domingo, 13 de junho de 2010

NOVA CRIAÇÃO (Resumo de uma Exegese)


INTRODUÇÃO

A expressão “nova criação” aparece somente duas vezes nas epístolas paulinas, a saber, em Gl 6.15 e 2Co 5.17, ambas inseridas em contextos nos quais, num primeiro olhar, poderia parecer superficial e não muito relevante – em Gálatas no epílogo da epístola; em 2 Coríntios quase de passagem, em meio a uma digressão sobre o “ministério da reconciliação” (REY, 2005, p. 20). Porém, nos dois casos a expressão é, inquestionavelmente, de grande importância. Em Gálatas ela torna-se o fecho e o resumo de tudo quanto o Apóstolo argumentou naquela epístola, a respeito da nova vida em Cristo, que, pela Sua graça, nos liberta da escravidão ao pecado e à Lei; em 2 Coríntios a expressão surge no meio de uma reflexão paulina a respeito da imensa responsabilidade que pesa nos ombros de todo cristão, a saber, a responsabilidade de ser um reconciliador entre Deus e os homens. Para os propósitos desta pesquisa foi selecionada justamente essa última passagem, por entender que a mesma é de extrema relevância para o cristão e a Igreja hodiernos.

DELIMITAÇÃO DO TEXTO
Paulo escreve aos coríntios a fim de defender seu apostolado (sua autoridade) e seu caráter (sua integridade). Ataques pessoais contra o Apóstolo partiam de grupos dentro da igreja (KRUSE, 1994, p. 45). Depois da proclamação paulina que deu origem àquela igreja, e da saída do Apóstolo da cidade, chegaram outros pregadores itinerantes. Seu ensino dividiu a igreja em diversos grupos e instalou certa confusão doutrinária e moral, exaltando os ânimos até mesmo contra Paulo (FABRIS, 2001, p. 380). Esse conflito gerou certa correspondência epistolar entre o Apóstolo e a igreja, da qual chegaram até a atualidade somente as epístolas canônicas 1 e 2 Coríntios (sendo que é possível que esta última seja a junção de duas ou mais epístolas). Em 1 Coríntios Paulo responde a questões específicas quanto à vida eclesial. Já em 2 Coríntios, com exceção do trecho a respeito da coleta para Jerusalém, observa-se um único tema a conduzir todo a argumentação paulina, a saber, a genuinidade da autoridade apostólica de Paulo (BOOR, 2004, p. 293). Imediatamente após a saudação inicial (2Co 1.1,2), o Apóstolo passa a explicar o motivo de sua mudança de planos no tocante à ordem, número e datas das visitas que faria à igreja (2Co 1.3 – 2.11; cf. BOOR, 2004, p. 319-320). Ao enviar Tito em seu lugar, com a chamada “epístola das lágrimas” (2Co 2.4), ele havia gerado ainda mais desconfiança sobre sua pessoa, entre os membros da igreja de Corinto. Paulo se defende apelando para a própria existência da igreja – os mesmos coríntios, que reclamam de Paulo, são a “carta de recomendação” do Apóstolo, visto que foram gerados em Cristo mediante seu ministério, o qual, na verdade, é muito mais glorioso do que foi o do próprio Moisés (isso certamente deve ter chocado muitos coríntios judeus e prosélitos, oriundos da sinagoga), visto que é o “ministério do Espírito” (2Co 2.12 – 3.18). Ele reconhece que não passa de um “vaso de barro”, porém, esse vaso contém um “tesouro”, pelo qual vale a pena viver e morrer, e Paulo está certo de que sua confiança em Cristo jamais será abalada, nem mesmo na morte, quando comparecerá perante o tribunal de Cristo (2Co 4.1 – 5.10).
A perícope seguinte é a que interessa à presente pesquisa. Paulo irá argumentar que, conhecendo o temor do Senhor, visto que um dia se apresentará diante do tribunal de Cristo, vive e age do modo que o amor de Cristo o constrange a viver e agir. Não age por motivos escusos nem dirige seu ministério para proveito próprio. Não, agora Paulo não vive para Paulo, mas para Cristo. Nem considera a ninguém (nem o próprio Cristo) do ponto de vista humano ou carnal. Paulo tem uma outra visão da vida, do mundo, de Cristo, uma nova visão. Uma nova visão que norteia e modela sua missão. De onde veio essa nova visão? Do fato objetivo, sobrenatural, de ser uma nova criação em Cristo. Devido a isso, todo o passado de Paulo (e com ele quaisquer intenções ocultas que ele poderia ter) ficou para trás. Tudo é novo em Cristo, para quem Paulo vive e respira, e de quem recebeu o ministério da reconciliação, que o faz cooperador de Deus para proclamar a salvação. Não somente ele, mas todo crente é uma nova criação, recebeu a mesma nova vida, o mesmo ministério e a mesma responsabilidade de Paulo (2Co 5.11 – 6.2).
Assim, estudar-se-á a expressão “nova criação” especificamente em 2Co 5.17, porém não descuidando seu contexto imediato, na perícope que começa em 5.11 e termina em 6.2, conforme exposto acima.

CONTEXTO
A passagem de interesse para este estudo encontra-se em meio à discussão paulina a respeito do “ministério da reconciliação”, no trecho situado entre 5.11 e 6.2 (HALE, 2001, p. 243). Certo autor observa:

Nesta seção central de sua carta, Paulo apela aos coríntios a que se reconciliem com Deus e abram seus corações ao apóstolo. Ele prepara caminho para esses apelos, primeiro ao responder às críticas quanto ao estilo de seu ministério (5:11-15), e, a seguir, ao enunciar as bases teológicas sobre que repousa a reconciliação (5:16-21). A seguir, Paulo apresenta apelos (6:1-13; 7:2-4), e vai semeando aqui e ali exortações quanto à santidade de vida (6:14 – 7:1). (KRUSE, 1994, p. 126,127).

Em meio à controvérsia sobre a verdadeira natureza de seu apostolado e a validade de seus ensinamentos em Corinto,

Paulo visa ser compreendido integralmente pelos coríntios, não apenas em traços isolados de sua vida e serviço, razão pela qual seu objetivo agora é apresentar resumidamente à igreja o que é o fundamento sustentador e o poder determinante de toda a sua atuação. Se apreenderem e entenderem isso, compreenderão plenamente o seu apóstolo, uma compreensão que tem de superar toda a desconfiança. O que, pois, o dirige e preenche em tudo o que faz, que pode torná-lo ora ardentemente exaltado, desmedido, extremado, ora comedido e sensato? Paulo o diz aos coríntios por meio de uma passagem que se insere entre as mais grandiosas e mais fundamentais que ele jamais escreveu (BOOR, 2004, p. 387).

Assim, ao lançar mão da expressão “nova criação” para descrever a vida cristã, Paulo não o faz meramente para ilustrar um tratado teológico ou um enunciado doutrinário. Ele o faz em meio ao calor da batalha, numa passagem ao mesmo tempo pessoal (está defendendo seu ministério e sua pessoa) e pastoral (quer fazer com que os coríntios percebam, nas verdadeiras e fundamentais motivações do Apóstolo, a essência da verdadeira vida cristã, e o propósito para o qual eles próprios, coríntios - bem como todos os cristãos hodiernos verdadeiramente dignos desse nome – devem viver: a reconciliação com Deus, por meio de Cristo, produz uma vida inteiramente nova, completamente diferente da vida anterior sem Cristo. Os coríntios ainda pensavam – pelo menos parte deles – conforme a vida anterior, cujas “coisas antigas” já haviam “passado”).


COMPARAÇÃO ENTRE VERSÕES
As seguintes versões serão comparadas: Almeida Revista e Atualizada, 2ª edição (ARA), Nova Versão Internacional (NVI), A Bíblia de Jerusalém (BJ), Almeida Século 21 (A21) e Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH).

ARA: E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas.

NVI: Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!

BJ: Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez realidade nova.

A21: Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação; as coisas velhas já passaram, e surgiram coisas novas.

NTLH: Quem está unido com Cristo é uma nova pessoa; acabou-se o que era velho, e já chegou o que é novo.


ANÁLISE DAS VERSÕES
Conforme se vê na amostragem acima, as versões em português da Bíblia não diferem entre si a ponto de mudar o sentido do texto (a ideia que o texto transmite). Alguns detalhes, no entanto, devem ser observados.
As expressões “nova criatura” e “nova criação” merecem atenção especial. Qual delas é a correta, de acordo com o texto grego? ARA e BJ preferem o termo “nova criatura”. Versões mais recentes, como NVI e A21 optaram por “nova criação”. A NTLH apresenta uma paráfrase, “nova pessoa”, bem de acordo com sua filosofia de tradução. A expressão grega é kainé ktísis – literalmente, nova criação (MOULTON, 2007, p. 220, 255). Conforme afirmam dois autores:

Embora a palavra ktisis aqui possa significar “criatura”, tem mais freqüentemente o significado de “criação”. Pode ser notado que a palavra “é” falta no gr., que não tem vb. neste lugar. C. K. Barret traduz o versículo: “Uma conseqüência adicional é que, se alguém estiver em Cristo, há um novo ato de criação: todas as coisas velhas se foram, eis que novas coisas vieram a existir” (The Second Epistle to the Corinthians, BNTC, 1973, 162). Barret liga o vers. com vv. 14-15, e encara vv. 16 e 17 como paralelo, sendo declarações negativas e positivas da mesma verdade (op. cit., 173). Considera a frase “em Cristo”, não como mística, mas sim como escatológica, “uma transferência pela fé em Cristo, que passou pela aflição messiânica e que ressuscitou dentre os mortos como primícias da ressurreição, desta era presente para a era vindoura”. Como tal, é “um novo ato de criação”, análogo com o ato criador original mediante o qual o mundo veio a existir. Ktisis, portanto, não se refere em primeira instância ao crente, mas, sim, ao ato criador de Deus. Seu significado é essencialmente o mesmo que aquele em Gl 6:15, e retoma o pensamento anterior de Paulo, do novo ato criador de Deus em Cristo, em 2 Co 4:6: “Porque Deus, que disse: ‘De trevas resplandecerá luz’ - , ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (cf. Gn 1:3) (COENEN e BROWN, 2000, p. 1404).

Russell Champlin, entretanto, apesar de concordar com a iniciativa divina do ato criativo, parece ser de outra opinião no tocante à distinção entre as expressões “nova criatura” e “nova criação”, antes, as considera como intercambiáveis.

“...nova criatura...” A verdadeira conversão e a verdadeira regeneração são encaradas aqui como uma espécie de nova criação, mediante a instrumentalidade divina, tal como a criação original precisou da intervenção divina. As traduções variam entre “nova criatura” e “nova criação”, mas isso não faz qualquer diferença real, porquanto aquele que se torna uma nova criatura deve experimentar a força do ato criativo do Espírito Santo. O termo grego “ktisis” traduzido aqui por “...criatura...” tem três usos diversos nas páginas do N.T., a saber: 1. O “ato de criar”, em Rom. 1:20; 2. a “súmula das coisas criadas”, em Apo. 3:14 e Mar. 13:19; e 3. uma “coisa ou criatura criada” em Rom. 8:39. Dentro da literatura rabínica, a expressão é usada para indicar um homem convertido da idolatria. “Aquele que traz um estrangeiro e o torna um prosélito é como se o tivesse criado” (Rabino Eliezer). Essa é igualmente a idéia aqui expressa por Paulo, embora mediante expressões místicas, indicada por “em Cristo”. (...) “O novo nascimento é referido nos trechos de Tito 3:5; João 3:3 e Tia. 1:18. ‘Ktisis’ é palavra que designa não somente um ato divino (a criação), mas também o produto de tal ato (a criatura). Este último sentido é o significado ordinário dessa palavra no N.T. (comparar com Rom. 1:25; 8:19 e ss.)”. (Kling, in loc.). (CHAMPLIN, 1995, p. 347,348).

Contudo, ainda que levando-se em conta a perspectiva de Champlin, percebe-se, pelas demais obras consultadas, que o termo correto a ser utilizado, preferentemente, deveria ser “nova criação”, no sentido de remeter mais diretamente a um ato divino, mais do que a um ato ou a uma decisão humana. A interpretação da passagem muda de sentido – a nova criação não é algo que o ser humano pode fazer de si mesmo ou em si mesmo, antes, trata-se de algo que é produzido em seu ser mediante uma ação da divindade. Trata-se de uma “criação” divina, cujo resultado, ou produto, como o próprio Champlin aponta no trecho supra citado, é a “criatura” humana (que está “em Cristo”). A origem é divina; o resultado é o novo homem em Cristo. Rey afirma que

a nova criação que se opera em Cristo vem de Deus! Este inciso não é sem importância neste contexto, percebe-se isso se lembrarmos que a Bíblia reserva exclusivamente a Deus a ação criadora: todas as coisas vem de Deus, elas têm sua fonte nele. Assim a nova criação aparece como o cumprimento e a retomada da primeira criação ou melhor: ela é a manifestação mais brilhante da atividade criadora de Deus que não cessa de fazer coisas novas na história desde suas origens. Sem que se possa aqui ir até o fundo do pensamento de Paulo, adivinha-se entretanto que ele percebe uma certa ordem entre a atividade criadora de Deus nas origens e sua manifestação última, escatológica, em Cristo. A ordem nova é diferente da antiga marcada pelo pecado, no entanto, tem o mesmo autor, é como que o acabamento de um desígnio desde há muito tempo procurado apesar das tentativas do homem pecador: o que Deus procura desde o primeiro dia realiza-se em Cristo! (REY, 2005, p. 47,48).

O mesmo autor acrescenta: “Está claro que as palavras ‘nova criatura’ designam o cristão, mas é notável que só tomem o seu sentido quando em referência ao acontecimento pascal em Cristo” (REY, 2005, p. 49). Percebe-se que a expressão “nova criação” aponta para o ato criador divino, enquanto que “nova criatura” denota o objeto daquele ato, a saber, o ser humano redimido e restaurado em Cristo. Assim sendo, dar-se-á preferência, na presente pesquisa, àquelas versões bíblicas anteriormente citadas, que traduzem a expressão kainé ktísis como “nova criação”, a saber: NVI e A21. A paráfrase da NTLH, “nova pessoa”, tampouco transmite a ideia de um ato criador externo com origem na divindade e não no próprio ser humano.


TERMOS IMPORTANTES

Em Cristo
Há algumas expressões em 2Co 5.17 que merecem uma análise um pouco mais detalhada. A primeira delas é “em Cristo”, verdadeiro termo técnico paulino, cujo significado exato tem sido objeto de intensos debates teológicos. Autores como A. Deissmann e Johannes Weiss apontaram para o sentido místico da expressão, identificando Cristo com o Espírito (2Co 3.17). Assim, estamos em Cristo como estamos no ar: ele nos envolve, nos circunda, estamos nele e ele está em nós (LADD, 2001, p. 448). Para outros, no entanto, ainda sem descuidar da interpretação mística de Deissmann (de que “em Cristo” significa estar num relacionamento místico e consciente com Cristo), notam que há várias passagens paulinas onde a ênfase é coletiva (e.g., Rm 12.5; 1Co 4.15; Gl 1.22; 3.28; Ef 3.6; Cl 1.2). Para Paulo, os crentes estão em Cristo como povo, e não somente como indivíduos (LADD, 2001, p. 449). Com isso está de acordo CERFAUX (2003, p. 157), que afirma: “A vida cristã, à qual a fé dá acesso, será ao mesmo tempo uma vida individual, pessoal, e vida numa unidade eclesial”.
No entanto, o Apóstolo é pródigo ao utilizar a expressão “em Cristo” em seus escritos. Novos significados e novas nuances sempre podem ser encontrados. “Em adição às palavras que podem ser interpretadas mística e eclesiasticamente, há numerosos enunciados que contém fatos objetivos que declaram o que Deus fez em Cristo” (LADD, 2001, p. 449). Deus nos escolheu em Cristo (Ef 1.4), nos predestinou (Ef 1.7), nos redimiu (Rm 3.24), nos santificou (1Co 1.2), nos justificou (Gl 2.17), nos perdoou (Ef 4.32). O mundo é reconciliado em Cristo (2Co 5.19), a verdade é dita em Cristo (Rm 9.1), podemos nos gloriar em Cristo (Rm 15.17), toda a vida cristã é conduzida em Cristo (1Co 4.17), os crentes morrem em Cristo (1Ts 4.16). Quando Paulo fica preso, é uma prisão “em Cristo” (Fp 1.13). Há também aspectos escatológicos a serem considerados, pois a formulação paulina “em Cristo” também é utilizada em contraste a outra expressão, “em Adão” (e.g., 1Co 15.22). “Aqueles que estão em Adão pertencem ao velho aeon, que é a escravidão ao pecado e à morte; aqueles que são de Cristo pertencem ao novo aeon, com sua liberdade e vida. (...) Estar em Cristo significa experimentar a novidade do novo aeon” (LADD, 2001, p. 450).
Ladd não ignora a dificuldade dessa interpretação, no tocante à condição de vida atual dos cristãos, e acrescenta:

No campo da fé, se não nos da natureza e da sociedade, o velho já passou e o novo chegou (II Cor. 5.17). Por um lado, até mesmo os crentes estão ainda em Adão, pois eles morrem; estão ainda no velho aeon, pois vivem num mundo de pecado e compartilham da queda da criação. Mas redentivamente, heilsgeschichtlich, eles entraram em uma nova existência em Cristo – na vida do novo aeon (LADD, 2001, p. 450).

Para autores mais recentes, como Günther Bornkamm, de fato a expressão paulina “em Cristo” pouco ou nada tem a ver com a interpretação “mística” de Deissmann e outros:

Nesse sentido, designa o modo de falar, de pensar, de agir, de sofrer e também de se conduzir em relação ao próximo, que corresponde ao fato de ser cristão. Não raramente, indica simplesmente a pertença à Igreja. Nestes casos, não é obviamente correto forçar o texto para dele extrair algum significado teológico profundo ou até mesmo “místico”. Muitas vezes, porém, a expressão sintetiza aquilo que, por meio de Cristo, ocorreu aos fiéis e sobre o que se funda a salvação (BORNKAMM, 2009, p. 249).

O mesmo autor prossegue, concluindo:

Deste modo, a locução “em Cristo” pode expressar plenamente a realidade nova, basilar e global, na qual estão colocados os fiéis, após terem sido subtraídos à esfera da influência da corrupção.
Mas vice-versa, Paulo pode falar também do fato que Cristo ou o seu Espírito “habita” nos fiéis (Rm 8.9s.) e chega a dizer: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2.20a). Isto não ocorre através de um rapto ou êxtase nas esferas celestiais, mas se verifica na existência terrena do fiel: “Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2.20b). Estas e outras locuções similares têm bem pouco em comum com a mística, a despeito da semelhança na linguagem. Pois, à essência da mística pertence o confundir-se dos confins entre Deus e o ser humano, do fundir-se de um outro. Contudo, em Paulo, permanece nítida e clara a diferença qualitativa entre ambos: Cristo é sempre o Senhor, o fiel que lhe pertence (Rm 8.7; 14.7s e passim), enquanto a união libertadora com ele ocorre no ser a seu serviço (Rm 6.15s.) (BORNKMANN, 2009, p. 250).

Assim, levando-se em conta a natureza diversificada da expressão “em Cristo” utilizada por Paulo, com seu múltiplo significado, percebe-se que a mesma indica uma mudança em todos os aspectos da vida – mas da vida, acima de tudo, em sua esfera prática. Juntamente com Ladd e Bornkmann, portanto, esse aspecto puramente “místico” do termo “em Cristo” será deixado de lado, optando-se por uma interpretação mais abrangente, que também leva em conta os aspectos práticos da vida cristã e a situação do cristão como tal. Tudo o que o cristão faz, pensa, sente, é “em Cristo”. Poderíamos parafrasear o próprio Apóstolo, dizendo: Em Cristo, “vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). Estar “em Cristo” é também fazer parte de uma nova ordem, um novo tempo, uma nova era cujas primícias o cristão já começa a experimentar mesmo agora, na velha era que está passando. Por isso ele pode agir de modo inteiramente diverso do modo como agia antes, porque agora age, opera, atua “em Cristo”. O cristão pode experimentar, em Cristo, uma nova práxis em sua vida.

Nova criação
Nova criação é o outro termo-chave de 2Co 5.17. O que o Apóstolo está dizendo aqui? Discorrendo sobre a vida cristã como participação na vida do Cristo ressuscitado, Lucien Cerfaux escreve que

pode-se defini-la como uma criação, novidade absoluta. Tudo é renovado no Espírito depois da ressurreição do Cristo. O Cristo segundo a carne, naquele instante, se tornou o Cristo segundo o Espírito, e daí em diante, participamos dum imenso movimento de renovação: “Todo aquele que está em Cristo, é uma nova criatura” (2Co 5.17). Estar em Cristo, aqui, significa ser cristão em toda a força do termo; é receber, da nova situação em que nos coloca nosso ato de fé, uma transformação interior, uma renovação que nos cria de novo. Recordemos Rm 8.10: “Se o Cristo está em vós, o corpo está morto pelo pecado, mas o Espírito está vivo por causa da justiça”. Este contexto mostra bem como se deve entender a criação nova. Esta nova vida, do Espírito, é ao mesmo tempo nossa, e presença do Espírito em nós. A Epístola aos gálatas repete, como se fosse habitual em Paulo, a expressão “nova criação” (Gl 6.15) (...) Há, em toda criação, uma intervenção do Filho de Deus e, para os cristãos, uma predileção divina que os destinou a trazer uma semelhança duma outra ordem, que lhes permite o acesso à vida divina (CERFAUX, 2003, p. 355-356).

Com isso concorda LADD (2001, p. 454): “O homem renovado não está apenas em Cristo e no Espírito; tanto Cristo como o Espírito habitam nele”. Bernard Rey observa um eco do profeta Isaías em Paulo, e faz notar, mais uma vez, que o tom da declaração paulina não é somente místico ou mesmo individual: o Apóstolo está falando de um acontecimento objetivo, de um ato divino concretizado em todo aquele que está “em Cristo”.

Para proclamar o acontecimento de um mundo novo em Cristo, Paulo retoma os termos do profeta anunciando a libertação do povo cativo na Babilônia: “Não vos lembreis mais de outrora, não penseis mais nas coisas antigas. Eis que vou fazer coisas novas que já aparecem, não as percebeis?” (Is 43.18-19). A abolição das maldições e do pecado (Is 65.19-25) e a nova criação entrevistas pelo profeta (Is 65.17-18), Paulo as vê realizadas em Cristo. Este recurso ao Livro de Isaías dá ao texto de Paulo um alcance universal: o cristão não é apenas uma nova criatura a título individual, poderíamos dizer, em conseqüência de uma conduta que manifesta a vida do Espírito recebida de Cristo. Há mais: essa mudança de ordem moral enraíza-se numa mutação mais profunda que diz respeito não apenas a tal ou tal indivíduo, mas ao mundo dos homens tomados em seu conjunto: “Em Cristo, Deus se reconciliava com o mundo” (2Co 5.19). Essas amplas perspectivas permitem compreender a reflexão de Paulo no versículo 18: “Todas estas realidades vem de Deus!”; a nova criação que se opera em Cristo vem de Deus! Este inciso não é sem importância neste contexto; percebe-se isso se lembrarmos que a Bíblia reserva exclusivamente a Deus a ação criadora: todas as coisas vem de Deus, elas têm sua fonte nele. Assim a nova criação aparece como o cumprimento e a retomada da primeira criação ou melhor: ela é a manifestação mais brilhante da atividade criadora de Deus que não cessa de fazer coisas novas na história desde suas origens. Sem que se possa aqui ir até o fundo do pensamento de Paulo, adivinha-se entretanto que ele percebe uma certa ordem entre a atividade criadora de Deus nas origens e sua manifestação última, escatológica em Cristo. A ordem nova é diferente da antiga marcada pelo pecado, no entanto, tem o mesmo autor, é como que o acabamento de um desígnio há muito tempo procurado apesar das tentativas do homem pecador: o que Deus procura desde o primeiro dia realiza-se em Cristo! (REY, 2005, p. 45-48).

Importantíssimas as observações de Rey. De fato, todo ato criador é, biblicamente falando, um ato divino. Uma “nova criação”, portanto, assim como uma criação anterior, somente pode ser levada a cabo por meio de uma intervenção divina, um ato livre e soberano da graça de Deus. É, portanto, um ato concreto, externo ao indivíduo, um tipo de ação impossível de ser levada a efeito pelo esforço humano. O aspecto escatológico da expressão paulina “nova criação” é mais uma vez percebido. Ela é explicada por George Eldon Ladd nos seguintes termos:

A afirmação paulina, de que, em Cristo, o que é velho já passou e tudo se fez novo é um enunciado escatológico (...) Isto deve ser entendido dentro da perspectiva escatológica total de Paulo. A “nova criação” obviamente não se refere a uma renovação do mundo físico; esta nova criação aguarda a consumação escatológica (Rom. 8:21). O enunciado deve ser definido em termos do que Paulo vê de novo em Cristo. A passagem do velho não significa o fim da era antiga; ele continua até a parousia. Mas o século antigo não permanece intacto; a nova era já o invadiu (LADD, 2001, p. 448).

Portanto, esta não é uma “nova criação” em termos absolutos – pelo menos, não no tocante a esta vida. O cristão vive na tensão entre dois mundos, entre duas eras, entre duas ordens de existência.


CONCLUSÕES
O Apóstolo Paulo utiliza a expressão “nova criação” para explicar o motivo pelo qual todo cristão, necessariamente, é um ministro da reconciliação. Mais do que isso, a referida expressão envolve o entendimento paulino a respeito da mudança radical que ocorre na vida de todo aquele que entrega o senhorio de sua vida a Jesus Cristo:

A NOVA VIDA EM CRISTO está resumida no clássico enunciado de Paulo: “Pelo que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo” (II Cor. 5.17). Este versículo é popularmente interpretado em termos de uma experiência subjetiva. Todos os desejos e apetites deste homem não-regenerado passaram e foram substituídas por um conjunto de desejos e apetites inteiramente novo. Contudo, este enunciado tem que ser interpretado no contexto do pensamento paulino em particular e no pensamento do Novo Testamento em geral (LADD, 2001, p. 447).

O Novo Testamento jamais apresenta o Cristianismo como uma formulação meramente teórica ou abstrata. Antes, quem está em Cristo é nova criação. No mesmo contexto Paulo deixa claro que o cristão deve viver para Cristo (2Co 5.15) e não considerar mais coisa alguma do ponto de vista simplesmente humano (v. 16). A iniciativa e o poder transformador de Deus estão em vista aqui; porém a conduta humana posterior é o grande indicador para saber se realmente houve ou não uma “nova criação”. Na Introdução foi mencionada a importância desta passagem para a igreja contemporânea. Tendo em vista o estado atual da igreja no Brasil, com os muitos escândalos, as falsas doutrinas e o apego exagerado a teorias de prosperidade, bem como o amor desavergonhado às riquezas e demais futilidades, certamente o conceito do cristão como uma nova criação deve ser resgatado. Paulo Romeiro observa:

A Igreja brasileira convive há tempos com práticas antiéticas (...). O envolvimento de muitos evangélicos na política brasileira tem trazido mais prejuízos do que benefícios para a imagem da Igreja. Isso tem gerado um clima de suspeita na sociedade em relação aos chamados “crentes”. Não são todos os brasileiros hoje que estão dispostos a confiar em alguém só porque carrega uma Bíblia ou diz ser evangélico (ROMEIRO, 1997, p. 11).

Longe de ser uma discussão técnica ou teórica, ou tão-somente um debate teológico restrito ao mundo acadêmico, a questão levantada pelo Apóstolo Paulo em 2Co 5.17 demonstra uma certa urgência para a igreja – e não somente para a igreja brasileira – na atualidade. Uma urgência ética, prática, no sentido de mostrar à sociedade (e a boa parcela dos “evangélicos”) como um verdadeiro cristão vive e se conduz. Nas palavras de Martyn Lloyd-Jones: “O mundo atual está aguardando o aparecimento de crentes autênticos, e deles precisa desesperadamente” (LLOYD-JONES, 1999, p. 17).


BIBLIOGRAFIA

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FABRIS, Rinaldo. Paulo: Apóstolo dos Gentios. São Paulo: Paulinas, 2001.
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BIBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada no Brasil. 2ª. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

Um comentário:

Rev. Geremias Vale disse...

caríssimo Fábio Vaz
Muito oportuna a sua exegese, no que tange as muitas traduções, lembro de uma palavra tua: "o Melhor é ler na língua original", o que sem dúvida ajudaria um pouco, e sua exegese nos coloca frente a frente com a nossa responsabilidade quanto Cristãos, de sermos "Nova Criatura"; Nova Criação" ou simplesmente "Nova Pessoa" confesso que lembrei de Lloyd-Jones "Estudos no Sermão do Monte", onde ele trata de espectos similares ao que você abordou em algumas linhas.
muito bom o Texto, Que Deus siga te usando
Soli Deo Gloria