza, de que a evangelização terá fruto" [15]. Por isso, Bob Sheehan tem toda a razão quando diz: "Uma perspectiva correta a respeito das Doutrinas da Graça nos proporciona uma grande motivação no evangelismo e um antídoto necessário contra o desespero nos momentos estéreis que atravessamos no ministério" [16].


Quando percebemos a relação da soberania de Deus com a evangelização, nossa atitude sobre a tarefa da Igreja deve ser, evidentemente, de otimismo bíblico. As Doutrinas da Graça nos permitem trabalhar com afinco na evangelização mundial. Mais do que isso, nos permitem crer que o futuro pertence à Igreja. Não é uma coincidência que as grandes épocas de expansão missionária tenham coincidido com uma redescoberta das Doutrinas da Graça e sua conexão com a evangelização. [17]

Tradução da primeira parte de Una fe para un mundo perdido, capítulo 5 do livro:
PUIGVERT, Pedro (org.). Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo Histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2002, pp. 200-213.

Traduzido do espanhol por F.V.


NOTAS

[1] Diccionario Expositivo de palabras del Nuevo Testamento, art. "Evangelio", pp. 94-95 (Editorial CLIE, 1984).
[2] João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III, XXI, 1 (Editora Unesp, p. 375).
[3] J. R. W. Stott - J. Grau: La Evangelización y la Biblia, p. 17 (E.E.E., Barcelona, 1973).
[4] Todos sabemos que existe uma outra versão da Grande Comissão no Evangelho segundo Marcos. Sobre essa versão, no livro citado na nota anterior, John Stott diz: "De acordo com a clara evidência dos manuscritos, admite-se universalmente que a conclusão original de Marcos foi perdida e que o chamado 'final longo' (Mc 16.9-20) é uma adição posterior feita por outra mão. Devemos, pois, tratar com muita cautela essa passagem". Ibid., p. 18. Concordo com a afirmação de Stott.
[5] P. Johnstone: Operation World, p. 33, Fourth Edition, 1987 (STL Books, WEC Publications).
[6] Ibid., p. 35.
[7] Isto é, os países situados entre os paralelos 10 e 40.
[8] Perspectives on the World Christian Movement, Edited by Ralph D. Winter & Steven C. Hawthorne, W. CAREY LIBRARY. Pasadena, California, 1992, p. B-183.
[9] Principalmente, Bultmann. Sobre Bultmann, veja Harvie M. Conn: Teología Contemporánea en el Mundo, pp. 32-42 (TELL).
[10] Citações de José María Martínez: Por qué aún soy cristiano, p. 36 (CLIE, 1987).
[11] Dados obtidos de A Toda Criatura: testimonio cristiano a cada hogar. Vol. 10, nº 59. Enero-Febrero 2000, apud Global Evangelization Movement.
[12] Ibid.
[13] W. Hendriksen: Comentario del Nuevo Testamento, Juan, p. 634 (TELL, 1981).
[14] Himnario Evangélico. Literatura Cristiana Evangélica, 1971, nº 551. Traduzido livremente do espanhol por F.V.
[15] J. I. Packer, Evangelism and the Sovereignty of God, p. 106 (Inter-Varsity Press, 1986). Em português, publicado pela Editora Cultura Cristã (boa sorte!!!).
[16] Robert J. Sheehan: "The Doctrines of Grace", p. 33, revista Reformation Today, nº 66, março-abril de 1982.
[17] Cf. especialmente I. H. Murray: The Puritan Hope (The Banner of Truth, 1975) e Erroll Hulse: Give Him No Rest, Apêndice 1 (Evangelical Press, 1991). "Guillermo Carey y el nacimiento de las misiones cristianas modernas", artigo na revista Nueva Reforma.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

O SEU ÚLTIMO ENCONTRO

Por JOEL R. BEEKE.

Prezado leitor:

Provavelmente não nos conhecemos e possivelmente jamais nos veremos. No entanto, quero escrever-lhe uma carta pessoal. E isso porque nós dois temos mais em comum do que você imagina. Ainda que nunca venhamos a nos conhecer pessoalmente neste mundo, um dia estaremos próximos um do outro, porque ambos possuímos uma alma imortal. E nessa alma deveremos nos apresentar um dia diante de Deus, nosso Criador, no grande dia do juízo final. "Da mesma forma, como o homem está destinado a morrer uma só vez e depois disso enfrentar o juízo" (Hb 9.27).

Você pode fazer de tudo para afastar de si o pensamento sobre a morte. Mas não pode escapar ao fato de que um dia você irá morrer. Você morrerá e se encontrará com Deus. Talvez você evite pensar na morte porque sabe que depois da morte vem o juízo, tão certo como depois do dia vem a noite. Portanto, quero fazer-lhe uma pergunta séria e solene: O que lhe acontecerá quando você morrer?

A Bíblia, a consciência, o senso comum, tudo declara que existe uma eternidade a ser encarada após a morte. Por isso, para o seu próprio bem, não fuja desta pergunta: Você está preparado para morrer e ser julgado por Deus?

Lamento ter de dizer que hoje há milhões de pessoas que pensam estar preparadas para a morte e para encarar o Juiz, mas infelizmente passarão a eternidade no inferno. É exatamente isso o que o Senhor nos diz em Sua santa Palavra: "Muitos me dirão naquele dia: 'Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?'. Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês que praticam o mal!" (Mt 7.22,23).

Alguma vez você refletiu sobre o terrível despertar que espera aqueles que passam por esta vida pensando que está tudo bem com eles, mas que ouvirão essas palavras terríveis: "Afastem-se de mim vocês que praticam o mal"?

Será que você e eu estaremos entre os muitos decepcionados que ouvirão essas palavras terríveis?

Alguns passarão a eternidade no Paraíso, outros no inferno.

Em primeiro lugar, devo dizer-lhe, honestamente, que a Bíblia declara (especialmente em Mateus 7) que a maioria dos seres humanos passará a eternidade no inferno. "Larga é a porta e amplo o caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram por ela" (Mt 7.13). Talvez isso lhe pareça cruel, mas isso ocorre não porque Deus seja cruel, mas porque nós, seres humanos, somos extremamente cruéis. Deliberadamente desafiamos o nosso Criador, desprezamos Seu amor e quebramos Seus mandamentos (que nos foram dados para o nosso bem-estar eterno). Em virtude de nossa rebelião e perversidade, merecemos a morte e o inferno. Essas são as únicas coisas que merecemos, "pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus" (Rm 3.23), e "o salário do pecado é a morte" (Rm 6.23).

Que tipo de gente está incluído nessa vasta multidão destinada ao inferno?

1 - Todos os ímpios terminarão no inferno. Isso inclui aqueles que vivem abertamente em perversidade, como os que passam o tempo em bares, gastando seu dinheiro com bebidas e drogas; os que praticam imoralidade sexual; os que não respeitam o Domingo como o Dia do Senhor; os que diariamente assistem com prazer a inúmeras demonstrações de pecado na TV; os que usam o nome de Deus em vão; os que vivem em constante rebelião contra os pais e todo tipo de autoridade constituída por Deus.

Tais pessoas ímpias terminarão no inferno a menos que o Senhor os leve a um verdadeiro arrependimento e conversão mediante a Sua graça. Você pertence a esse grupo? Se sim, eu o exorto a buscar a graça que produz arrependimento, confissão e conversão, antes que seja tarde demais para você buscar o Senhor!

2 - Toda pessoa mundana terminará no inferno. Refiro-me àqueles que não planejam pecar, mas cujas vidas estão intrinsecamente ligadas ao mundo, de tal forma que vivem sem nenhum pesar ou arrependimento enquanto continuamente fazem coisas como colocar-se acima de Deus; desejar as riquezas do mundo mais do que as riquezas do Reino de Deus; promover os desejos carnais em oposição à vontade de Deus revelada na Palavra; valorizar as necessidades mundanas acima da necessidade de um Salvador; temer mais as consequências do pecado do que o Deus santo que odeia o pecado; crer que o que as pessoas pensam a seu respeito é mais importante do que o que Deus pensa a seu respeito. Estes passarão a eternidade no inferno a menos que o Senhor os leve a um verdadeiro arrependimento e conversão mediante o poder de Sua graça. Você pertence a esse grupo?

Se pertence, devo dizer-lhe que o Céu não é o seu lugar. Lá você não seria feliz, porque o Senhor do Céu não é seu amigo; você ama o que Ele odeia, e odeia o que Ele ama. A Palavra de Deus não é sua conselheira, a Sua luz não lhe agrada, e a Lei do Senhor não é o seu guia. Você não tem interesse em ouvir sobre Ele, muito menos de falar sobre Ele. Estar para sempre na presença de Deus seria algo que você não poderia suportar, e a convivência com os santos e com os anjos lhe seria um fardo. Em sua vida cotidiana, a Bíblia nada significa para você, e Jesus Cristo ainda menos. A salvação não é uma questão fundamental para você. "Desperta, ó tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e Cristo resplandecerá sobre ti!" (Ef 5.14). "Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro" (Mt 6.24).

3 - Muitas pessoas religiosas terminarão no inferno. Sim, é possível ser condenado ao inferno apesar de ter frequentado igrejas fiéis, ter sido estudante assíduo ou mesmo professor de escola dominical, ter sido obreiro ou pastor. A religião pode ser nosso assunto preferido, nossas conversas podem ter Jesus Cristo como tema principal, e nosso viver pode parecer impecável - tudo isso sem que nossa alma tenha sido salva da perdição eterna!

Podemos ser tão religiosos quanto as cinco virgens insensatas de Mateus 25, tendo a mesma confissão, a mesma expectativa, as mesmas lâmpadas e a mesma aparência de piedade das cinco virgens - e mesmo assim podemos nos perder para sempre. Podemos ser tão religiosos quanto Ahab, que "rasgou as suas vestes, vestiu-se de pano de saco e jejuou. Passou a dormir sobre panos de saco e agia com mansidão" (1Rs 21.27), e mesmo assim não se havia convertido.

Sim, é possível experimentar convicções superficiais de pecado e ter a impressão de contemplar a Deus e Seus atributos - inclusive reconhecer o pecado e de certa forma humilhar-se, gemer e orar, temer cometer pecado de novo - e mesmo assim ser impedido de entrar no Reino de Deus. Pensemos em Caim, Saul, Judas.

Precisamos mais do que uma religião de sentimentos, mais do que frequentar uma igreja. Precisamos da obra irresistível e regeneradora do Espírito Santo para nascer de novo e assim experimentarmos a conversão. Somente então poderemos amar a Deus com todo o nosso ser (que é o ingrediente que falta em nossos exemplos anteriores) e desejar a Deus como o viajante sedento deseja água fria. Somente então a graça de Deus nos permitirá preparar-nos para o nosso encontro com o Senhor. "Portanto, cuidado para que a luz que está em seu interior não sejam trevas" (Lc 11.35).

Como posso saber se estou incluído naqueles que irão para o Céu?

O caminho para a vida eterna é estreito e apertado.

Todos aqueles que irão ao Céu confessarão que sua salvação foi um grande milagre da graça de Deus. Serão pessoas que verdadeiramente nasceram de novo pelo poder do Espírito Santo (veja João 3). Serão pessoas convertidas por Deus, o que significa três coisas: 1) uma profunda tristeza por causa de sua própria iniquidade; 2) uma imensa alegria pela salvação em Cristo; 3) uma sincera gratidão a Deus (cf. Rm 7.24,25; Sl 50.15).

1 - Quando o Espírito Santo começa uma obra de salvação na vida do pecador, Ele não começa revelando a Cristo. Devido à nossa natureza pecaminosa, não há lugar para Cristo em nossos corações. O que Ele faz é confrontar o pecador com sua trágica situação diante de Deus. O pecador é levado a experimentar tristeza e angústia no coração por seus inúmeros pecados atuais em pensamentos, palavras e ações; tristeza e angústia no coração por viver sem Cristo, sem Deus e sem esperança no mundo; tristeza e angústia no coração ao compreender que o pecado original devastou seu ser, tornando-o uma fonte contaminada e poluída; tristeza e angústia no coração ao perceber que não pode salvar-se a si mesmo, que o faz implorar: "Senhor, tu és justo e tens todo o direito de separar-me de ti para sempre, mas haverá algum caminho em ti mesmo para escapar do teu castigo e ser restaurado à tua misericórdia?".

Você se considera também um pecador miserável, culpado, perdido - sem esperança alguma de salvação em si mesmo?

2 - Quando o pecador percebe que não há futuro para ele além da condenação eterna, e o Espírito Santo o capacita a entregar-se a Deus como seu único refúgio, esse mesmo Espírito Santo lhe mostrará o indescritivelmente rico e magnífico caminho de salvação e libertação provido por Deus, pelo sangue e pelo sacrifício perfeito de Jesus Cristo. O pecador é levado, então, a experimentar sua necessidade de Cristo; é levado a ter uma visão bela, completa e relevante da obra de Cristo a seu favor; recebe uma revelação de Cristo por meio da Palavra e do Espírito, por meio da qual compreende o modo como Cristo cumpriu plenamente a Lei e levou sobre Si o castigo completo do pecado no lugar de pecadores caídos e desprezíveis; recebe a aplicação da obra de Cristo, recebendo Cristo como seu Salvador e Senhor.

Você experimentou Cristo como o caminho de Deus para a sua salvação? Experimenta o desejo de conhecer mais a Cristo?

3 - Finalmente, aqueles que verdadeiramente experimentam o caminho da salvação em Jesus Cristo expressarão também uma profunda gratidão por tão grande livramento: "Como posso retribuir ao SENHOR toda a sua bondade para comigo?" (Sl 116.12). Sim, eles desejam entregar tudo - corpo e alma - nas mãos do Senhor por toda a eternidade, prostrar-se aos Seus pés em submissão verdadeira, e confessar: "Seja feita a tua vontade nos céus e na terra". Apesar de nossas transgressões, desejamos acima de tudo viver para a glória de Deus, e servir ao nosso próximo com amor.

Prezado leitor, examine-se a si mesmo.

Por qual caminho está indo?

Você anda pelo caminho amplo e espaçoso da perdição eterna ou pela trilha apertada da vida eterna? Neste mundo existem muitos caminhos diferentes, mas no mundo espiritual existem apenas dois, os quais nunca se interceptam. São tão opostos um ao outro como a escuridão é da luz, como Satanás é diferente de Deus, como o inferno é diferente do Céu. Somente Deus, em Sua graça, pode nos tirar do caminho espaçoso que leva à perdição e nos colocar no caminho estreito da vida eterna.

Pecador, eu rogo a você que se afaste do caminho da destruição, do pecado e da maldade. Implore a Deus por uma verdadeira conversão, implore Àquele que disse "você precisa nascer de novo", e "o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido". Sua alma está perdida e sua condição é terrível diante de Deus, por isso, clame ao Senhor para que Ele encontre lugar em seu coração para a mensagem do Evangelho, a mensagem de Jesus Cristo crucificado.

Deixo-lhe uma última advertência. Nos vinte e sete livros do Novo Testamento o inferno é mencionado 234 vezes. Se o caminho dos homens tivesse 27quilômetros, haveria 234 placas de sinalização com o seguinte aviso: "Este caminho leva ao inferno". Mesmo assim você permaneceria nesse caminho? Enquanto você permanecer como um pecador descrente, sem arrependimento, sem Cristo, satisfeito consigo mesmo, você continuará nesse caminho rumo ao inferno. O inferno é o fim de uma vida religiosa ou mundana que permanece sem Cristo.

Esta breve mensagem é também um outro aviso enviado a você pelo Senhor, para adverti-lo que todos os caminhos do homem terminam na morte. "Busquem o SENHOR enquanto é possível achá-lo; clamem por ele enquanto está perto" (Is 55.6).

Quantos outros avisos o Senhor enviará a você, até que seu tempo termine, e chegue o dia em que você estará diante de seu Criador, para enfrentar o juízo?

Por amor à sua própria vida, tenha pressa. O fio de sua existência ainda não foi cortado, mas a cada dia que passa vai ficando mais fino e frágil. O Senhor ainda o chama: "Juro pela minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem dos seus caminhos e vivam. Voltem! Voltem-se dos seus maus caminhos!" (Ez 33.11).

A porta da graça ainda está aberta. Você ouvirá a voz de Cristo antes que seja tarde? "Beijem o Filho, para que ele não se ire e vocês não sejam destruídos de repente, pois num instante acende-se a sua ira. Como são felizes todos os que nele se refugiam!" (Sl 2.12).

Todos aqueles que vivem sem Deus na terra viverão sob a ira de Deus no inferno. Como será terrível experimentar junto com o homem rico de Lucas 16, o inferno onde "estou sofrendo muito neste fogo" (Lc 16.24).

Prezado amigo, minha intenção é adverti-lo com amor. Nem você nem eu poderemos escapar da morte. Será um encontro ao qual não poderemos faltar, nosso último encontro, aconteça o que acontecer.

Você está preparado para o seu último encontro? Está preparado para morrer?

Joel R. Beeke é presidente e professor de Teologia Sistemática no Puritan Reformed Theological Seminary. É pastor da Heritage Netherlands Reformed Congregation, editor de Banner of Sovereign Grace Truth, diretor editorial de Reformation Heritage Books, presidente da Inheritance Publishers e vice-presidente da Dutch Reformed Translation Society, em Grand Rapids, Michigan, Estados Unidos. É autor, co-autor e editor de mais de 50 livros, dentre os quais Paixão pela Pureza: conheça os puritanos (Editora PES), Vencendo o Mundo e o magnífico Vivendo para a glória de Deus: uma introdução à fé reformada (ambos publicados no Brasil pela Editora Fiel).

Fonte: Biblioteca de la Iglesia Reformada.
http://www.iglesiareformada.com/Beeke_Cita_Faltaras.html

Traduzido do espanhol por Fábio Vaz.

terça-feira, 12 de junho de 2012

UMA FÉ QUE LEVA À ADORAÇÃO - PARTE 2

Por A. DEMETRIO CÁNOVAS MORENO.


O CONTEÚDO DA ADORAÇÃO

"E proclamavam uns aos outros: Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos, a terra inteira está cheia da sua glória" (Is 6.3). [23]

Podemos estar certos de que o conteúdo da adoração dos serafins era a regra e não a exceção no Céu. Podemos, portanto, adotar tal conteúdo como modelo e paradigma do conteúdo de nossa própria adoração, pois os anjos adoram a Deus de modo perfeito.

Toda verdadeira adoração pública deve conter, no mínimo, certos elementos para ser considerada como tal. Encontramos tais elementos na visão de Isaías. São os seguintes:

Leitura da Palavra (v. 3)

É evidente que os serafins não leram a Bíblia nem consultaram nenhum manual de adoração. Mas também é evidente que eles não tinham necessidade disso: a Palavra de Cristo habita perfeita e abundantemente em seus corações (cf. Cl 3.16). A verdade que proclamaram no tocante à santidade de Deus encontra-se amplamente ratificada pelas Escrituras. Nós, no entanto, devido à nossa fraqueza humana, precisamos recorrer à leitura da Bíblia como auxílio indispensável a fim de expressar adequadamente nossa adoração.

As Escrituras devem guiar nossa adoração, caso contrário a mesma terá meramente "aparência de sabedoria" e "pretensa religiosidade" (cf. Cl 2.23). Quando os Apóstolos retornaram à igreja após serem interrogados, adoraram juntos a Deus citando as palavras das Escrituras (cf. At 4.25,26). O próprio Jesus sempre recorreu às Escrituras (Lc 4.17). E no livro de Apocalipse lemos o seguinte: "Feliz aquele que lê as palavras desta profecia e felizes aqueles que ouvem e guardam o que nela está escrito, porque o tempo está próximo" (Ap 1.3). A Bíblia é fundamental para que adoremos "em verdade" (Jo 4.24), e não segundo nossa própria imaginação. Se não permitirmos que a Bíblia seja o nosso guia, nossos sentidos podem ser desviados de nossa sincera e pura devoção a Cristo (cf. 2Co 11.3), e nossa "adoração" será simplesmente sentimental.

A leitura da Bíblia constitui um ato de adoração quando cremos que a mesma não somente contém, mas é a Palavra de Deus. A Bíblia deve ser lida - seja em público, seja a sós - com a plena convicção de que por meio dela Deus está falando conosco, e não de que estamos "discernindo" o que é Palavra de Deus para nós e o que não é.

Deus fala conosco para que possamos falar com Ele. A adoração não é simplesmente um monólogo de uma congregação que diz a Deus o que pensa sobre Ele. A adoração é o diálogo no qual Deus fala por meio de Sua Palavra, e Seu povo responde por meio dos diversos elementos do culto.

A leitura bíblica é um ato solene que deve ser feito com toda a dignidade e por pessoas idôneas. Afinal, é o único elemento inerrante do culto!

"A leitura da Palavra de Deus na congregação, ao ser parte integrante do culto (por meio da qual reconhecemos nossa dependência d'Ele e nossa submissão a Ele), e um meio santificado por Ele para a edificação do Seu povo, deve ser realizada pelos pastores e mestres". [24]

Oração

Em sua intervenção, os serafins não pareciam dirigir-se diretamente a Deus. No entanto, o que diziam sobre Deus é basicamente o que Jesus ensinou a seus discípulos ao dirigir-se ao Pai: "Santificado seja o teu nome" (Mt 6.9). Igualmente, quando Isaías reage à visão (v. 5), suas palavras mais parecem um solilóquio do que uma interpelação. Não obstante, refletem a oração de Gideão: "Ah, SENHOR Soberano! Vi o Anjo do SENHOR face a face!" (Jz 6.22). Mais adiante, no entanto, Isaías participa desse diálogo que é a oração, dizendo: "Eis-me aqui. Envia-me!" (v. 8), concordando maravilhosamente com a primeira oração do recém-convertido Saulo: "Que devo fazer, Senhor?" (At 22.10).


As manifestações dos serafins e de Isaías manifestam um profundo reconhecimento da grandeza e da glória de Deus, que deve fazer parte de toda oração genuína. Um profundo sentimento de indignidade e pecaminosidade diante de Deus e um oferecimento a Ele de tudo o que somos e temos para glorificá-Lo. Na oração nos oferecemos a Deus como um "sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este é o culto racional de vocês" (Rm 12.1). Na oração oferecemos a Deus "um sacrifício de louvor, que é fruto de lábios que confessam o seu nome" (Hb 13.15). Não há nem um traço de egocentrismo na verdadeira oração. A ação de graças e o louvor deveriam predominar sobre nossas petições, de acordo com o modelo do Pai Nosso.


Certamente há lugar para a petição e a intercessão na oração, mas sempre subordinadas ao louvor e à ação de graças, e de modo coerente com eles. A oração jamais deve ser considerada como um meio para "obter coisas" de Deus, mas sim como um ato de adoração pelo qual Deus glorifica a Si mesmo ao responder graciosamente às nossas necessidades. A ordem bíblica neste sentido é: "Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas" (Mt 6.33).


Interessante a definição de Calvino a respeito da oração:


"É uma espécie de comunicação entre Deus e os homens, por meio da qual adentramos no santuário celestial, somos lembrados de Suas promessas e exortados a demonstrar, quando a necessidade assim o requer, que aquilo em que temos crido simplesmente em virtude de Sua Palavra é verdade, e não mentira e falsidade". [25]


Este conceito é muito diferente do sentido utilitário de muitas "orações" atuais.


A oração é uma resposta à revelação de Deus. O que Isaías disse cada vez que abriu sua boca foi em resposta ao que viu e ouviu. Ao longo da História os santos homens de Deus têm orado "sobre as Escrituras", isto é, lendo passagens bíblicos palavra por palavra ou frase por frase, e orando em harmonia com elas. O pensamento que controlava suas orações era chegar a Deus por meio da Palavra de Deus.


Em alguns círculos está sendo ensinado o conceito de "visualização" das orações, isto é, que não devemos nos limitar a pedir certas coisas, mas devemos visualizar mentalmente suas características concretas: cor, forma, modelo, etc. A semelhante disparate respondemos que a única coisa que Isaías "visualizou" foi a glória e a santidade de Deus, e isso através de uma teofania. Calvino, já no século XVI, advertia a respeito desse perigo, ao comentar sobre o Pai Nosso:


"Finalmente, devemos guardar-nos com toda a cautela em nossas orações para não sujeitar nem ligar Deus a determinadas circunstâncias, nem limitá-Lo a tempo, lugar ou modo de realizar o que pedimos; assim, nesta oração somos ensinados a não legislar para Deus, nem impor a Ele condição nenhuma, mas sim deixar totalmente a Seu beneplácito que Ele faça o que bem entender, do modo, no tempo e no lugar em que tiver por bem". [26]


Com exceção dos serafins, o elemento coletivo da adoração encontra-se ausente na experiência de Isaías, que se expressa sempre na primeira pessoa: "Ai de mim", "Eis-me aqui", etc. Porém, a adoração comunitária é sempre ressaltada nas Escrituras. A própria oração-modelo, o Pai Nosso, pressupõe em seu início uma comunidade que se dirige de forma unânime a Deus. Até há bênçãos especiais associadas a esse tipo de oração (cf. Mt 18.19,20). Portanto, muitos crentes revelam incoerência quando, num contexto de uma reunião de oração, clamam "meu Pai". Não é essa, de modo nenhum, a ênfase da Bíblia.


A oração coletiva ou comunitária apresenta-se a nós como uma prática habitual da Igreja primitiva (cf. At 1.13,14; 4.24ss; 12.12) que demonstra sua importância como parte do culto a Deus. [27]


A oração pública se distingue da particular - entre outras coisas - pela sensibilidade que devemos ter para com os que ouvem e assentem. É lamentável que muitas vezes se ore por pessoas ou motivos desconhecidos para os demais participantes, ou que se ore com um tom de voz que torne a oração ininteligível para os demais. Para tais casos bem que poderíamos aplicar as palavras de Paulo em 1Co 14.15-17.


Existe o perigo da ostentação na oração pública. O fariseu da parábola (Lc 18) é um bom exemplo de tal atitude, que não se limita simplesmente a elogiar suas próprias virtudes, mas também seu conhecimento bíblico.


É importante notar a relevância que as Escrituras dão aos homens no contexto do culto: "Quero, pois, que os homens orem em todo lugar, levantando mãos santas, sem ira e sem discussões" (1Tm 2.8). Se bem que as mulheres podem e devem orar na igreja (cf. 1Co 11.13), não é bíblico que elas dominem a reunião de oração enquanto os homens permanecem calados.


Cânticos


"E proclamavam uns aos outros" (Is 6.3).


É interessante notar que a Bíblia nunca menciona que os anjos cantem. Mesmo que algumas versões da Bíblia possam dar a impressão de que o fazem, nos textos originais não é assim. Em numerosas ocasiões eles são apresentados falando a Deus no Céu e aos homens na Terra, mas nunca cantando.


Na visão de Isaías, os seres celestiais praticavam uma espécie de antífona. O termo hebraico para "proclamar" aqui é hillel, que significa, entre outras coisas, gritar de alegria. Poderia ser considerado, pois, como o equivalente angélico ao canto humano.


O cântico, como parte da adoração, tem sido a prática do povo de Deus desde os tempos mais remotos. A primeira manifestação dessa prática musical aparece no famoso cântico de Miriam, a irmã de Moisés, após a derrota do exército egípcio (Ex 15). Posteriormente os cânticos no Tabernáculo e no Templo (registrados no livro dos Salmos) desenvolveram essa atividade cúltica (Sl 105.1,2; Jr 20.13).


E no Novo Testamento encontramos Jesus e seus discípulos cantando um hino no final da última ceia (Mt 26.30). Outras referências ao canto comunitário podem ser encontradas tanto em Atos quanto nas epístolas (At 16.25; 1Co 14.15; Cl 3.16).


Parece, no entanto, que o cântico não foi uma atividade generalizada na Igreja pós-apostólica, pois Agostinho informa que a igreja de Milão começou a utilizar o canto em tempos de Ambrósio, e no segundo livro de suas Retratações ele afirma que tal costume teve início em sua época na África. [28]


Nossa norma, no entanto, deve ser a Bíblia, e o modelo que esta nos mostra constantemente é o cântico comunitário. Portanto, nenhum coro, grupo ou solista deve suplantar a participação de toda a congregação no louvor lírico. A Reforma, precisamente, resgatou o canto coletivo do ostracismo ao qual havia sido relegado pela igreja medieval. Hoje, no entanto, corremos o risco de retornar às práticas medievais mediante as "apresentações" de grupos, bandas e artistas evangélicos.


Nosso texto ressalta o poder do louvor celestial, indicando que, ao mesmo tempo em que devemos evitar o volume estridente e exagerado de alguns "louvores" modernos, também devemos nos precaver contra expressões apagadas e desmotivadoras em nossa adoração. O versículo 4 nos informa que "ao som das suas vozes os batentes das portas tremeram". Uma das características dos crentes galeses é formar coros de 1000 vozes (talvez em resposta ao desejo expressado no hino de Wesley, "Oh, quem me dera mil línguas para cantar louvores ao meu grande Redentor"). Ouvir tais demonstrações musicais pode nos ajudar a ter uma ideia da potência do louvor que há no Céu.


Um conceito errado que foi introduzido em nossos cultos é o de "tempo de louvor", o espaço dedicado para cantar ao Senhor, como se esse fosse o único modo de adorá-Lo, sem perceber que as Escrituras ensinam que "um sacrifício de louvor" é "fruto de lábios que confessam o seu nome" (cf. Hb 13.15), já seja cantando, orando ou pregando.


Os cânticos não devem predominar no culto cristão. É interessante perceber que em Atos dos Apóstolos vemos somente uma única vez os cristãos cantando, e esta é (surpreendentemente) quando "Paulo e Silas estavam orando e cantando hinos a Deus", na masmorra em Filipos! (cf. At 16.25). O cântico cristão deve ser considerado (por melhor que seja) como um auxiliar em nossa adoração, pois, como diz Calvino, seu propósito é ajudar "o espírito a pensar em Deus (...) pois sendo frágil e quebradiço, facilmente pode distrair-se com diversos pensamentos, se não recebesse todo tipo de ajuda". [29]


A isso podemos acrescentar que o cântico nos ajuda a expressar sentimentos que somente palavras não poderiam. Ele também nos ajuda a memorizar passagens bíblicas.


Os diversos cânticos que eram entoados no Antigo Testamento costumavam ser acompanhados de música instrumental, ainda que os instrumentos não afogavam o canto, como acontece hoje em alguns lugares. A música jamais deve ser um fim em si mesma, mas sim um meio que facilite o louvor a Deus. E ainda que o Novo Testamento não mencione nenhum instrumento musical, não devemos utilizar o argumento do silêncio para condenar seu uso.


De qualquer modo, nem todo tipo de música é igualmente válido para a adoração. A música cristã é importante porque pode produzir em seus ouvintes e em seus intérpretes um determinado efeito. Mas que tipo de efeito é o desejável? Aquele que faz mover os corações - ou aquele que faz mover os quadris? Determinados ritmos podem ser associados a lugares e ocasiões bem mundanos, e não aos átrios do Senhor. Determinados ritmos apelam para a carne, jamais nos elevam a Deus. [30]


Quanto ao conteúdo, se bem que é recomendável utilizar os Salmos, não há razão para não utilizar outras porções das Escrituras ou mesmo composições baseadas na Bíblia. A exortação para cantar "salmos, hinos e cânticos espirituais" (Ef 5.19) não pode significar "salmos, salmos e salmos". O que importa é que as letras sejam bíblicas (cf. Cl 3.16) e que reflitam de forma equilibrada todas as doutrinas. Não é admissível cantar ao Senhor somente como Rei e esquecer outros atributos divinos, bem como a cruz, a graça, o perdão, a salvação e tantos outros conceitos chave. Nossos cânticos deveriam ter conteúdo teológico. Não basta um ritmo contagiante!


O subjetivismo generalizado que, como uma epidemia, contagiou inúmeras igrejas, é igualmente inaceitável. Os evangélicos têm cantado para si mesmos, cantado sobre o que sentem, sobre o que necessitam, sobre suas experiências (?), etc, como se a excelência da verdade bíblica fosse insignificante, e o importante fosse o "sentir-se bem". É irônico que, muitas vezes, o louvor (supostamente dirigido a Deus) tenha como personagem principal aquele que está cantando. Isso não quer dizer que devemos evitar o elemento subjetivo em nossas músicas e em nossas orações. Mas quando o elemento subjetivo predomina sobre o objetivo, abre-se a porta para todo tipo de incoerências e absurdos.


No tocante à adoração musical, deve haver tanto preparação quanto espontaneidade. O cântico é uma expressão externa, e portanto não deve ser vítima da improvisação. Mas ao mesmo tempo deve haver liberdade suficiente para que, espontaneamente, a congregação possa repetir os cânticos, ou parte deles, se assim é orientada a fazê-lo, como aconteceu em alguns avivamentos.


Pregação


"E proclamavam uns aos outros: Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos, a terra inteira está cheia da sua glória" (Is 6.3).


Isaías não teve uma visão que deveria ser investigada ou decifrada. Ele viu e ouviu. Essa combinação, naturalmente, não era novidade no Antigo Testamento. Abraão (Gn 15), Jacó (Gn 28), Moisés (Ex 3; 33), Josué (Js 5.13-15) e outros tiveram experiências semelhantes. E a Palavra foi fundamental em suas experiências.


Igualmente, na adoração cristã - que busca, entre outras coisas, obter uma visão de Deus pela fé - a pregação da Palavra deve ocupar o lugar central. Não é exagerado, portanto, dizer que "há um sentido no qual a pregação não é simplesmente um elemento, mas a própria base da adoração". [31]


A importância e a centralidade da pregação encontram-se severamente abaladas na atualidade. O Dr. Lloyd-Jones queixava-se, já em sua época, da atividade de certos "dirigentes de louvor" que procuravam produzir uma "atmosfera" para a adoração, mas que empregavam tanto tempo para isso, que no final não havia tempo para pregar naquela atmosfera! [32] Em geral, hoje lutamos contra a tendência de abreviar cada vez mais o tempo dedicado à pregação com o objetivo de aumentar ainda mais o erroneamente chamado "período de louvor" e outros elementos secundários. Como diz W. H. Cadman,


"A adoração cristã é ao mesmo tempo a Palavra de Deus e a resposta humana em obediência à Palavra".


Obliterar a pregação é privar o povo de Deus de um meio de graça essencial, primordial para a sua obediência e serviço. Como afirma Calvino,


"A Igreja não pode ser edificada a não ser pela pregação externa, e os santos não poderão manter-se unidos uns aos outros por qualquer outro vínculo que não seja o de guardar a ordem que Deus estabeleceu para a Sua Igreja" [33] (Ef 4.12).


Não é possível ignorar a importância que a Bíblia atribui à pregação, tanto dentro como fora do contexto da adoração. O Novo Testamento utiliza mais de trinta verbos para expressar a atividade da pregação. Os termos "Palavra de Deus", "Palavra do Senhor" ou simplesmente "Palavra", nas epístolas paulinas, são utilizados muitas vezes para indicar a palavra pregada (cf. Cl 4.3; 1Ts 1.6,8; 3.1; 2Tm 2.9; 4.1; etc). [34] Com isto concorda Bullinger: "A pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus". [35]


Somos informados que os Apóstolos estavam "todos os dias, no templo e de casa em casa", e que "não deixavam de ensinar e proclamar que Jesus é o Cristo" (At 5.42). E a pregação de Paulo em Trôade excede em muito os parâmetros modernos da homilética (cf. At 20.9).


Obviamente, nem tudo que é chamado de pregação é digno desse nome. Por isso, um antigo documento cristão nos lembra as características que a verdadeira pregação deve ter:


"O ministério da Palavra deve ser levado a cabo com esforço, simplicidade, fidelidade, sabedoria, seriedade, amor e tal como ensinado por Deus". [36]


Nesse sentido, é essencial que a pregação seja expositiva. Isso significa não somente (como alguns pensam) explicar uma série de versículos consecutivos, mas também a fiel exposição e aplicação do que as Escrituras dizem, seja um versículo ou uma passagem isolada, seja uma série de sermões sobre um determinado livro da Bíblia. Não podem ser considerados como pregação os sermões que consistem meramente em comentários sobre assuntos atuais, ou notícias de jornais, ou novelas, ou discussões éticas ou filosóficas. Essas formas de "pregar" carecem da autoridade distintiva que provém unicamente da Palavra de Deus. [37]


É importante, pois, que os cristãos - seguindo o exemplo dos bereanos - exerçam seu direito ao livre exame das Escrituras, porque se aqueles o exerceram mesmo diante de um Apóstolo, quanto mais devemos aplicá-lo a aqueles que encontram-se, hoje, tão distantes da inspiração apostólica!


As Ofertas


"Eis-me aqui. Envia-me!" (v. 8)


Isaías não trouxe nenhum tipo de oferta ao Senhor. Mas o que fez - e essa é nossa melhor oferta a Deus - foi oferecer a si mesmo. Sim, como disseram os serafins, "a terra inteira está cheia da sua glória" (v. 3), então tudo o que nela há pertence a Deus (cf. Sl 24.1), e duplamente os remidos!


Adoremos, pois, a Deus com tudo o que somos e o que temos. Como diz um antigo cântico:


Todos juntos louvemos
Ao Senhor, a quem devemos
O que somos e o que temos,
Tudo d'Ele vem!


Se cremos que cumprimos com este aspecto da adoração simplesmente dando nosso dinheiro, ou o dízimo, estamos muito enganados. Se bem que o dízimo é o mínimo que devemos dar, também o que fica para nós pertence ao Senhor, inclusive todo o nosso ser. E devemos usar e administrar tudo para a glória de Deus. Na adoração oferecemos a Deus nossos corpos em "sacrifício vivo" (cf. Rm 12.1, ARA). A adoração é um exercício integral. Mesmo na nova criação teremos um corpo - um corpo glorificado - com o qual também adoraremos a Deus por toda a eternidade.


Dito isso, é importante reconhecer que nossas ofertas monetárias, procedentes de um coração agradecido, são mais do que mera contribuição. Como diz Herbert Carson,


"Nossas ofertas são a prova de nosso reconhecimento da providência de Deus". [38]


Davi, falando dos preparativos para a construção do Templo, reconheceu que nossas ofertas são uma devolução a Deus daquilo que Ele nos deu de antemão (1Cr 29.14).


Devido à nossa natureza pecaminosa, o ato de ofertar nunca foi fácil, e menos ainda nestes tempos de consumismo. Esse fator leva muitas vezes a dar ao Senhor daquilo que sobra, depois de termos satisfeito todas as necessidades artificiais que o marketing moderno nos faz sentir. Isso repercute negativamente na obra de Deus, que muitas vezes sofre um estancamento devido à falta de recursos.


Por outro lado, no entanto, a solução não está num enfoque excessivo sobre finanças que em algumas ocasiões apela ao sentimentalismo (ou a outros métodos indignos) para recolher fundos. Pelo contrário, se os crentes veem suas ofertas como uma forma de honrar o Senhor (cf. Pv 3.9), seguirão o exemplo dos filipenses em seu cuidado material para com Paulo (Fp 4.18).


Muito se tem debatido sobre a conveniência ou não de recolher ofertas no transcurso do culto - especialmente em consideração aos não-crentes que possam estar presentes. Não entraremos nesse debate aqui, mas certamente não deve faltar no culto a menção - especialmente em oração - de que estamos trazendo nossas ofertas ao Senhor.


Os Sacramentos


"Logo um dos serafins voou até mim trazendo uma brasa viva, que havia tirado do altar com uma tenaz. Com ela tocou em minha boca e disse: Veja, isto tocou os seus lábios; por isso, a sua culpa será removida, e o seu pecado será perdoado" (vv. 6-7).


Habitualmente consideramos como sacramentos do Antigo Testamento a circuncisão e a Páscoa. Evidentemente, Isaías não estava participando de nenhum deles nessa ocasião. No entanto, a ação de um dos serafins de tocar seus lábios com uma brasa viva pode muito bem ser descrita como sacramental.


Se consideramos um sacramento como uma ordenança "na qual mediante os símbolos visíveis é representada, selada e aplicada nos crentes a graça de Deus em Cristo e os benefícios do pacto da graça" [39], ou como "um sinal visível e exterior de uma graça espiritual e interior" [40], a qualificação faz muito sentido. Não há dúvidas de que Isaías recebeu um sinal visível pelo qual foi-lhe aplicada a graça propiciatória de Deus em Cristo.


Os sacramentos [ordenanças, para os batistas] são parte integrante do culto cristão, e não devem ser celebradas como se fossem um mero apêndice do mesmo. Eles marcam o caminho da adoração ao mostrar de forma pictórica a obra de redenção proclamada pela Palavra.


Os sacramentos demonstram que a adoração acontece por meio da cruz, que não há outro caminho para a presença de Deus além do "novo e vivo caminho que ele nos abriu por meio do véu, isto é, do seu corpo" (Hb 10.20). Por isso canta o salmista: "Então irei ao altar de Deus, a Deus, a fonte da minha plena alegria. Com a harpa te louvarei, ó Deus, meu Deus!" (Sl 43.4).


Os sacramentos, assim como o culto cristão em sua totalidade, são para os remidos: "Com teu sangue compraste para Deus gente de toda tribo, língua, povo e nação. Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus..." (Ap 5.9,10). "Cristo amou a igreja e entregou-se por ela" (Ef 5.25). Esses sinais externos proclamam a realidade espiritual e interna de que Cristo morreu pelos eleitos e somente eles são dignos de participar dos símbolos da redenção.


É importante, portanto, que os sacramentos estejam unidos à Palavra e que sejam definidos por ela. [41] Não somente uma brasa viva foi aplicada aos lábios de Isaías, mas também foi-lhe dada uma explicação a respeito daquela ação simbólica. É interessante notar que Agostinho de Hipona descreveu os sacramentos como "palavras visíveis".


Portanto, rejeitemos os "sacramentos" que a Igreja de Roma têm acrescentado, pois, como dizem os Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, os verdadeiros sacramentos foram "ordenados por Cristo, nosso Senhor, no Evangelho". Calvino diz:


"Aprendamos, pois, que a parte principal dos sacramentos consiste na Palavra, e que sem ela  são corrupções absolutas, como as que vemos hoje no papismo, no qual os sacramentos se transformam em peças teatrais". [42]


Os sacramentos são uma proclamação do que Deus tem feito para a nossa salvação, não uma tentativa humana de aproximar-se de Deus e ser aceito por Ele. Demonstram que a fé cristã é teocêntrica, e não antropocêntrica: "vocês anunciam a morte do Senhor até que ele venha" (1Co 11.26).


Os sacramentos são uma prática habitual da Igreja primitiva (cf. At 2.41,42; 9.18; 10.48; 16.33; 20.7; etc) e, especialmente, a Ceia do Senhor era muito mais frequente. Celebrá-la poucas vezes por ano não faz justiça ao modelo apostólico.


Muita discussão tem sido gerada em torno da questão se os sacramentos são meros símbolos [posição batista tradicional] ou meios de graça [posição reformada tradicional]. Particularmente concordo com Calvino, que os sacramentos são meios de graça. Se não fossem, seria difícil entender a Ceia como participação no corpo e no sangue de Cristo (cf. 1Co 10.16).


Assim como as demais partes do culto, os sacramentos devem ser celebrados com decência e ordem. A prática da igreja de Corinto era certamente reprovável (1Co 11.20-22), como também qualquer atitude que careça da devida solenidade e reverência. Se Cristo nos concedeu tais símbolos externos, o elemento exterior, longe de ser circunstancial, é parte essencial dos mesmos. Celebrar, por exemplo, a Ceia com Coca-Cola não deixa de ser uma incongruência tão grande quanto utilizar frutas em vez de pão.


A comunhão fraternal


"E proclamavam uns aos outros" (v. 3).


A adoração dos anjos tinha uma dimensão vertical (para Deus) e uma dimensão horizontal (uns aos outros). É evidente que eles procuravam louvar a Deus, mas o faziam numa dimensão coletiva. É o que poderíamos chamar de comunhão fraternal na adoração.


Esta é, sem dúvida, uma das razões para a existência do culto público. Quando adoramos a Deus como igreja, não buscamos simplesmente dar "mais glória" a Deus, mas sim ter comunhão uns com os outros.


Os cristãos primitivos conheciam, indubitavelmente, esse aspecto da adoração. Não somente perseveravam na doutrina dos Apóstolos, nos sacramentos e nas orações, mas também na comunhão dos santos (At 2.42).


O autor da epístola aos Hebreus pede a seus leitores, num contexto de culto, que se exortem mutuamente (Hb 10.25). Paulo, em 1Co 11 - 14, tem como premissa que os membros participam de comunhão fraternal na adoração. A forma que essa comunhão adota depende da interpretação e aplicação feitas pelas igrejas, mas de qualquer modo, jamais uma igreja pode ser um mero centro de pregação ou - pior ainda - um centro de espetáculos no qual os membros não passam de meros espectadores.


Historicamente os reformadores adotaram, geralmente, os conteúdos cúlticos indicados nesta seção. Assim, o culto das manhãs de domingo em Genebra constava dos seguintes pontos:


1. Frase bíblica: Salmo 124.8.
2. Oração de abertura (escrita na liturgia) buscando a misericórdia de Deus.
3. Salmo cantado.
4. Oração livre (escrita pelo próprio pastor).
5. Leitura bíblica.
6. Sermão.
7. Oração principal (escrita na liturgia).
8. O Pai Nosso.
9. Salmo cantado.
10. Bênção final (a bênção de Arão, Nm 6.24-26). [43]


Além disso, no culto de comunhão era lido o Credo Apostólico. Em tempos posteriores, os puritanos independentes, provavelmente sob a influência de John Owen, eliminaram do culto todas as orações litúrgicas, ainda que a lógica dessa mudança (já que os hinos são orações litúrgicas com música) não pareça muito correta. [44]


OS EFEITOS DA ADORAÇÃO


"Então gritei: Ai de mim! Estou perdido! Pois sou um homem de lábios impuros e vivo no meio de um povo de lábios impuros; os meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos!" (v. 5)


Em certo sentido, a visão de Isaías não foi uma experiência agradável. Na verdade, ele sentiu-se muito mal: "Ai de mim!". Sentiu-se "perdido", literalmente "silenciado", incapaz de dizer ou fazer coisa alguma na presença de Deus. Sentiu-se, acima de tudo, indigno de louvar a Deus com seus "lábios impuros".


Obviamente ele teve uma impressão maravilhosa da glória e da santidade de Deus, mas o texto ressalta seu sentimento de indignidade.


A adoração genuína deve ter algum efeito, em maior ou menor grau, sobre nós. Caso contrário, é bem provável que não tenhamos adorado em nenhum sentido. A presença de Deus - a "fumaça", v. 4, é uma manifestação da presença divina, como podemos ver em outros casos no Antigo Testamento - e o som de Sua voz não deixam ninguém impassível.


A adoração a Deus põe em evidência nosso estado pecaminoso diante d'Ele. Isso é algo que podemos esquecer facilmente em nosso dia a dia, mas que voltamos a sentir vividamente na presença de Deus.


Essa experiência não significa uma pecaminosidade especial por parte dos adoradores; santos homens de Deus, nos tempos bíblicos, sentiram-se extremamente pecadores na presença de Deus: Moisés diante da sarça ardente, Elias no monte Horeb, Jó diante do torvelinho, Ezequiel junto ao rio Quebar, o Apóstolo João em Patmos, etc...


Não estou comparando tais visões com a experiência cotidiana da adoração cristã, mas,  essencialmente, o elemento comum é a manifestação da presença de Deus e isso estabelece um inegável paralelismo.


A depravação total dos seres humanos torna-se ainda mais evidente ao contemplar a Deus e ao nos comparar com Ele em vez de com nossos semelhantes. Então percebemos a imensa iniquidade que contamina todas as nossas faculdades. Interessante notar que a característica comum a todos os avivamentos do passado é a profunda convicção de pecado que apoderava-se de todos os que participavam de tais eventos.


Certamente a adoração deveria significar uma experiência agradável na presença de Deus (cf. Sl 16.11). Mas a ênfase atual na alegria e no júbilo na adoração - em vez de convicção de pecado, temor e reverência - é completamente oposta ao modelo bíblico. De fato, pode-se perceber facilmente uma evidente contradição entre a "extravagância" da adoração moderna e as manifestações visíveis da presença de Deus na Bíblia (cf. Ml 3.2). Existe um enorme contraste entre a irreverente familiaridade para com Deus na adoração atual e os "lábios impuros" de Isaías e seu povo.


A adoração pode ter efeitos físicos em alguns casos. "Os batentes das portas tremeram" (v. 4). E quando os Apóstolos oraram em certa ocasião com outros crentes, "tremeu o lugar em que estavam reunidos" (At 4.31). Semelhantemente, nossas emoções podem - e devem! - ser afetadas pela adoração, mas sua manifestação dependerá de nosso temperamento e de outros fatores. Não somente nossas faculdades morais e intelectuais estarão envolvidas; deve haver um elemento emocional também. No entanto, as emoções devem ser a consequência de um entendimento intelectual e de uma aceitação moral. Existe sempre o perigo do emocionalismo barato e da manipulação das emoções em determinados círculos, mas isso não deve impedir que exista um lugar correto para as emoções em nossos cultos. Uma adoração sem sentimentos não é coerente com um encontro real e pessoal com Deus.


AS CONSEQUÊNCIAS DA ADORAÇÃO


"Então ouvi a voz do Senhor, conclamando: 'Quem enviarei? Quem irá por nós?'. E eu respondi: Eis-me aqui. Envia-me!" (v. 8).


A visão de Isaías não teve somente efeitos imediatos, mas consequências duradouras. Em outras palavras, não somente afetou as emoções do profeta, mas também a vontade do profeta.


A experiência de Isaías não consistiu meramente num incidente isolado em sua vida ou no argumento para contar uma história ou escrever um livro. Pelo contrário: marcou um momento transcendental que condiciou definitivamente a sua vida e todo o seu ministério posterior. Para Isaías, seu encontro com Deus teve consequências que podem ser resumidas numa palavra: serviço. Ou, especificamente, serviço evangelístico.


A manifestação de Deus para Isaías não teve meramente o propósito de que o profeta contemplara a glória divina. Deus buscava não somente um adorador, mas também um servo; alguém que levasse a cabo uma importante missão em nome de Deus. A pergunta (e o desafio) de Deus foi geral: "Quem enviarei?". A resposta de Isaías foi particular: "Eis-me aqui. Envia-me!". A adoração bíblica nunca pode ser uma experiência mística e introspectiva, mas sim tremendamente prática. É triste observar nos participantes de certos tipos de "adoração" que, depois do culto, não demonstram o menor interesse nem mesmo pelos seus irmãos ao lado.


De acordo com a Bíblia, a adoração precede o serviço, não o contrário. Como acertadamente indica John Blanchard:


"A adoração vem antes do serviço, e o Rei antes dos assuntos do Rei".


Ou, nas palavras de A. W. Tozer:


"Deus quer adoradores mais do que obreiros; certamente, os únicos obreiros aceitáveis são os que aprenderam a arte da adoração".


Ou, como Calvino expressou séculos atrás:


"O primeiro fundamento da justiça é sem dúvida a adoração a Deus".


E como indica John Murray:


"Aquele ou aquilo a quem adoramos determinará nossa conduta".


A fé reformada não deve, portanto, ser confundida com o hipercalvinismo que, com seu conceito fatalista da predestinação, inevitavelmente evoca apatia e desânimo. C. H. Spurgeon, por exemplo, cria piamente na predestinação; no entanto, ninguém pode duvidar de seu zelo evangelístico, sua paixão pelas almas e de suas insistentes exortações para que os pecadores se voltassem para Deus. Sua posição neste sentido encontra-se perfeitamente retratada no livro O Spurgeon que foi esquecido, de Iain Murray (Editora PES).


A adoração nos capacita para servir melhor a Deus. A comissão de Isaías poderia ser chamada de "missão impossível": pregar uma mensagem que todos desprezariam e cujo ápice seria uma destruição total (vv. 9-13). Diante disso ele bem poderia perguntar: "Mas, quem está capacitado para tanto?" (cf. 2Co 2.16). E a resposta bem poderia ser: somente aquele que foi capacitado por Deus por meio da adoração. Somente assim pode-se prestar um serviço teocêntrico, não condicionado pela resposta das pessoas e sem recorrer a métodos de marketing, sem a ansiedade de contar novos convertidos, porém olhando somente a glória de Deus. Somente assim pode-se perseverar ("Até quando, Senhor?", v. 11) sem resultados imediatos ou aparentes. Isaías não chegaria sequer a ver o exílio. Referindo-se aos versículos 9 e 10, Alec Motyer reconhece: "Não há modo de escapar ao claro significado dessa passagem". [45]


Somente na presença de Deus compreendemos que Ele não nos envia para ter sucesso, mas para sermos fiéis. Não para colecionar números e estatísticas, mas para ser "o aroma de Cristo entre os que estão sendo salvos e os que estão perecendo" (2Co 2.15).


Somente podemos servir a Deus adequadamente depois de ter uma visão de Deus, convicção de pecado e certeza do perdão. Como disse Davi, "Então ensinarei os teus caminhos aos transgressores, para que os pecadores se voltem para ti" (Sl 51.13).


Somente assim Isaías pôde oferecer a si próprio, dizendo: "Eis-me aqui!". Isaías ofereceu a si mesmo a Deus antes mesmo de conhecer qual seria a sua missão. É que, quando contemplamos a face de Deus em adoração, não são os dons ou as atividades concretas que contam, mas sim o ardente desejo de servir a Deus.


CONCLUSÃO


Creio ter demonstrado a tese principal deste artigo: que a fé reformada [calvinista], com seu alto conceito de Deus, da soberania e da glória divinas, é a que melhor nos capacita para adorar a Deus e fazê-lo de modo agradável a Ele, honrando-O, ao mesmo tempo em que nos capacita, igualmente, para servi-Lo adequadamente.


No entanto - e isto é fundamental - somente numa vivência espiritual, real, piedosa e efetiva, esta fé poderá dar os desejados frutos que glorifiquem a Deus.


No Terceiro Milênio de Cristianismo, no qual nos coube viver, poderemos continuar adorando a Deus se permanecermos na fé herdada de nossos pais e que - se Cristo não voltar antes - poderemos deixar como um precioso legado para os nossos filhos.


SOLI DEO GLORIA!




NOTAS


[23] Interessante a tradução oferecida por Leupold: "O que enche a terra constitui a Sua glória". Exposition of Isaiah, página 128. Evangelical Press, 1977.
[24] The Subordinate Standards of the Free Church of Scotland, Directory for the Public Worship of God, páginas 138-139.
[25]  Instituição, III, xx, 2.
[26] Ibid., III, xx, 50, § 3. Sobre o Pai Nosso em geral, veja os comentários de Calvino na Instituição, III, xx, 34-52.
[27] Ibid., III, xx, 29-30.
[28] Ibid., III, xx, 32.
[29] Ibid., III, xx, 31.
[30] Selecciones Literarias nº 29, artigo "Música, maestro!".
[31] Herbert Carson: "Halleluja!", página 27.
[32] Dr. Lloyd-Jones: Preaching and Preachers, página 17. Publicado no Brasil sob o título Pregação & Pregadores, Editora Fiel.
[33] Instituição, IV, i, 5.
[34] Nuevo Diccionario de Teología, artigo "Predicación".
[35] Segunda Confissão Helvética, capítulo 1.
[36] Directory for the Public Worship of God da Igreja Livre da Escócia.
[37] Para um tratamento amplo sobre a pregação expositiva, veja Denis Lane: Predica la Palabra (Editorial Peregrino, 1989). Em português, veja Hernandes Dias Lopes: A Importância da Pregação Expositiva para o Crescimento da Igreja (Editora Candeia); David Otis Fuller: Spurgeon Ainda Fala (Edições Vida Nova); John Stott: O Perfil do Pregador (Edições Vida Nova); Charles W. Koller: Pregação Expositiva Sem Anotações (Editora Mundo Cristão); Haddon Robinson e Craig B. Larson: A Arte e o Ofício da Pregação Bíblica (Shedd Publicações); Jilton Moraes: Homilética: da pesquisa ao púlpito e Homilética: do púlpito ao ouvinte (Editora Vida).
[38] Herbert Carson: "Halleluja!", página 82.
[39] Louis Berkhof: Teología Sistemática, página 737 (da edição espanhola).
[40] Livro de Oração Comum da Igreja da Inglaterra.
[41] Instituição, IV, XVII, 39.
[42] Citado por E. J. Young: The Book of Isaiah, volume 1, página 252.
[43] Nick Needham: "Reformed Worship: Lessons from History?", revista Grace, dezembro de 1996.
[44] Ibid.
[45] The Prophecy of Isaiah, página 78.


FONTE: Segunda parte do artigo Una fe que lleva a la adoración, capítulo 4 do livro:
PUIGVERT, Pedro (org.). Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2002, pp. 173-197. Leia a Parte 1 aqui. Traduzido do espanhol por F. V.