domingo, 27 de junho de 2010

A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA PARA NOSSAS VIDAS, HOJE


1 – A NECESSIDADE DA INTERPRETAÇÃO

O propósito da interpretação bíblica não é “descobrir” algo que “ninguém tinha percebido antes”.

O propósito da interpretação bíblica é chegar ao significado simples do texto. O ingrediente mais comum nessa tarefa é o senso comum iluminado pelo Espírito Santo. A boa interpretação dá bom sentido ao texto. A prova da boa interpretação é a paz que ela confere à mente e o consolo que fornece ao coração.

Todo leitor é um intérprete. Ao ler um texto, naturalmente pensamos que entendemos o mesmo. Mas será que o entendemos do modo como o escritor original desejava que fosse entendido? Estamos separados por mais de dois mil anos dos autores bíblicos. Além disso, lemos traduções da Bíblia, e toda tradução é uma interpretação.

Ao aproximar-nos de um texto, geralmente trazemos a ele tudo o que somos: nossas ideias, opiniões, preconceitos, enfim, toda a nossa visão de mundo e cultura. Algumas vezes isso nos faz colocar no texto coisas totalmente alheias a ele.

Algumas das mais terríveis heresias surgiram da interpretação errônea da Bíblia. Por exemplo, as pseudoigrejas que atualmente pregam o chamado “evangelho da prosperidade” afirmam encontrar “base bíblica” para seus ensinos em textos (como 3Jo 2, por exemplo) que nada têm a ver com prosperidade financeira.

George Ladd, teólogo batista, declarou certa vez: “A Bíblia é a Palavra de Deus dada em palavras humanas dentro da História”. A natureza da Bíblia – e o modo como a encaramos – também influencia na sua interpretação. Há os que se aproximam da Bíblia como texto sagrado, e há aqueles que se aproximam dela como um livro meramente humano, um livro religioso como outro qualquer.

Como Palavra de Deus, escrita por seres humanos, a Bíblia tem, simultaneamente, relevância eterna e particularidades históricas. O bom intérprete bíblico precisará lidar com essa tensão.

No tocante ao “lado humano” da Bíblia, há dois fatores que precisamos levar em conta no processo de interpretação:

1º. Ao falar através de pessoas reais, numa variedade de circunstâncias, durante um período de 1500 anos, a Palavra de Deus foi expressa no vocabulário e nos padrões de pensamento daquelas pessoas e foi condicionada pela sua cultura, seus tempos e suas circunstâncias. Por isso precisamos, em primeiro lugar, aprender o que a Palavra significava para seus ouvintes originais. Devemos compreender o que foi dito a eles em seu tempo e lugar; para depois aplicar seus princípios em nosso tempo e lugar.

2º. A Bíblia faz uso de uma profusão de gêneros literários diferentes: narrativa histórica, genealogias, crônicas, leis, poesia, provérbios, oráculos proféticos, parábolas, cartas, sermões, etc. É preciso levar em consideração as regras de interpretação apropriadas para cada gênero literário, e o modo como Deus os utiliza para falar conosco hoje. Por exemplo, um Salmo, que foi escrito para falar com Deus, é diferente de uma porção da Lei, que foi escrita para dirigir-se aos homens. Hoje, porém, devemos aplicar ambos em nossas vidas, e aplicá-los corretamente.

2 – AS TAREFAS DO INTÉRPRETE

2.1. PRIMEIRA TAREFA: EXEGESE

Exegese é o estudo cuidadoso e sistemático da Escritura para descobrir seu sentido original. É fundamentalmente uma tarefa histórica. É a tentativa de ouvir a Palavra de Deus da mesma forma como a ouviram seus destinatários originais, encontrando assim a intenção original das palavras da Bíblia. Essa tarefa normalmente requer a ajuda de um pesquisador que conheça os idiomas originais da Bíblia, porém, seguindo certos passos, mesmo pessoas leigas podem fazer uma exegese.

De certo modo todos são exegetas. A questão é se são bons ou maus exegetas.

Num nível mais elevado, a exegese requer o conhecimento dos idiomas bíblicos; das culturas semítica, judaica e helenista; a determinação do texto original quando os manuscritos apresentam várias versões; o uso de todo tipo de fontes, recursos e instrumentos. No entanto, pode-se aprender a fazer exegese mesmo sem ter acesso a todas essas habilidades e ferramentas. Para tanto, deve-se primeiramente aprender o que cada um pode fazer com suas próprias habilidades. Em segundo lugar, deve-se aprender a utilizar o trabalho de outros.

A chave para uma boa exegese, e para uma leitura eficaz da Bíblia, é ler o texto com atenção e fazer as perguntas apropriadas a cada texto.

Há dois tipos fundamentais de perguntas que o leitor deve fazer: as que se referem ao contexto e as que se referem ao conteúdo. As perguntas de contexto dividem-se em duas categorias: históricas e literárias.

Perguntas de contexto.

Contexto histórico. Deve-se levar em conta a época e a cultura do autor e de seus leitores (nem sempre serão as mesmas); aspectos geográficos e políticos; a ocasião em que o texto (salmo, profecia, epístola, etc) foi escrito. Exemplo: história pessoal de Amós, Oséias, Isaías; a situação histórica na época de Ageu; as esperanças messiânicas de Israel nos ministérios de João Batista e Jesus; as características de cidades como Corinto e Filipos; etc.

Há recursos que podem fornecer ajuda para responder a essas questões: dicionários bíblicos, comentários, manuais bíblicos, livros sobre a história bíblica, entre outros.

As perguntas mais importantes no contexto histórico, no entanto, são as que se referem à ocasião e ao propósito de cada livro bíblico. Bons comentários e manuais bíblicos podem ser muito úteis neste caso, bem como algumas Bíblias de estudo.

Contexto literário. As palavras somente têm significado dentro das frases em que se encontram, e as frases, dentro das orações mais longas em que se encontram (parágrafos, trechos), e estas orações mais longas, por sua vez, encontram seu significado de acordo com as orações que as antecedem e que as sucedem. É isso o que as pessoas querem dizer quando falam de ler algo dentro de seu contexto.

As perguntas mais importantes que devemos fazer no contexto literário, em cada frase e em cada parágrafo, é: “Qual é o propósito? Qual a finalidade?”. Devemos seguir o pensamento do autor. O que o autor está dizendo, e por que está dizendo isso, em certo momento ou lugar? Depois de encontrar a resposta, questionar: O que o autor dirá a seguir? Essas sempre serão perguntas decisivas, fundamentais para a compreensão do texto bíblico. Afinal, o objetivo da exegese é descobrir a intenção original do autor. Para realizar essa tarefa, é imprescindível o uso de uma boa tradução da Bíblia, que reconheça os diferentes gêneros literários, que mostre claramente os parágrafos de uma narrativa, que saiba reconhecer uma poesia. Uma tradução da Bíblia que utiliza um parágrafo para cada versículo deve ser evitada. (Um bom exemplo de tradução que reconhece parágrafos e poesia é a Nova Versão Internacional [NVI]. Muitas pessoas nem ao menos sabem que tipo de tradução da Bíblia estão utilizando. Um leitor consciente deve conhecer as características das diversas traduções e versões bíblicas disponíveis no mercado, e então escolher a que melhor se encaixa em seu perfil e em suas necessidades. O ideal é possuir o maior número possível de versões bíblicas.)

Perguntas de conteúdo.

São as que se referem ao significado das palavras, às relações gramaticais, à seleção do texto original quando há várias versões nos manuscritos. Também leva-se em consideração perguntas referentes ao contexto histórico, como por exemplo: o significado de termos e expressões como denário, viagem de um dia de sábado, lugares altos, etc.

Para isso novamente precisaremos de ajuda externa. Um bom dicionário bíblico, ou exegético, é fundamental. Comentários bíblicos também podem ser utilizados, mas com cautela. É preciso saber reconhecer os bons autores de escritores medíocres, ou de autores que seguem linhas teológico-doutrinárias questionáveis. Há quatro recursos ou instrumentos indispensáveis para uma exegese: dicionários bíblicos, um bom Manual bíblico, boas traduções da Bíblia e bons comentários bíblicos, escritos por autores confiáveis.

2.2. SEGUNDA TAREFA: HERMENÊUTICA

A hermenêutica cobre todo o campo da interpretação, incluindo a exegese. Porém, aqui, usaremos o termo hermenêutica de modo mais restritivo, significando a busca pela relevância contemporânea de textos antigos. Em outras palavras: o que o texto bíblico fala para nós, hoje?

Devemos ler a Bíblia de forma devocional. Mas também devemos ler a Bíblia para entender, aprender, e assim aplicar. O estudo da Bíblia certamente enriquecerá nossa leitura devocional. Assim, a hermenêutica apropriada começa com uma exegese sólida.

A razão pela qual devemos começar pela exegese é simples: o único controle apropriado da hermenêutica (interpretação) encontra-se no propósito original do texto bíblico. E somente chegamos a esse propósito original por meio da boa exegese. Senão, o leitor poderá dar qualquer significado a qualquer texto bíblico. Cada leitor terá sua própria “interpretação”. A subjetividade de cada “intérprete” seria a norma. Porém, a Bíblia é um livro objetivo, que possui uma interpretação objetiva e apropriada para cada texto, para cada uma das sessenta e seis obras que a compõem. Por isso é simplesmente essencial utilizar as ferramentas da exegese e da hermenêutica para chegar a um correto entendimento da mensagem bíblica.

Devemos chegar ao significado original do texto. Um texto não pode significar, hoje, o que jamais significou. O verdadeiro significado de um texto bíblico, para nós, hoje, é aquele que Deus se propôs originalmente que significaria quando o revelou. Esse é o nosso grande objetivo, a nossa tarefa como hermeneutas (intérpretes) da Bíblia.

3 – INSTRUMENTOS BÁSICOS

3.1. Traduções.

A Bíblia foi escrita originalmente em três idiomas: hebraico (na maior parte do Antigo Testamento), aramaico (idioma irmão do hebraico utilizado em partes de Daniel e Esdras e um versículo de Jeremias) e grego (em todo o Novo Testamento). Nem todos os leitores têm conhecimento desses idiomas. Isso significa que o primeiro instrumento básico do intérprete da Bíblia é uma boa tradução – ou melhor, várias boas traduções.

Ler uma tradução é ler uma interpretação. Ao utilizar somente uma tradução, o leitor fica comprometido com a interpretação daquela equipe específica de tradutores. E mesmo as melhores traduções da Bíblia podem conter imperfeições.

Qual tradução escolher? Simplesmente aquela que “eu gosto”? Precisamos conhecer alguns fatos sobre os manuscritos bíblicos, sobre a ciência da tradução e sobre as diversas traduções disponíveis em português, antes de escolher nossa “favorita”.

O Antigo Testamento possui, hoje, duas “famílias” principais de manuscritos: o Texto Massorético (TM) e os Manuscritos do Mar Morto (MMM).

Os massoretas eram os escribas judeus que padronizaram o texto hebraico do Antigo Testamento (c. 500-1000 d.C.). O TM que temos hoje baseia-se em manuscritos produzidos com cuidado reverente pelos escribas judeus ao longo de séculos. Recebe o apoio de traduções do Antigo Testamento (isto é, a Bíblia Hebraica) para outras línguas, especialmente a Septuaginta (LXX), versão grega datada dos séculos III e II a.C.

Outra família de manuscritos foi descoberta em 1947, a doze quilômetros ao sul de Jericó, por um jovem pastor árabe chamado Muhmmad adh-Dhib. Foi uma das maiores descobertas arqueológicas do século XX. Tratavam-se dos “Manuscritos do Mar Morto” (MMM). Dentre eles, havia rolos contendo livros do Antigo Testamento, que confirmaram a autenticidade dos manuscritos do TM. Praticamente todas as traduções da Bíblia em português utilizam o TM. As mais recentes (NVI, A21) também levam em consideração a LXX, os MMM e outras traduções antigas.

Existem mais de 5.000 manuscritos do Novo Testamento, que se dividem em duas “famílias” principais: o Texto Bizantino (também conhecido como Textus Receptus ou Texto Recebido) possui um número maior de manuscritos, porém mais recentes. Algumas das traduções da Bíblia em português que utilizam o Texto Bizantino são: Almeida Corrigida Fiel (ACF), da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil (SBTB); Almeida Revista e Corrigida (ARC), da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB); e a Edição Contemporânea de Almeida (ECA), da Editora Vida.

A segunda família de manuscritos do NT é conhecida como Texto Alexandrino (ou Texto Crítico ou ainda Texto Neutro). Possui poucos manuscritos, porém mais antigos. Sua maior característica é um texto mais enxuto e confiável. Fazem uso do Texto Alexandrino as seguintes traduções: Almeida Revista e Atualizada (ARA), da SBB; Nova Versão Internacional (NVI), da Sociedade Bíblica Internacional (SBI); Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), da SBB; e a recente Almeida Século 21 (A21), de Edições Vida Nova.

3.2. Dicionários.

Outra ferramenta indispensável para o intérprete da Bíblia são os dicionários. Não somente os dicionários bíblicos, mas é fundamental ter um excelente dicionário da Língua Portuguesa!

Quanto aos dicionários bíblicos, sugerimos os seguintes:

DAVIS, John. Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Editora Hagnos.

DOUGLAS, J. D. (ed.). O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Edições Vida Nova.

YOUNGBLOOD, Ronald F. Dicionário Ilustrado da Bíblia. São Paulo: Edições Vida Nova.

3.3. Manuais Bíblicos.

Há no mercado brasileiro excelentes Manuais Bíblicos. Um manual desse tipo é uma obra de referência para a vida toda.

DOCKERY, David D. Manual Bíblico Vida Nova. São Paulo: Edições Vida Nova.

HALLEY, Henry. Manual Bíblico de Halley. São Paulo: Editora Vida.

UNGER, Merril Frederick. Manual Bíblico Unger. São Paulo: Edições Vida Nova.

3.4. Comentários Bíblicos.

Esta é a ferramenta mais delicada e a última que deve ser consultada. Há muitas coleções de comentários bíblicos disponíveis em português (o que é bom), porém algumas delas não são confiáveis, porque foram escritas por autores comprometidos com teologias alheias à fé cristã histórica. No entanto, há Editoras sérias e responsáveis em nosso país, que publicam obras de qualidade. Recomendo os comentários bíblicos publicados pelas seguintes editoras: Vida Nova, Shedd Publicações, Hagnos, Cultura Cristã, Editora Fiel, ABU (Aliança Bíblica Universitária), Editora Evangélica Esperança.

Todo estudante sério da Bíblia deve ler comentários, e jamais prender-se a um único autor. Há alguns fatores que devem ser levados em consideração antes de ler um comentário:

1º. O comentário deve ser exegético – o autor deve conhecer os idiomas originais da Bíblia e fazer uso deles, ao longo de sua obra.

2º. O autor deve comentar a respeito de todos os significados possíveis de determinados textos (especialmente os reconhecidamente difíceis!).

3º. O autor deve conhecer e expor os contextos histórico, cultural, geográfico, etc, de cada texto.

4º. O autor deve mencionar (geralmente no fim do livro) uma bibliografia razoável para aprofundamento dos estudos.

4 – GÊNEROS LITERÁRIOS DA BÍBLIA E SEUS ASPECTOS HERMENÊUTICOS – UM BREVE PANORAMA ILUSTRATIVO

4.1. Epístolas.

A literatura epistolar da Antiguidade é profusa. Milhares de epístolas foram encontradas, além daquelas contidas no Novo Testamento. A epístola é um gênero literário dirigido a um público – não se trata meramente de uma “carta” escrita para ser lida apenas por uma pessoa ou um pequeno grupo. As epístolas seguem em geral o seguinte esquema:

1. Nome do escritor.

2. Nome do destinatário.

3. Saudação.

4. Oração ou ação de graças ou doxologia (elemento variável).

5. Texto.

6. Saudação final e despedida.

O intérprete bíblico precisa levar em consideração que todas as epístolas são documentos de ocasião, isto é, foram escritas devido a um evento ou ocasião específicos, com um motivo ou propósito singular. São casuais, e dependem de uma série de fatores históricos, culturais, políticos, etc.

Tomemos como exemplo 1Coríntios. Para compreender corretamente essa epístola, devemos, em primeiro lugar, tratar de compreender adequadamente a situação pela qual estava passando a igreja de Corinto, bem como a cultura daquela cidade, sua história, características, etc. Precisamos utilizar os recursos acima descritos – dicionários, manuais bíblicos, comentários – para que possamos conhecer a Corinto antiga e suas peculiaridades.

Em segundo lugar, para o estudo ser eficaz devemos formar o hábito de ler toda a epístola, e fazê-lo muitas vezes. As epístolas eram lidas dessa forma, e não de modo fragmentado. É fundamental ler a epístola várias vezes. Ao ler, devemos observar e anotar. Alguns exemplos de anotações:

1. Quem são os destinatários (judeus, gregos, escravos, livres, seus problemas, suas atitudes, etc).

2. A atitude do autor (no caso de 1Co, Paulo. Com que propósito ele está escrevendo? Qual seu objetivo?).

3. As coisas específicas mencionadas referentes à ocasião particular dessa epístola (que situação era aquela?).

4. As divisões lógicas e naturais da epístola.

Precisamos perceber qual a natureza precisa de cada um dos problemas dos destinatários (em nosso exemplo, de Corinto). Para isso deveremos estudar o contexto histórico de Corinto, bem como o contexto literário da epístola. Aqui, devemos aprender a “pensar em parágrafos”. É essencial identificar a ideia central de cada parágrafo da epístola. Naturalmente, o uso de uma tradução adequada é importantíssimo. A NVI, sabiamente, utiliza a divisão correta para cada gênero literário da Bíblia. Utilizando uma tradução assim, o leitor não terá dificuldade alguma para identificar cada parágrafo. Devemos reconhecer, igualmente, as metáforas, ilustrações, figuras de linguagem, etc, empregadas pelo autor da epístola.

Devemos lembrar sempre da “regra de ouro”: um texto não pode significar para nós, hoje, o que nunca significou para seu autor ou para seus leitores originais.

Algumas passagens certamente permanecerão obscuras para o leitor. Afinal, as epístolas não foram escritas originalmente para leitores do século XXI. Futuras pesquisas poderão elucidar trechos problemáticos.

Há um abismo cultural de dois mil anos entre os escritores e leitores originais do Novo Testamento e nós, hoje. Não devemos jamais esquecer esse fato.

4.2. Narrativas do Antigo Testamento.

Mais de 40% do AT é narrativa. A narrativa é um relato verídico, a história de Deus. É a história da intervenção de Deus na vida das pessoas e através das pessoas ao longo dos séculos. Geralmente, a narrativa não traz um ensinamento direto, porém exemplifica o que é ensinado diretamente em outro lugar. Por exemplo: na história de Davi e Bate-Seba, não há um ensino sistemático sobre adultério e assassinato, mas o que aconteceu com Davi posteriormente, ao enfrentar as gravíssimas consequências de seus atos, ilustra e exemplifica o caráter hediondo do adultério e do homicídio.

Há alguns princípios para a interpretação das narrativas do AT:

1. Uma narrativa geralmente não ensina diretamente uma doutrina, somente ilustra o que é ensinado como doutrina em outra parte da Bíblia.

2. A narrativa nos informa o que realmente aconteceu, historicamente, não o que deveria ter acontecido. Registra igualmente os acertos e os erros dos homens. Há exemplos que devem ser seguidos, mas há outros que devemos evitar a todo custo.

3. Nem sempre somos informados pela narrativa se as ações de um determinado indivíduo foram boas ou más. Devemos julgar os fatos narrados a partir do ensino global das Escrituras.

4. Todas as narrativas são seletivas e incompletas. Muita coisa do que ocorreu foi omitida.

5. As narrativas não foram escritas para resolver questões teológicas.

6. Deus sempre é o herói de todas as narrativas bíblicas.

Conhecer o contexto histórico é simplesmente indispensável para interpretar corretamente as narrativas do AT. É preciso tomar muito cuidado para não “alegorizar” as narrativas, fazendo-as significar hoje o que jamais significaram. E lembre-se: não tente imitar nenhuma personagem bíblica. A história de José aconteceu com José. Jamais se repetirá com qualquer outra pessoa.

O mau uso das narrativas do AT é uma das características de boa parte das igrejas “evangélicas” atuais, especialmente as neopentecostais, em sua ânsia por extorquir o povo simples que as frequenta. Ao interpretar as narrativas do AT, precisamos levar em conta, sempre, o contexto global das Escrituras, especialmente a revelação maior e mais profunda encontrada no Novo Testamento.

4.3. Os Evangelhos: Uma história em quatro dimensões.

Havia diferentes comunidades que precisavam de uma história de Jesus. Marcos provavelmente foi o primeiro evangelho a ser escrito. Depois foi “ampliado” por Mateus e Lucas. Tempos depois, João também escreveu seu evangelho. Cada um deles é um testemunho de Jesus, de acordo com seu ponto de vista, voltado para as necessidades de seu próprio público. Para estudá-los, é preciso buscar conhecer o contexto histórico de Jesus, o contexto histórico de cada evangelista e de seu público original. E dentro de um evangelho há narrativa histórica, ensino doutrinário, parábolas, profecias, etc. Cada um desses gêneros literários deve ser interpretado de acordo com sua natureza.

Os evangelhos contêm notas biográficas sobre Jesus, porém não são biografias. Ele não relatam com detalhes a vida de Jesus Cristo, mas trazem os fatos dos quais necessitamos saber para a nossa salvação.

A primeira tarefa da exegese é estar consciente do contexto histórico. Para bem compreender os evangelhos, em primeiro lugar precisamos pesquisar a vida e os tempos de Jesus, bem como seu contexto religioso, cultural, social, político e econômico. Devemos igualmente pesquisar a respeito de cada evangelista: Mateus, Marcos, Lucas e João. Qual o objetivo de cada um deles ao escrever sobre Jesus? Quem eram seus leitores originais? Em que época e lugar cada evangelho foi escrito? Além disso, devemos conhecer os diversos gêneros literários que formam um evangelho, especialmente a parábola, gênero muito utilizado por Jesus em seus ensinos. Outros gêneros presentes nos evangelhos são o ensino, a ordenança, a narrativa e passagens escatológicas.

A Bíblia é o mais importante livro de todos os tempos; é a Palavra de Deus. Ler a Bíblia de forma irresponsável e descuidada é uma tragédia. É uma das calamidades que assolam a igreja evangélica brasileira na atualidade. É uma das causas pelas quais muitas “igrejas”, no Brasil de hoje, não são verdadeiramente igrejas, no sentido neotestamentário do termo. Uma das marcas de uma verdadeira igreja é o estudo diligente e a interpretação correta da Palavra de Deus.

Fonte: FEE, Gordon; STUART, Douglas. La Lectura Eficaz de la Biblia. Miami: Vida, 1985.

domingo, 13 de junho de 2010

NOVA CRIAÇÃO (Resumo de uma Exegese)


INTRODUÇÃO

A expressão “nova criação” aparece somente duas vezes nas epístolas paulinas, a saber, em Gl 6.15 e 2Co 5.17, ambas inseridas em contextos nos quais, num primeiro olhar, poderia parecer superficial e não muito relevante – em Gálatas no epílogo da epístola; em 2 Coríntios quase de passagem, em meio a uma digressão sobre o “ministério da reconciliação” (REY, 2005, p. 20). Porém, nos dois casos a expressão é, inquestionavelmente, de grande importância. Em Gálatas ela torna-se o fecho e o resumo de tudo quanto o Apóstolo argumentou naquela epístola, a respeito da nova vida em Cristo, que, pela Sua graça, nos liberta da escravidão ao pecado e à Lei; em 2 Coríntios a expressão surge no meio de uma reflexão paulina a respeito da imensa responsabilidade que pesa nos ombros de todo cristão, a saber, a responsabilidade de ser um reconciliador entre Deus e os homens. Para os propósitos desta pesquisa foi selecionada justamente essa última passagem, por entender que a mesma é de extrema relevância para o cristão e a Igreja hodiernos.

DELIMITAÇÃO DO TEXTO
Paulo escreve aos coríntios a fim de defender seu apostolado (sua autoridade) e seu caráter (sua integridade). Ataques pessoais contra o Apóstolo partiam de grupos dentro da igreja (KRUSE, 1994, p. 45). Depois da proclamação paulina que deu origem àquela igreja, e da saída do Apóstolo da cidade, chegaram outros pregadores itinerantes. Seu ensino dividiu a igreja em diversos grupos e instalou certa confusão doutrinária e moral, exaltando os ânimos até mesmo contra Paulo (FABRIS, 2001, p. 380). Esse conflito gerou certa correspondência epistolar entre o Apóstolo e a igreja, da qual chegaram até a atualidade somente as epístolas canônicas 1 e 2 Coríntios (sendo que é possível que esta última seja a junção de duas ou mais epístolas). Em 1 Coríntios Paulo responde a questões específicas quanto à vida eclesial. Já em 2 Coríntios, com exceção do trecho a respeito da coleta para Jerusalém, observa-se um único tema a conduzir todo a argumentação paulina, a saber, a genuinidade da autoridade apostólica de Paulo (BOOR, 2004, p. 293). Imediatamente após a saudação inicial (2Co 1.1,2), o Apóstolo passa a explicar o motivo de sua mudança de planos no tocante à ordem, número e datas das visitas que faria à igreja (2Co 1.3 – 2.11; cf. BOOR, 2004, p. 319-320). Ao enviar Tito em seu lugar, com a chamada “epístola das lágrimas” (2Co 2.4), ele havia gerado ainda mais desconfiança sobre sua pessoa, entre os membros da igreja de Corinto. Paulo se defende apelando para a própria existência da igreja – os mesmos coríntios, que reclamam de Paulo, são a “carta de recomendação” do Apóstolo, visto que foram gerados em Cristo mediante seu ministério, o qual, na verdade, é muito mais glorioso do que foi o do próprio Moisés (isso certamente deve ter chocado muitos coríntios judeus e prosélitos, oriundos da sinagoga), visto que é o “ministério do Espírito” (2Co 2.12 – 3.18). Ele reconhece que não passa de um “vaso de barro”, porém, esse vaso contém um “tesouro”, pelo qual vale a pena viver e morrer, e Paulo está certo de que sua confiança em Cristo jamais será abalada, nem mesmo na morte, quando comparecerá perante o tribunal de Cristo (2Co 4.1 – 5.10).
A perícope seguinte é a que interessa à presente pesquisa. Paulo irá argumentar que, conhecendo o temor do Senhor, visto que um dia se apresentará diante do tribunal de Cristo, vive e age do modo que o amor de Cristo o constrange a viver e agir. Não age por motivos escusos nem dirige seu ministério para proveito próprio. Não, agora Paulo não vive para Paulo, mas para Cristo. Nem considera a ninguém (nem o próprio Cristo) do ponto de vista humano ou carnal. Paulo tem uma outra visão da vida, do mundo, de Cristo, uma nova visão. Uma nova visão que norteia e modela sua missão. De onde veio essa nova visão? Do fato objetivo, sobrenatural, de ser uma nova criação em Cristo. Devido a isso, todo o passado de Paulo (e com ele quaisquer intenções ocultas que ele poderia ter) ficou para trás. Tudo é novo em Cristo, para quem Paulo vive e respira, e de quem recebeu o ministério da reconciliação, que o faz cooperador de Deus para proclamar a salvação. Não somente ele, mas todo crente é uma nova criação, recebeu a mesma nova vida, o mesmo ministério e a mesma responsabilidade de Paulo (2Co 5.11 – 6.2).
Assim, estudar-se-á a expressão “nova criação” especificamente em 2Co 5.17, porém não descuidando seu contexto imediato, na perícope que começa em 5.11 e termina em 6.2, conforme exposto acima.

CONTEXTO
A passagem de interesse para este estudo encontra-se em meio à discussão paulina a respeito do “ministério da reconciliação”, no trecho situado entre 5.11 e 6.2 (HALE, 2001, p. 243). Certo autor observa:

Nesta seção central de sua carta, Paulo apela aos coríntios a que se reconciliem com Deus e abram seus corações ao apóstolo. Ele prepara caminho para esses apelos, primeiro ao responder às críticas quanto ao estilo de seu ministério (5:11-15), e, a seguir, ao enunciar as bases teológicas sobre que repousa a reconciliação (5:16-21). A seguir, Paulo apresenta apelos (6:1-13; 7:2-4), e vai semeando aqui e ali exortações quanto à santidade de vida (6:14 – 7:1). (KRUSE, 1994, p. 126,127).

Em meio à controvérsia sobre a verdadeira natureza de seu apostolado e a validade de seus ensinamentos em Corinto,

Paulo visa ser compreendido integralmente pelos coríntios, não apenas em traços isolados de sua vida e serviço, razão pela qual seu objetivo agora é apresentar resumidamente à igreja o que é o fundamento sustentador e o poder determinante de toda a sua atuação. Se apreenderem e entenderem isso, compreenderão plenamente o seu apóstolo, uma compreensão que tem de superar toda a desconfiança. O que, pois, o dirige e preenche em tudo o que faz, que pode torná-lo ora ardentemente exaltado, desmedido, extremado, ora comedido e sensato? Paulo o diz aos coríntios por meio de uma passagem que se insere entre as mais grandiosas e mais fundamentais que ele jamais escreveu (BOOR, 2004, p. 387).

Assim, ao lançar mão da expressão “nova criação” para descrever a vida cristã, Paulo não o faz meramente para ilustrar um tratado teológico ou um enunciado doutrinário. Ele o faz em meio ao calor da batalha, numa passagem ao mesmo tempo pessoal (está defendendo seu ministério e sua pessoa) e pastoral (quer fazer com que os coríntios percebam, nas verdadeiras e fundamentais motivações do Apóstolo, a essência da verdadeira vida cristã, e o propósito para o qual eles próprios, coríntios - bem como todos os cristãos hodiernos verdadeiramente dignos desse nome – devem viver: a reconciliação com Deus, por meio de Cristo, produz uma vida inteiramente nova, completamente diferente da vida anterior sem Cristo. Os coríntios ainda pensavam – pelo menos parte deles – conforme a vida anterior, cujas “coisas antigas” já haviam “passado”).


COMPARAÇÃO ENTRE VERSÕES
As seguintes versões serão comparadas: Almeida Revista e Atualizada, 2ª edição (ARA), Nova Versão Internacional (NVI), A Bíblia de Jerusalém (BJ), Almeida Século 21 (A21) e Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH).

ARA: E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas.

NVI: Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!

BJ: Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez realidade nova.

A21: Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação; as coisas velhas já passaram, e surgiram coisas novas.

NTLH: Quem está unido com Cristo é uma nova pessoa; acabou-se o que era velho, e já chegou o que é novo.


ANÁLISE DAS VERSÕES
Conforme se vê na amostragem acima, as versões em português da Bíblia não diferem entre si a ponto de mudar o sentido do texto (a ideia que o texto transmite). Alguns detalhes, no entanto, devem ser observados.
As expressões “nova criatura” e “nova criação” merecem atenção especial. Qual delas é a correta, de acordo com o texto grego? ARA e BJ preferem o termo “nova criatura”. Versões mais recentes, como NVI e A21 optaram por “nova criação”. A NTLH apresenta uma paráfrase, “nova pessoa”, bem de acordo com sua filosofia de tradução. A expressão grega é kainé ktísis – literalmente, nova criação (MOULTON, 2007, p. 220, 255). Conforme afirmam dois autores:

Embora a palavra ktisis aqui possa significar “criatura”, tem mais freqüentemente o significado de “criação”. Pode ser notado que a palavra “é” falta no gr., que não tem vb. neste lugar. C. K. Barret traduz o versículo: “Uma conseqüência adicional é que, se alguém estiver em Cristo, há um novo ato de criação: todas as coisas velhas se foram, eis que novas coisas vieram a existir” (The Second Epistle to the Corinthians, BNTC, 1973, 162). Barret liga o vers. com vv. 14-15, e encara vv. 16 e 17 como paralelo, sendo declarações negativas e positivas da mesma verdade (op. cit., 173). Considera a frase “em Cristo”, não como mística, mas sim como escatológica, “uma transferência pela fé em Cristo, que passou pela aflição messiânica e que ressuscitou dentre os mortos como primícias da ressurreição, desta era presente para a era vindoura”. Como tal, é “um novo ato de criação”, análogo com o ato criador original mediante o qual o mundo veio a existir. Ktisis, portanto, não se refere em primeira instância ao crente, mas, sim, ao ato criador de Deus. Seu significado é essencialmente o mesmo que aquele em Gl 6:15, e retoma o pensamento anterior de Paulo, do novo ato criador de Deus em Cristo, em 2 Co 4:6: “Porque Deus, que disse: ‘De trevas resplandecerá luz’ - , ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (cf. Gn 1:3) (COENEN e BROWN, 2000, p. 1404).

Russell Champlin, entretanto, apesar de concordar com a iniciativa divina do ato criativo, parece ser de outra opinião no tocante à distinção entre as expressões “nova criatura” e “nova criação”, antes, as considera como intercambiáveis.

“...nova criatura...” A verdadeira conversão e a verdadeira regeneração são encaradas aqui como uma espécie de nova criação, mediante a instrumentalidade divina, tal como a criação original precisou da intervenção divina. As traduções variam entre “nova criatura” e “nova criação”, mas isso não faz qualquer diferença real, porquanto aquele que se torna uma nova criatura deve experimentar a força do ato criativo do Espírito Santo. O termo grego “ktisis” traduzido aqui por “...criatura...” tem três usos diversos nas páginas do N.T., a saber: 1. O “ato de criar”, em Rom. 1:20; 2. a “súmula das coisas criadas”, em Apo. 3:14 e Mar. 13:19; e 3. uma “coisa ou criatura criada” em Rom. 8:39. Dentro da literatura rabínica, a expressão é usada para indicar um homem convertido da idolatria. “Aquele que traz um estrangeiro e o torna um prosélito é como se o tivesse criado” (Rabino Eliezer). Essa é igualmente a idéia aqui expressa por Paulo, embora mediante expressões místicas, indicada por “em Cristo”. (...) “O novo nascimento é referido nos trechos de Tito 3:5; João 3:3 e Tia. 1:18. ‘Ktisis’ é palavra que designa não somente um ato divino (a criação), mas também o produto de tal ato (a criatura). Este último sentido é o significado ordinário dessa palavra no N.T. (comparar com Rom. 1:25; 8:19 e ss.)”. (Kling, in loc.). (CHAMPLIN, 1995, p. 347,348).

Contudo, ainda que levando-se em conta a perspectiva de Champlin, percebe-se, pelas demais obras consultadas, que o termo correto a ser utilizado, preferentemente, deveria ser “nova criação”, no sentido de remeter mais diretamente a um ato divino, mais do que a um ato ou a uma decisão humana. A interpretação da passagem muda de sentido – a nova criação não é algo que o ser humano pode fazer de si mesmo ou em si mesmo, antes, trata-se de algo que é produzido em seu ser mediante uma ação da divindade. Trata-se de uma “criação” divina, cujo resultado, ou produto, como o próprio Champlin aponta no trecho supra citado, é a “criatura” humana (que está “em Cristo”). A origem é divina; o resultado é o novo homem em Cristo. Rey afirma que

a nova criação que se opera em Cristo vem de Deus! Este inciso não é sem importância neste contexto, percebe-se isso se lembrarmos que a Bíblia reserva exclusivamente a Deus a ação criadora: todas as coisas vem de Deus, elas têm sua fonte nele. Assim a nova criação aparece como o cumprimento e a retomada da primeira criação ou melhor: ela é a manifestação mais brilhante da atividade criadora de Deus que não cessa de fazer coisas novas na história desde suas origens. Sem que se possa aqui ir até o fundo do pensamento de Paulo, adivinha-se entretanto que ele percebe uma certa ordem entre a atividade criadora de Deus nas origens e sua manifestação última, escatológica, em Cristo. A ordem nova é diferente da antiga marcada pelo pecado, no entanto, tem o mesmo autor, é como que o acabamento de um desígnio desde há muito tempo procurado apesar das tentativas do homem pecador: o que Deus procura desde o primeiro dia realiza-se em Cristo! (REY, 2005, p. 47,48).

O mesmo autor acrescenta: “Está claro que as palavras ‘nova criatura’ designam o cristão, mas é notável que só tomem o seu sentido quando em referência ao acontecimento pascal em Cristo” (REY, 2005, p. 49). Percebe-se que a expressão “nova criação” aponta para o ato criador divino, enquanto que “nova criatura” denota o objeto daquele ato, a saber, o ser humano redimido e restaurado em Cristo. Assim sendo, dar-se-á preferência, na presente pesquisa, àquelas versões bíblicas anteriormente citadas, que traduzem a expressão kainé ktísis como “nova criação”, a saber: NVI e A21. A paráfrase da NTLH, “nova pessoa”, tampouco transmite a ideia de um ato criador externo com origem na divindade e não no próprio ser humano.


TERMOS IMPORTANTES

Em Cristo
Há algumas expressões em 2Co 5.17 que merecem uma análise um pouco mais detalhada. A primeira delas é “em Cristo”, verdadeiro termo técnico paulino, cujo significado exato tem sido objeto de intensos debates teológicos. Autores como A. Deissmann e Johannes Weiss apontaram para o sentido místico da expressão, identificando Cristo com o Espírito (2Co 3.17). Assim, estamos em Cristo como estamos no ar: ele nos envolve, nos circunda, estamos nele e ele está em nós (LADD, 2001, p. 448). Para outros, no entanto, ainda sem descuidar da interpretação mística de Deissmann (de que “em Cristo” significa estar num relacionamento místico e consciente com Cristo), notam que há várias passagens paulinas onde a ênfase é coletiva (e.g., Rm 12.5; 1Co 4.15; Gl 1.22; 3.28; Ef 3.6; Cl 1.2). Para Paulo, os crentes estão em Cristo como povo, e não somente como indivíduos (LADD, 2001, p. 449). Com isso está de acordo CERFAUX (2003, p. 157), que afirma: “A vida cristã, à qual a fé dá acesso, será ao mesmo tempo uma vida individual, pessoal, e vida numa unidade eclesial”.
No entanto, o Apóstolo é pródigo ao utilizar a expressão “em Cristo” em seus escritos. Novos significados e novas nuances sempre podem ser encontrados. “Em adição às palavras que podem ser interpretadas mística e eclesiasticamente, há numerosos enunciados que contém fatos objetivos que declaram o que Deus fez em Cristo” (LADD, 2001, p. 449). Deus nos escolheu em Cristo (Ef 1.4), nos predestinou (Ef 1.7), nos redimiu (Rm 3.24), nos santificou (1Co 1.2), nos justificou (Gl 2.17), nos perdoou (Ef 4.32). O mundo é reconciliado em Cristo (2Co 5.19), a verdade é dita em Cristo (Rm 9.1), podemos nos gloriar em Cristo (Rm 15.17), toda a vida cristã é conduzida em Cristo (1Co 4.17), os crentes morrem em Cristo (1Ts 4.16). Quando Paulo fica preso, é uma prisão “em Cristo” (Fp 1.13). Há também aspectos escatológicos a serem considerados, pois a formulação paulina “em Cristo” também é utilizada em contraste a outra expressão, “em Adão” (e.g., 1Co 15.22). “Aqueles que estão em Adão pertencem ao velho aeon, que é a escravidão ao pecado e à morte; aqueles que são de Cristo pertencem ao novo aeon, com sua liberdade e vida. (...) Estar em Cristo significa experimentar a novidade do novo aeon” (LADD, 2001, p. 450).
Ladd não ignora a dificuldade dessa interpretação, no tocante à condição de vida atual dos cristãos, e acrescenta:

No campo da fé, se não nos da natureza e da sociedade, o velho já passou e o novo chegou (II Cor. 5.17). Por um lado, até mesmo os crentes estão ainda em Adão, pois eles morrem; estão ainda no velho aeon, pois vivem num mundo de pecado e compartilham da queda da criação. Mas redentivamente, heilsgeschichtlich, eles entraram em uma nova existência em Cristo – na vida do novo aeon (LADD, 2001, p. 450).

Para autores mais recentes, como Günther Bornkamm, de fato a expressão paulina “em Cristo” pouco ou nada tem a ver com a interpretação “mística” de Deissmann e outros:

Nesse sentido, designa o modo de falar, de pensar, de agir, de sofrer e também de se conduzir em relação ao próximo, que corresponde ao fato de ser cristão. Não raramente, indica simplesmente a pertença à Igreja. Nestes casos, não é obviamente correto forçar o texto para dele extrair algum significado teológico profundo ou até mesmo “místico”. Muitas vezes, porém, a expressão sintetiza aquilo que, por meio de Cristo, ocorreu aos fiéis e sobre o que se funda a salvação (BORNKAMM, 2009, p. 249).

O mesmo autor prossegue, concluindo:

Deste modo, a locução “em Cristo” pode expressar plenamente a realidade nova, basilar e global, na qual estão colocados os fiéis, após terem sido subtraídos à esfera da influência da corrupção.
Mas vice-versa, Paulo pode falar também do fato que Cristo ou o seu Espírito “habita” nos fiéis (Rm 8.9s.) e chega a dizer: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2.20a). Isto não ocorre através de um rapto ou êxtase nas esferas celestiais, mas se verifica na existência terrena do fiel: “Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2.20b). Estas e outras locuções similares têm bem pouco em comum com a mística, a despeito da semelhança na linguagem. Pois, à essência da mística pertence o confundir-se dos confins entre Deus e o ser humano, do fundir-se de um outro. Contudo, em Paulo, permanece nítida e clara a diferença qualitativa entre ambos: Cristo é sempre o Senhor, o fiel que lhe pertence (Rm 8.7; 14.7s e passim), enquanto a união libertadora com ele ocorre no ser a seu serviço (Rm 6.15s.) (BORNKMANN, 2009, p. 250).

Assim, levando-se em conta a natureza diversificada da expressão “em Cristo” utilizada por Paulo, com seu múltiplo significado, percebe-se que a mesma indica uma mudança em todos os aspectos da vida – mas da vida, acima de tudo, em sua esfera prática. Juntamente com Ladd e Bornkmann, portanto, esse aspecto puramente “místico” do termo “em Cristo” será deixado de lado, optando-se por uma interpretação mais abrangente, que também leva em conta os aspectos práticos da vida cristã e a situação do cristão como tal. Tudo o que o cristão faz, pensa, sente, é “em Cristo”. Poderíamos parafrasear o próprio Apóstolo, dizendo: Em Cristo, “vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). Estar “em Cristo” é também fazer parte de uma nova ordem, um novo tempo, uma nova era cujas primícias o cristão já começa a experimentar mesmo agora, na velha era que está passando. Por isso ele pode agir de modo inteiramente diverso do modo como agia antes, porque agora age, opera, atua “em Cristo”. O cristão pode experimentar, em Cristo, uma nova práxis em sua vida.

Nova criação
Nova criação é o outro termo-chave de 2Co 5.17. O que o Apóstolo está dizendo aqui? Discorrendo sobre a vida cristã como participação na vida do Cristo ressuscitado, Lucien Cerfaux escreve que

pode-se defini-la como uma criação, novidade absoluta. Tudo é renovado no Espírito depois da ressurreição do Cristo. O Cristo segundo a carne, naquele instante, se tornou o Cristo segundo o Espírito, e daí em diante, participamos dum imenso movimento de renovação: “Todo aquele que está em Cristo, é uma nova criatura” (2Co 5.17). Estar em Cristo, aqui, significa ser cristão em toda a força do termo; é receber, da nova situação em que nos coloca nosso ato de fé, uma transformação interior, uma renovação que nos cria de novo. Recordemos Rm 8.10: “Se o Cristo está em vós, o corpo está morto pelo pecado, mas o Espírito está vivo por causa da justiça”. Este contexto mostra bem como se deve entender a criação nova. Esta nova vida, do Espírito, é ao mesmo tempo nossa, e presença do Espírito em nós. A Epístola aos gálatas repete, como se fosse habitual em Paulo, a expressão “nova criação” (Gl 6.15) (...) Há, em toda criação, uma intervenção do Filho de Deus e, para os cristãos, uma predileção divina que os destinou a trazer uma semelhança duma outra ordem, que lhes permite o acesso à vida divina (CERFAUX, 2003, p. 355-356).

Com isso concorda LADD (2001, p. 454): “O homem renovado não está apenas em Cristo e no Espírito; tanto Cristo como o Espírito habitam nele”. Bernard Rey observa um eco do profeta Isaías em Paulo, e faz notar, mais uma vez, que o tom da declaração paulina não é somente místico ou mesmo individual: o Apóstolo está falando de um acontecimento objetivo, de um ato divino concretizado em todo aquele que está “em Cristo”.

Para proclamar o acontecimento de um mundo novo em Cristo, Paulo retoma os termos do profeta anunciando a libertação do povo cativo na Babilônia: “Não vos lembreis mais de outrora, não penseis mais nas coisas antigas. Eis que vou fazer coisas novas que já aparecem, não as percebeis?” (Is 43.18-19). A abolição das maldições e do pecado (Is 65.19-25) e a nova criação entrevistas pelo profeta (Is 65.17-18), Paulo as vê realizadas em Cristo. Este recurso ao Livro de Isaías dá ao texto de Paulo um alcance universal: o cristão não é apenas uma nova criatura a título individual, poderíamos dizer, em conseqüência de uma conduta que manifesta a vida do Espírito recebida de Cristo. Há mais: essa mudança de ordem moral enraíza-se numa mutação mais profunda que diz respeito não apenas a tal ou tal indivíduo, mas ao mundo dos homens tomados em seu conjunto: “Em Cristo, Deus se reconciliava com o mundo” (2Co 5.19). Essas amplas perspectivas permitem compreender a reflexão de Paulo no versículo 18: “Todas estas realidades vem de Deus!”; a nova criação que se opera em Cristo vem de Deus! Este inciso não é sem importância neste contexto; percebe-se isso se lembrarmos que a Bíblia reserva exclusivamente a Deus a ação criadora: todas as coisas vem de Deus, elas têm sua fonte nele. Assim a nova criação aparece como o cumprimento e a retomada da primeira criação ou melhor: ela é a manifestação mais brilhante da atividade criadora de Deus que não cessa de fazer coisas novas na história desde suas origens. Sem que se possa aqui ir até o fundo do pensamento de Paulo, adivinha-se entretanto que ele percebe uma certa ordem entre a atividade criadora de Deus nas origens e sua manifestação última, escatológica em Cristo. A ordem nova é diferente da antiga marcada pelo pecado, no entanto, tem o mesmo autor, é como que o acabamento de um desígnio há muito tempo procurado apesar das tentativas do homem pecador: o que Deus procura desde o primeiro dia realiza-se em Cristo! (REY, 2005, p. 45-48).

Importantíssimas as observações de Rey. De fato, todo ato criador é, biblicamente falando, um ato divino. Uma “nova criação”, portanto, assim como uma criação anterior, somente pode ser levada a cabo por meio de uma intervenção divina, um ato livre e soberano da graça de Deus. É, portanto, um ato concreto, externo ao indivíduo, um tipo de ação impossível de ser levada a efeito pelo esforço humano. O aspecto escatológico da expressão paulina “nova criação” é mais uma vez percebido. Ela é explicada por George Eldon Ladd nos seguintes termos:

A afirmação paulina, de que, em Cristo, o que é velho já passou e tudo se fez novo é um enunciado escatológico (...) Isto deve ser entendido dentro da perspectiva escatológica total de Paulo. A “nova criação” obviamente não se refere a uma renovação do mundo físico; esta nova criação aguarda a consumação escatológica (Rom. 8:21). O enunciado deve ser definido em termos do que Paulo vê de novo em Cristo. A passagem do velho não significa o fim da era antiga; ele continua até a parousia. Mas o século antigo não permanece intacto; a nova era já o invadiu (LADD, 2001, p. 448).

Portanto, esta não é uma “nova criação” em termos absolutos – pelo menos, não no tocante a esta vida. O cristão vive na tensão entre dois mundos, entre duas eras, entre duas ordens de existência.


CONCLUSÕES
O Apóstolo Paulo utiliza a expressão “nova criação” para explicar o motivo pelo qual todo cristão, necessariamente, é um ministro da reconciliação. Mais do que isso, a referida expressão envolve o entendimento paulino a respeito da mudança radical que ocorre na vida de todo aquele que entrega o senhorio de sua vida a Jesus Cristo:

A NOVA VIDA EM CRISTO está resumida no clássico enunciado de Paulo: “Pelo que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo” (II Cor. 5.17). Este versículo é popularmente interpretado em termos de uma experiência subjetiva. Todos os desejos e apetites deste homem não-regenerado passaram e foram substituídas por um conjunto de desejos e apetites inteiramente novo. Contudo, este enunciado tem que ser interpretado no contexto do pensamento paulino em particular e no pensamento do Novo Testamento em geral (LADD, 2001, p. 447).

O Novo Testamento jamais apresenta o Cristianismo como uma formulação meramente teórica ou abstrata. Antes, quem está em Cristo é nova criação. No mesmo contexto Paulo deixa claro que o cristão deve viver para Cristo (2Co 5.15) e não considerar mais coisa alguma do ponto de vista simplesmente humano (v. 16). A iniciativa e o poder transformador de Deus estão em vista aqui; porém a conduta humana posterior é o grande indicador para saber se realmente houve ou não uma “nova criação”. Na Introdução foi mencionada a importância desta passagem para a igreja contemporânea. Tendo em vista o estado atual da igreja no Brasil, com os muitos escândalos, as falsas doutrinas e o apego exagerado a teorias de prosperidade, bem como o amor desavergonhado às riquezas e demais futilidades, certamente o conceito do cristão como uma nova criação deve ser resgatado. Paulo Romeiro observa:

A Igreja brasileira convive há tempos com práticas antiéticas (...). O envolvimento de muitos evangélicos na política brasileira tem trazido mais prejuízos do que benefícios para a imagem da Igreja. Isso tem gerado um clima de suspeita na sociedade em relação aos chamados “crentes”. Não são todos os brasileiros hoje que estão dispostos a confiar em alguém só porque carrega uma Bíblia ou diz ser evangélico (ROMEIRO, 1997, p. 11).

Longe de ser uma discussão técnica ou teórica, ou tão-somente um debate teológico restrito ao mundo acadêmico, a questão levantada pelo Apóstolo Paulo em 2Co 5.17 demonstra uma certa urgência para a igreja – e não somente para a igreja brasileira – na atualidade. Uma urgência ética, prática, no sentido de mostrar à sociedade (e a boa parcela dos “evangélicos”) como um verdadeiro cristão vive e se conduz. Nas palavras de Martyn Lloyd-Jones: “O mundo atual está aguardando o aparecimento de crentes autênticos, e deles precisa desesperadamente” (LLOYD-JONES, 1999, p. 17).


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