segunda-feira, 28 de maio de 2012

IGREJAS DE ARAQUE NUM PAÍS DE TOLOS

Nunca foi fácil ser cristão. A igreja "primitiva", assim chamada, foi perseguida primeiro pelos judeus e depois pelos romanos. Homens, mulheres, crianças, jovens e velhos que confessavam Jesus Cristo como Senhor eram - literalmente - jogados aos leões nas arenas romanas, ou despedaçados por gladiadores treinados, ou queimados vivos para iluminar os jardins imperiais à noite, ou crucificados. Quando Constantino, a partir de 313 d.C., "legalizou" o Cristianismo no Império Romano, os cristãos poderiam pensar que as coisas ficariam mais fáceis. Mas não ficaram. Infelizmente o Império Romano não foi "cristianizado", mas ocorreu exatamente o contrário: o Cristianismo passou a sofrer um processo de romanização. Multidões de pagãos entravam na Igreja diariamente, trazendo consigo suas antigas práticas, crenças e doutrinas religiosas, num sincretismo incontrolável. Quando o Império Romano do ocidente cai, a partir de 476, após várias invasões bárbaras, o caos político e social acelera o processo de erosão da sã doutrina bíblica nas fileiras da Igreja. A Europa mergulha então na longa noite medieval, quando a Bíblia foi praticamente ocultada do povo "cristão". [1] Nascia então a Igreja Católica Apostólica Romana.

Após séculos de ignorância e medo, o domínio do terror católico-romano foi finalmente quebrado - embora parcialmente - pela luz da Reforma Protestante. Deus levantou homens como Martinho Lutero, Ulrich Zwinglio, João Calvino e John Knox, entre outros, para devolver a Bíblia ao povo e libertar os verdadeiros cristãos do jugo romanista e das garras da ignorância, da idolatria e da heresia. Mais uma vez a sã doutrina bíblica foi pregada e ensinada. Homens e mulheres morreram por ela, mártires da Reforma, queimados em praça pública pelos romanistas (ou afogados, ou enforcados, ou empalados, etc - os inquisidores eram muito criativos). Muitos pagaram com o próprio sangue pela sua profissão de fé em Jesus Cristo. Mas "o sangue dos mártires é a semente da Igreja", como disse Tertuliano no século II, e nos séculos subsequentes não foi diferente. Apesar da feroz oposição, a obra dos reformadores triunfou e perdurou. Tempos depois, da Inglaterra protestante levas de refugiados - puritanos, quakers, congregacionais e outros - cruzariam o Atlântico rumo ao Novo Mundo. E mais tarde, da América do Norte, missionários protestantes rumariam para as Américas Central e do Sul. E assim o Evangelho chegou ao Brasil católico, principalmente a partir do século XIX e início do século XX.

Aqui, em solo tupiniquim, os primeiros protestantes enfrentaram, obviamente, inúmeras dificuldades. Não somente a cultura, o idioma e o clima eram diferentes, mas a ameaça real dos romanistas fez-se sentir, em sua luta implacável para impedir a circulação da Bíblia em território nacional.[2] No entanto, o tempo passou, o protestantismo, a muito custo, pôde ser instalado no Brasil e na América Latina, criou raízes, cresceu e desenvolveu-se. A princípio amparado e dirigido por líderes estrangeiros, pouco a pouco obteve também a sua "independência", pelo menos parcialmente, à medida que líderes nativos começavam a surgir nas diferentes denominações. Sempre em meio a muita luta. Sempre enfrentando dificuldades severas, principalmente de ordem econômica e social. E sempre sob ataque constante do catolicismo romano e sua idolatria, seu desdém pela Bíblia e seu desejo insaciável de poder.

Sim, o tempo passou. A fé evangélica floresceu. Cresceu. Desenvolveu-se. As igrejas espalharam-se pelo país, crescendo num ritmo cada vez mais acelerado, especialmente a partir de meados do século XX. Mais ou menos a partir dessa época a "maré pentecostal" tomou fôlego e passou a dominar o cenário evangélico brasileiro. Como uma última "onda" dessa "maré", surgiram as igrejas neopentecostais. E na década de 1970 tais "igrejas" começaram a estabelecer sua teologia - a "teologia da prosperidade" - receita de sucesso para os espertalhões religiosos.

A teologia da prosperidade é uma invenção norte-americana. Surgida nos primórdios do século XX nos Estados Unidos, foi mais tarde utilizada no Brasil para alavancar o crescimento de verdadeiros impérios financeiros, construídos sobre a ignorância e a credulidade de multidões de "fiéis" que, hipnotizados por tais ideias, sonham com um deus que lhes dê riquezas, bem-estar e saúde - enfim, um paraíso na Terra. Para obter tais promessas, não hesitam em seguir cegamente seus líderes, dando a eles o fruto de seu trabalho (quantias não insignificantes de dinheiro), sem perceber que estão sendo extorquidos. Nas igrejas neopentecostais, o culto é um show. Usa-se a Bíblia a fim de utilizar versículos esparsos, sempre fora de seus respectivos contextos, a fim de iludir os frequentadores dos templos e os telespectadores (a maioria dessas "igrejas" desfruta de grande espaço na TV) com promessas falsas de uma prosperidade que nunca chega na vida real (exceto, é claro, nos "testemunhos" de "crentes fiéis" que são veiculados nos programas televisivos de tais igrejas, mostrando os entrevistados quase sempre a bordo de modernos carros importados, em garagens de mansões luxuosas. Acredite quem quiser...). E assim uns poucos enriquecem a olhos vistos ao custo do suor e da credulidade de muitos.

O deus dos neopentecostais é realmente um grande negociante. Ele negocia bênçãos; dependendo do tamanho de sua oferta, será o seu retorno financeiro. Esse deus também se assemelha a uma máquina caça-níqueis: coloque a moeda (faça a sua oferta), puxe a alavanca (participe do serviço religioso, que pode incluir até mesmo uma "sessão de descarrego" ou algo parecido), e espere pelo melhor. Mas o melhor muitas vezes não chega... mas isso é pela sua falta de fé!

No Brasil, as igrejas neopentecostais tiveram seu início a partir do surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), criada por Edir Macedo, proprietário da Rede Record de televisão, bem como de um vasto império financeiro que se estende por outros países e continentes. Em 1977 Macedo declarou-se "bispo" e, incorporando elementos de outras religiões não-cristãs, deu início à IURD. Logo viriam a Igreja Apostólica Renascer em Cristo, do casal Estevam e Sônia Hernandes, e a Igreja Internacional da Graça de Deus, de R. R. Soares (este, saído diretamente da IURD). Mais recentemente (1998), eclodiu a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), gêmea e arqui-rival da IURD, capitaneada por Valdemiro Santiago, que assim como Hernandes antes dele, autoproclamou-se "apóstolo". Santiago foi bispo da IURD e "temperou" a doutrina da prosperidade pregada por Macedo com uma ênfase muito forte em curas e milagres, atraindo grande número de ex-fiéis da Universal para suas fileiras. Ele próprio, no entanto, também precisou lidar com dissidentes: em 2010, um ex-bispo da IMPD funda a Igreja Mundial Renovada, sob o lema "A glória da segunda casa será maior do que a da primeira". No mesmo ano outro dissidente da IMPD funda a sua própria denominação, a Igreja Missionária do Amor. Em 2011 mais um ex-bispo de Valdemiro Santiago deixa a IMPD para estabelecer uma igreja própria, a Igreja Evangélica Celeiro de Deus.

Hoje inimigos ferrenhos, Macedo e Santiago digladiam-se sem trégua em seus programas de TV ou nos demais veículos de informação de seus respectivos impérios. O dono da Universal apelou até para o diabo, entrevistando um "demônio" que anunciou que Valdemiro Santiago era seu títere. Também utilizou sua rede Record para veicular denúncias contra Santiago, referentes à aquisição de uma propriedade rural. O falso apóstolo respondeu jocosamente, lembrando que se tinha comprado uma fazenda, o próprio Macedo havia adquirido uma rede de TV inteira. Boatos e intrigas também surgiram em meio à guerra entre os dois rivais. A briga vai longe, certamente, pois ambos disputam a mesma fatia de mercado: pessoas crédulas e ignorantes. Muitas delas lotam tais "igrejas" por pura ignorância, certas de que estão no lugar certo e de que seus líderes são honestos. Mas outras - desconfio que a maioria, a julgar pelo país em que vivemos - estão lá porque realmente querem é prosperar e enriquecer, querem um deus que as sirva, e não um Deus a quem devem servir, seja na riqueza seja na pobreza. Querem um deus que atenda seus desejos, e estão dispostas a tudo para conseguir seus sonhos. Mas não querem um Deus soberano, que exalta a quem quer e humilha a quem quer. Essas pessoas estão realmente no lugar certo, embora jamais terão seus anseios realizados (ao contrário de seus líderes, que enriquecem à custa de sua credulidade).


Até mesmo outro líder - antes um pentecostal clássico, hoje mais um defensor da maldita teologia da prosperidade - se pronunciou bradando que Macedo e Santiago são "farinha do mesmo saco". Esse mesmo cidadão chamou de "idiotas" aqueles que se opõem à teologia da prosperidade.


Somente no Brasil homens assim podem prosperar livremente. Em qualquer país civilizado do mundo, já estariam há muito tempo atrás das grades.


Somente no Brasil, país onde a corrupção sempre prosperou no cenário político. Onde os maiores criminosos são os que infectam o nosso Congresso Federal.


Somente no Brasil, onde o povo canta "assim você me mata" e "eu quero tchu-tcha-tcha" e grita "gol!!!" enquanto é espoliado, roubado, usado e ridicularizado pelos seus governantes (que ele próprio, o povo, colocou no poder).


Somente aqui tais falsas igrejas poderiam prosperar de modo tão avassalador. Somente aqui encontram solo tão fértil (claro que sei que há igrejas neopentecostais em outros países, mas duvido que tenham no exterior o mesmo sucesso que têm no Brasil).


O povo brasileiro aceita tudo. Leva tudo "na esportiva". Acostumado a "dar um jeitinho" em cada situação, não se incomoda em ser espoliado pelos parasitas políticos - desde o vereador até o senador, desde o prefeito até o/a presidente. O que vale é a "lei de Gérson", isto é, levar vantagem em tudo - de preferência, pisando nos outros. Dizem que numa democracia, o povo tem o governo que merece. Pois o povo brasileiro realmente tem escolhido a dedo seus governantes!


Nossas estradas estão intransitáveis (com exceção, é claro, das rodovias que o governo entregou para empresas privadas, nas quais deve-se pagar pedágio para trafegar - então, pagamos impostos para quê?!). Nossos hospitais, sucateados, superlotados, falidos. Nossas escolas? Pra quê educação? Povo ignorante, povo manipulado! Professores, médicos, policiais e inúmeros outros profissionais essenciais para o crescimento saudável de um país - todos esquecidos por governantes hipócritas e corruptos. E por aí vai...


Arrastões, assaltos, assassinatos, sequestros, violência sem trégua, num país onde só falta dar uma medalha de honra aos bandidos. Num país onde basta pagar um advogado para livrar-se da cadeia, não importa o crime que se tenha praticado. Num país cujo código penal parece ter sido especialmente projetado para favorecer os criminosos e prejudicar os cidadãos honestos.


A ética e a moralidade são ridicularizadas, desprezadas e até perseguidas neste país. A imoralidade é exaltada, idolatrada, festejada. Especialmente pelos meios de comunicação. Eles "se ligam" em manipular você. Idiotizam ainda mais o povo brasileiro, já entorpecido por natureza. É o país do carnaval! É o país do futebol! É o país do futuro! É o país dos canalhas... 


Por isso não é de se estranhar esse "Circo Gospel" no qual se transformou a maior parte da igreja "evangélica" brasileira. Os neopentecostais fazendo de tudo para destruir o verdadeiro Evangelho de Cristo, enquanto boa parte dos "cristãos sérios" emudece, pois a "turma do deixa-disso" brada bem alto: "Não podemos julgar! Não podemos julgar! Não podemos julgar!", e assim dia a dia vai-se perdendo a dignidade e a credibilidade da Igreja. Não é só ignorância. É o "jeitinho brasileiro". "Deixa a vida me levar..." deixa a vaca ir pro brejo. Igrejas de araque num país de tolos. Como nos primórdios do Cristianismo, multidões de pagãos ingressam diariamente na "Igreja", trazendo suas práticas (sua falta de ética e sua conduta imoral), suas crenças (e sua falta de caráter) e - é claro! - o seu famoso "jeitinho brasileiro" (ler a Bíblia dá muito trabalho! Tenho preguiça! Prefiro ouvir o pastô falar e ficar só "recebendo as bênça"!). Multidões que são facilmente manipuladas, extorquidas e usadas pelos profetas da prosperidade. O povo brasileiro é, em sua maioria, crédulo, e qualquer coisa que é dita pelos chefões neopentecostais é recebida sem titubeios pelos seus fiéis seguidores.


Quem disse que não podemos julgar? Ora, a Bíblia ordena que julguemos! O julgamento proibido é o julgamento insensato, sem dados, sem fatos, sem provas, sem respaldo ético e moral. Em sua ignorância bíblico-teológica e em sua ânsia por defender mercenários e espertalhões, muitos adeptos do Circo Gospel, por exemplo, empunham Mateus 7.1-5 para vociferar contra os (poucos) cristãos sérios que "ousam" levantar-se contra as aberrações neopentecostais. Os mesmos se esquecem (que conveniente, não?) de ler o versículo seguinte:


"Não deem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; caso contrário, estes as pisarão e, aqueles, voltando-se para vocês, os despedaçarão" (Mateus 7.6).


Ora, se absolutamente não podemos julgar, como então poderemos nos precaver contra os cães e contra os porcos?! Como, então, cumprir essa ordem de Jesus?


Também se esquecem de ler Mateus 7.15-23:


"Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores. Vocês os reconhecerão por seus frutos. Pode alguém colher uvas de um espinheiro, ou figos de ervas daninhas? Semelhantemente, toda árvore boa dá frutos bons, mas a árvore ruim dá frutos ruins. A árvore boa não pode dar frutos ruins, nem a árvore ruim pode dar frutos bons. Toda árvore que não produz bons frutos é cortada e lançada ao fogo. Assim, pelos seus frutos vocês os reconhecerão!
"Nem todo aquele que me diz: 'Senhor, Senhor', entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: 'Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?' Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!"


Sim, pelos seus frutos vocês os reconhecerão! Ora, portanto, o julgamento de acordo com os fatos e de acordo com a observação dos resultados das ações dos homens é não somente válido, como obrigatório para os cristãos!


A turma do "deixa-disso" (cúmplices e marionetes dos profetas da prosperidade) deveria ler mais a Bíblia, especialmente 1Coríntios 6.1-3:


"Se algum de vocês tem queixa contra outro irmão, como ousa apresentar a causa para ser julgada pelos ímpios, em vez de levá-la aos santos? Vocês não sabem que os santos hão de julgar o mundo? Se vocês hão de julgar o mundo, acaso não são capazes de julgar as causas de menor importância? Vocês não sabem que haveremos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas desta vida!" (Todo o capítulo 6 é deveras interessante).


Nunca foi fácil ser cristão! Mas nestes dias, neste país, onde o Cristianismo é ridicularizado pelos neopentecostais, e aqueles que ousam denunciá-los são atacados pelos defensores da ignorância (a turma do "deixa-disso"), está cada vez mais difícil saber quem é, de fato, cristão!


Onde estão os protestantes? Onde estão os herdeiros de Martinho Lutero, Ulrich Zwinglio, João Calvino, John Knox e tantos outros? Onde estão os herdeiros de Jonathan Edwards, J. C. Ryle, Charles Spurgeon, Arthur Pink e tantos outros? Onde estão os herdeiros dos puritanos, de Martyn Lloyd-Jones, de John Stott? Onde estão os verdadeiros crentes? Cadê os protestantes, onde estão os protestantes?!


É hora da Igreja - a verdadeira - levantar-se, protestar contra e denunciar esse monstruoso Circo Gospel. É hora de denominações sérias, históricas, pronunciarem-se oficialmente a respeito dessas igrejas de araque, desse país de tolos (e de tolas, para ser politicamente correto).


Denuncie, irmão, denuncie! Confesse, Igreja, sua verdadeira vocação, seu verdadeiro Cristianismo, porque estamos sendo todos colocados no mesmo "saco" desse lixo neopentecostal, desse arremedo de igreja.


É tempo de erguer novamente a bandeira protestante, a bandeira da Reforma, e esclarecer ao povo deste país que o neopentecostalismo não é Cristianismo, que essas igrejas não são igrejas cristãs verdadeiras, e que esses profetas da prosperidade não são verdadeiros homens de Deus.


Que o Senhor tenha misericórdia de Sua Igreja e deste país.


NOTAS

[1] Certamente estou ciente de que a chamada "Idade Média" não foi uma era de obscurantismo total e de "trevas absolutas". Houve criação artística e científica, e progresso em inúmeras áreas do conhecimento humano. De fato, sem uma "Idade Média" não teríamos um Renascimento, mais tarde. Mas refiro-me, aqui, às trevas espirituais que cobriram a maior parte desse período histórico, dominado por uma Igreja tirânica e ignorante.

[2] Cf. CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos séculos: uma história da Igreja Cristã. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 366.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

UMA FÉ QUE LEVA À ADORAÇÃO (PARTE 1)

Por A. DEMETRIO CÁNOVAS MORENO.

Sou consciente de que vou tratar de um dos assuntos mais polêmicos nos círculos evangélicos da atualidade. Não obstante, a controvérsia parece centrada em aspectos periféricos do assunto mais do que no fundo da questão. Em minha opinião, isso equivale a começar a casa pelo telhado. Se não temos diante de nós bem claros os princípios e fundamentos bíblicos da adoração, nossas opiniões sobre formas e acessórios serão irrelevantes, quando não impertinentes.

A adoração reformada tem a reputação de ser fria, pouco espontânea, etc. Para isso contribuíram não poucos casos de igrejas que, conservando o nome de calvinistas, não têm sido coerentes em sua prática. A fé cristã histórica não deveria produzir uma adoração fria e meramente cerebral, pois conta com fundamentos para que ocorra justamente o contrário, como veremos ao tratar das motivações para a adoração. Por enquanto, recordemos a seguinte declaração reformada: "O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre". [1]

Uma das melhores maneiras de glorificar a Deus é através da adoração de um povo redimido e santificado, e isto não à custa do gozo ou da alegria, mas juntamente com ele, como vemos nessa declaração. Entre os diversos enfoques que eu poderia ter escolhido para trabalhar este artigo sobre adoração, optei pelo expositivo. Não o fiz porque creia que este seja o único método válido ou mesmo o melhor. Mas sendo um entusiasma da pregação expositiva e procurando evitar os preconceitos pessoais na hora de trabalhar um assunto (infelizmente) polêmico, pareceu-me que o método expositivo seria certamente o mais objetivo.

O enfoque expositivo torna difícil trabalhar em todos os aspectos do tema, porque a relação de alguns pontos com o texto que lhes serve de base pode parecer um tanto forçada. Não peço desculpas por isso: alguns puritanos escreveram centenas de páginas com exposições sobre uma breve passagem das Escrituras, e certamente suas exposições tiveram de ser inevitavelmente forçadas em alguns casos.


Não pretendo escrever uma mera exposição do texto, para isso há excelentes comentários bíblicos. Desejo, sim, fazer uma aplicação do mesmo para a nossa situação neste início do 3º milênio. Além disso, considerei vários outros textos bíblicos e estudos de eminentes autores a fim de ter uma visão mais ampla possível sobre a adoração.


Por quê Isaías 6.1-13? Seu conteúdo não parece ser extraordinariamente diferente de nossa experiência diária como cristãos? Reconheço que, indubitavelmente, há elementos excepcionais tanto na visão quanto na comissão de Isaías, mas tendo uma firme convicção de que a Bíblia contém uma mensagem central, considero perfeitamente legítimo aplicar (com as devidas adaptações) qualquer uma de suas passagens em nossas vidas.


Alguém poderia objetar, com razão, que um incidente histórico não poderia ser utilizado como base para estabelecer uma doutrina. Nada mais longe do meu propósito. Antes, a doutrina bíblica da adoração encontra-se estabelecida pelos numerosos textos doutrinários que reforçam, explicam e ampliam a passagem de Isaías. Não me proponho oferecer aos leitores uma teologia da adoração, mas sim tratar daqueles aspectos da adoração que requerem uma atenção maior em nossas vidas devido à ignorância a respeito de seu conceito bíblico e histórico.


A visão de Isaías foi singular. O simples fato de falar de uma visão põe o crente normal em uma esfera totalmente diferente. Mas estaríamos muito enganados se não percebêssemos que qualquer cristão pode e deve experimentar seu equivalente em termos mais, digamos, comuns. Não foi em vão que Paulo pôde dizer que "todos nós, que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito" (2Co 3.18).


Definições


Pode ser útil para nós, antes de estudar a definição de adoração, mencionar algumas palavras que o Novo Testamento emprega sobre nosso tema: Homenagem ou submissão agradecida (proskynein); serviço (latreia); serviço sacerdotal (leitourgia); cuidado (therapeyin); servir a um superior (yperetein); servir pessoalmente (diakonein); reverência ou respeito (eusebeia); prostrar-se (proskynein); honrar religiosamente (sebazomai); louvar (ainos); aprovação (epainos); falar bem de alguém (eulogia); engrandecer (megalyno).


Segundo Peter Brumby, o vocabulário bíblico sobre adoração pode ser resumido da seguinte forma:


1. O grupo de palavras que indica prostração. Tanto os verbos hebraicos quanto os gregos indicam que a adoração denota uma inclinação por parte do adorador diante da infinita majestade e superioridade de Deus.


2. O grupo de palavras que indica serviço. Os verbos originais, neste caso, especificam o serviço prestado por um escravo inferior (um servo) a um amo superior. Em Romanos 12.1 o Apóstolo Paulo afirma que só há uma resposta às misericórdias de Deus, que é o nosso "culto racional". "O culto considerado aqui é um serviço de adoração" (John Murray). [2]


Poderíamos citar outros termos adicionais, mas com esses já enumerados podemos perceber que o conceito neotestamentário de adoração nada sabe dessa espécie de diversão sub-espiritual em que se tornaram muitos "cultos" em nosso tempo, "cultos" que mais parecem buscar um escapismo momentâneo dos problemas da vida do que ser uma atividade orientada de modo a servir, honrar e glorificar a Deus.


É interessante observar a ausência total do conceito de "celebração" na terminologia bíblica da adoração, conceito esse tão em voga em certos círculos evangélicos, especialmente em sua acepção de comemorar ou festejar um acontecimento. Claro que a adoração contém um elemento comemorativo (pensemos, por exemplo, na Ceia do Senhor), mas quando esse elemento incidental é transformado praticamente na essência e no todo da adoração, o desequilíbrio é claramente manifestado. Não esqueçamos que, em muitos casos, o erro é nada mais do que uma verdade levada a um extremo.


Também notamos que a adoração não consiste em meros atos culturais isolados e desconexos, mas sim na atitude e atividade cotidiana que resume admiravelmente bem a sentença paulina: "Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus" (1Co 10.31).


Vemos, além disso, que louvar a Deus é falar em harmonia com a Sua natureza, o que implica uma grande responsabilidade por parte dos adoradores; não é algo que possa ser feito de modo descuidado. Assim ensina a Escritura: "Por meio de Jesus, portanto, ofereçamos continuamente a Deus um sacrifício de louvor, que é fruto de lábios que confessam o seu nome" (Hb 13.15). Com este conceito concordam as definições de adoração que vários homens de Deus nos legaram:


"O próprio Deus está no centro da adoração cristã. Para que exista uma verdadeira adoração é necessária a presença de dois elementos: a revelação, mediante a qual Deus se manifesta ao homem, e a resposta, mediante a qual o homem, maravilhado, responde a Deus. Martinho Lutero afirmou que conhecer a Deus é adorar a Deus". [3]


Herbert Carson:


"Adorar a Deus é compreender o propósito pelo qual Deus nos criou. A adoração é a declaração da criatura sobre a grandeza do Criador. É a alegre afirmação por parte do pecador perdoado a respeito da misericórdia de seu Redentor. É o testemunho unificado de uma congregação que adora a respeito da perfeição de seu Senhor. É o auge do culto que os anjos prestam a Deus e o clímax do propósito eterno de Deus para o Seu povo. É a meta suprema do homem agora, e a consumação de sua vida no Céu". [4]


Gerald Vann:


"A adoração, pois, não é parte da vida cristã. A adoração é a vida cristã".


John Blanchard:


"A vida não deveria conter meramente atos de adoração; deveria ser um ato de adoração".


D. Peterson:


"A adoração no Novo Testamento é um conceito muito amplo, que descreve a experiência total do cristão". [5]


P. W. Hoon:


"Nossa ideia tradicional de adoração como algo restrito à reunião da congregação num templo e lugar concreto para celebrar rituais já não tem validade". [6]


W. Nicholls:


"A adoração é a atividade suprema, a única indispensável, da Igreja cristã". [7]


O povo de Israel caiu no erro de considerar a adoração como um mero ritual, e por isso recebeu a conhecida repreensão do profeta: "Pois desejo misericórdia, e não sacrifícios; conhecimento de Deus em vez de holocaustos" (Os 6.6). Isto não significa uma negação do fato de que existem atos concretos de adoração, como os cultos cristãos. O que significa é que de modo nenhum nossa adoração a Deus deve limitar-se a tais atos e que tais atos jamais deverão contradizer o restante de nossa experiência cristã.


Neste artigo será enfatizada a adoração pública. A adoração individual é importante, e muitas das coisas que trataremos são pertinentes a esse tipo de adoração, mas nossa principal preocupação é o aspecto público da adoração. A Escritura confere muita importância ao fato de nos reunirmos para adorar a Deus (Hb 10.25). E no Antigo Testamento somos lembrados de que o Senhor "ama as portas de Sião mais do que qualquer outro lugar" (cf. Sl 87.2). No Novo Testamento lemos que os cristãos "permaneciam constantemente no templo, louvando a Deus" (Lc 24.53).


Pesquisas indicam que no ano 2010 entre 10 e 20% dos norte-americanos tinham suas necessidades religiosas satisfeitas pela internet, sem necessidade de assistir num lugar de culto. Algo parecido acontecerá, sem dúvida, em outros países. É importante, pois, que façamos menção da necessidade da adoração coletiva. [8]


Importância


Se a adoração fosse simplesmente uma atividade esporádica, talvez não precisasse de uma reflexão mais profunda. Mas como é muito mais do que isso, as palavras de Charles Spurgeon são reveladoras:


"Aquele cuja alma não adora nunca viverá em santidade".


Adorar a Deus é o maior privilégio que um ser humano pode ter. O que o salmista dizia sobre os sacerdotes e levitas pode ser aplicado ao crente atual: "Como são felizes aqueles que escolhes e trazes a ti, para viverem nos teus átrios! Transbordamos de bênçãos da tua casa, do teu santo templo!" (Sl 65.4). Nós, cristãos, fomos escolhidos para adorar a Deus. Por natureza, não escolhemos Deus para adorá-Lo, mas frequentemente escolhemos criaturas e ídolos. O fato de que adoramos ao Deus verdadeiro é devido, unicamente, à vontade soberana de Deus. Como foi dito a Saulo: "O Deus dos nossos antepassados o escolheu para conhecer a sua vontade, ver o Justo e ouvir as palavras de sua boca" (cf. At 22.14).


Certamente Deus demanda ser adorado por parte de todas as criaturas, como pode ser visto, repetidamente, no livro dos Salmos (Sl 65.13; 69.34; 98.8; 117.1; 148.7), assim como no Apocalipse (Ap 14.7; 15.4) e em outros textos. Mas num outro sentido, a adoração é o privilégio e o dever do povo redimido por Deus (cf. Ap 11.1).


"A adoração do povo de Deus na Bíblia é peculiar porquanto se apresenta uma e outra vez como a adoração que oferecem os que foram redimidos". [9]


Na verdade, a adoração é a consequência lógica da conversão. Quando um ser humano conhece o Deus verdadeiro e a grande redenção que Ele realizou a nosso favor, é racional esperar que sua atitude seja prostrar-se em adoração agradecida diante d'Ele. Como disse Jesus a Satanás: "Adore o Senhor, o seu Deus, e só a ele preste culto" (Mt 4.10). 


No entanto, não é suficiente que o povo redimido adore a Deus; deverá fazê-lo de acordo com as normas das Escrituras. Em 1Crônicas 13 lemos sobre a tentativa de Davi de levar a arca da aliança até o Tabernáculo num carro puxado por bois, imitando o que os filisteus haviam feito anteriormente. Durante a viagem, Uzá toca na arca para evitar que a mesma caísse, e morre instantaneamente. Depois disso Davi percebeu que toda aquela operação não havia sido feita de acordo com os mandamentos de Deus (cf. 1Cr 15.13). Encontramos aqui um princípio importante: mesmo que agora adoremos a Deus "em Espírito e em verdade", isso não nos deve impedir de observar os mandamentos estabelecidos nas Escrituras. Deus não aceita que o adoremos de qualquer maneira. Não adianta afirmar que podemos adorar a Deus de modo aceitável utilizando qualquer meio ou modelo desde que não esteja expressamente proibido pela Bíblia, porque, levada ao seu extremo, tal ideia pode nos levar a todo tipo de extravagâncias e práticas ridículas, como aconteceu no passado e acontece cada vez mais em nossa época. A única salvaguarda contra semelhantes excessos é a adesão incondicional aos princípios claramente expressados nas Escrituras: "Tenha o cuidado de fazer tudo segundo o modelo que lhe foi mostrado no monte" (cf. Hb 8.5). Isso é o que denominamos o princípio regulador do culto.


À luz do texto de Isaías 6.1-13, analisaremos a questão da adoração de acordo com seu contexto, sua motivação, sua expressão e seu conteúdo, sem esquecer de seus efeitos e de suas consequências.


O CONTEXTO DA ADORAÇÃO


"No ano em que o rei Uzias morreu" (Is 6.1).


O rei Uzias morreu no ano 740 a.C. Os últimos anos de seu reinado sofreram a ameaça do Império Assírio comandado por Tiglate-Pileser III. Em tal situação, deve ter sido reconfortante para Isaías ter uma visão de Deus em Sua soberania ("assentado num trono alto e exaltado") e adorar o verdadeiro Imperador do universo. A adoração nos eleva acima do contexto das pressões políticas e sociais de nosso tempo, pois a nossa confiança não descansa nas circunstâncias, mas no Senhor das circunstâncias.


Daniel continuava orando da mesma forma que antes do decreto do rei Dario, que proibia orar a qualquer deus ou homem exceto ao rei (Dn 6). E como sabemos, o Rei dos reis livrou Daniel da cova dos leões.


Paulo e Silas adoravam a Deus na masmorra em Filipos - esse era o contexto de sua adoração. Não louvavam a Deus para obter vantagens, mas porque, em qualquer situação na qual nos encontremos, Deus é digno de ser louvado.


Uzias foi um rei que viveu seus últimos anos devastado pela lepra. Deus castigou sua ousadia com essa terrível enfermidade quando ele tentou oferecer incenso no Templo. Mas a lepra de Uzias era também um sinal da imundície espiritual do povo de Deus ("um povo de lábios impuros"). No entanto, como veremos mais adiante, na adoração encontramos a fonte da purificação: a Cruz ("isto tocou os seus lábios").


O reinado de Uzias foi caracterizado por um certo grau de prosperidade para o povo de Deus, pelo qual este corria o perigo de depositar a sua confiança nos bens materiais. Por isso, quando o Senhor se revela a Isaías, é como se dissesse ao profeta que não fixasse sua vista nas coisas da Terra, mas sim nas coisas do Céu.


A enfermidade e a morte de Uzias constituíram uma advertência divina de que Deus não toleraria nenhum desvio de Suas normas no tocante ao culto. Uzias recebeu um juízo divino por seu modo equivocado de adorar a Deus, e é interessante que foi nesse ano em que ele morreu que Deus mostrou a Isaías em que consiste o verdadeiro culto, a verdadeira adoração.


Vivemos num mundo que não somente não adora a Deus, mas que também odeia os que adoram a Deus. Por meio da adoração nos elevamos acima dessa situação. Não devemos nos envergonhar de Deus numa sociedade que adora o dinheiro, a ciência, a tecnologia e o entretenimento. Nosso Deus é mais glorioso do que tudo isso.


A teoria da evolução - tão difundida em nosso tempo, mesmo em círculos cristãos - rouba de Deus a adoração que Lhe é devida como Criador. É uma forma de adorar a criatura. Nós, porém, adoramos a Deus reconhecendo Seu poder para criar todas as coisas, "de modo que aquilo que se vê não foi feito do que é visível" (Hb 11.3).


Uzias dera um péssimo exemplo ao povo de Deus por meio de sua adoração equivocada. Nós, cristãos, devemos evitar a influência do mundo no campo da adoração. Não podemos adaptar nossa adoração a Deus ao gosto mundano. Hoje proliferam as "apresentações" e "números" musicais nas igrejas e concede-se à música um destaque indevido, transformando cultos em espetáculos, em teatros, em danças, etc, usurpando de modo velado o lugar da proclamação da Palavra e outros elementos cultuais. No fundo, é uma forma de agradar ao mundo e à carne.


Atualmente vivemos num contexto de todo tipo de desvios do culto a Deus. O povo de Deus precisa de instrução a respeito da adoração que Deus realmente aceita.


Por outro lado, não podemos nos alienar completamente do contexto cultural de nosso tempo. Não podemos nem devemos impor o estilo puritano, por exemplo, em coisas e formas secundárias. Devemos ser contemporâneos sem contemporizar, alegres sem ser mundanos, flexíveis sem imitar o mundo (cf. Rm 12.2).


O que o mundo precisa ver no povo de Deus não é uma adoração que se adapte a seus moldes, mas sim uma adoração sincera, vibrante, consequente. Somente assim poderá ter da igreja a mesma percepção que os judeus tiveram a respeito dos Apóstolos: "ficaram admirados e reconheceram que eles haviam estado com Jesus" (cf. At 4.13).


A MOTIVAÇÃO PARA A ADORAÇÃO


"Eu vi o Senhor assentado num trono alto e exaltado, e a aba de sua veste enchia o templo" (Is 6.1).


O que levou Isaías clamar: "Ai de mim! Estou perdido!", e logo depois: "Eis-me aqui. Envia-me!" (Is 6.5,8)? É evidente que a visão de Isaías foi determinante para a sua reação. Podemos estar certos de que antes dessa visão Isaías já era um adorador. Sem dúvida ele sabia que "Grande é o SENHOR, e digno de todo louvor na cidade do nosso Deus" (Sl 48.1), e consequentemente procurava adorar a Deus de acordo com a medida de seu conhecimento de Deus. No entanto, aquela visão o fez adorar a Deus como nunca antes havia feito. Essa passagem não menciona especificamente que Isaías adorou a Deus, mas toda a sua atitude foi de uma profunda, reverente e consciente adoração.


Em nosso caso, o grau de espiritualidade e piedade de nossa adoração depende da "visão" que temos de Deus. Essa visão não é o resultado de experiências subjetivas, mas de um conhecimento de Deus tal como Ele se revela nas Escrituras. Nas palavras de A. W. Pink:


"Onde Deus é verdadeiramente conhecido é necessariamente adorado".


Uma coisa leva a outra. É interessante notar que Isaías não somente viu como também ouviu, e o que ouviu, tanto dos anjos quanto do próprio Deus, guiou a sua própria adoração de forma objetiva. Isso nos faz perceber a importância do aspecto experimental e do aspecto objetivo da adoração. Não basta sentir emoções na adoração: as emoções devem ter sua base e fundamento na revelação objetiva da Palavra de Deus.


É claro que nosso conhecimento de Deus não é meramente intelectual. É possível conhecer a Bíblia inteira intelectualmente e não conhecer a Deus. Em outras palavras, conhecer fatos sobre Deus não é a mesma coisa que conhecer o próprio Deus. Para que possamos experimentar esse conhecimento de Deus, Ele toma a iniciativa num processo de auto-revelação. Não foi Isaías que encontrou Deus no templo, foi Deus quem manifestou-se ao profeta num ato soberano. A eleição e o chamado eficaz de Deus constituem a base de um verdadeiro conhecimento e da verdadeira adoração: "Como são felizes aqueles que escolhes e trazes para ti, para viverem nos teus átrios! Transbordamos de bênçãos da tua casa, do teu santo templo!" (Sl 65.4). O que antes era privilégio somente de sacerdotes e levitas, hoje pertence a todo o povo de Deus.


Como podemos, pois, ter essa visão de Deus? Em primeiro lugar, Deus revela-se a Si mesmo abrindo os nossos olhos para que possamos vê-Lo na Escritura ("eu vi o Senhor"). Em segundo lugar, a visão de Deus nos leva a uma profunda convicção de pecado ("Ai de mim!"). Em terceiro lugar, a convicção de pecado nos leva, pela fé, à Cruz ("uma brasa viva, que havia tirado do altar"). E finalmente a fé viva nos leva à obediência ("Eis-me aqui. Envia-me!"). D. Peterson esclarece:


"A Bíblia diz que Deus nos conduz a um relacionamento com Ele para que possamos responder aceitavelmente ao Seu chamado". [10]


Ou, nas palavras de Oswald B. Milligan:


"Adoração é dar ao Senhor a glória que Lhe é devida em resposta ao que Ele nos revelou e ao que Ele fez por nós em Jesus Cristo".


No entanto, nem todos os crentes têm o mesmo grau de conhecimento de Deus, e isso, sem dúvida, afeta o modo como cada um O adora. Uma das características fundamentais da fé reformada é o elevado conceito de Deus, que estabelece o fundamento para um elevado conceito de adoração. Deus é "alto e exaltado". Não há consenso se essas palavras referem-se a Deus ou ao trono de Deus. Em todo caso, o trono não seria "alto e exaltado" se Aquele que nele se assenta não fosse. Alec Motyer observa o seguinte:


"O Senhor é alto em Sua própria natureza, exaltado pelo reconhecimento de Sua soberania".


Não há nada trivial, mundano ou comum no Deus que adoram os cristãos.


Isaías viu o Senhor, mas em sua visão somente as roupas e outros elementos circunstanciais são descritos, não o próprio Deus. Isso é muito importante, porque na adoração "vemos" Deus em Seus atributos mas não em Seu aspecto: Ele "habita em luz inacessível, a quem ninguém viu nem pode ver" (1Tm 6.16). E onde encontramos a descrição dos atributos de Deus, senão somente na Escritura? Rejeitemos, portanto, visões esotéricas e místicas que pretendem oferecer uma imagem "mais exata" ou mais perfeita de Deus. Paulo diz que "todos nós, que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito" (2Co 3.18). A manifestação dessa glória


"É feita por meio da Palavra e do Espírito, cujo ofício é glorificar a Cristo, revelando Ele a nós". [12]


A figura do trono representa Deus imediatamente como Rei ou Juiz. A figura de um Ser dotado de poder absoluto deve produzir, necessariamente, temor. O Deus que adoramos tem poder sobre as nossas vidas e sobre o nosso destino, e isso deve inspirar a maior reverência no crente. Claro que o Rei, mediante Jesus Cristo, é também o nosso Pai, e portanto podemos nos aproximar "do trono da graça com toda a confiança, a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos graça que nos ajude no momento da necessidade" (Hb 4.16). Mas isso não nos dá permissão para uma familiaridade inconveniente e irreverente para com Deus e as coisas de Deus. É aos cristãos que é dito: "adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor, pois o nosso Deus é fogo consumidor" (Hb 12.28,29). Daí a exortação do Antigo Testamento: "Adorem a Deus com temor; exultem com tremor" (Sl 2.11).


Hoje, em muitos lugares, viceja um conceito de Deus como um ser bonachão, que ama todo mundo e jamais se ira com alguém. Essa figura do "Papai Noel do Céu" que sorri para todos e ignora o mal que há no ser humano, realmente é bem popular. Tal conceito de Deus conduz, inevitavelmente, a uma adoração superficial e sentimental, na qual Deus é tratado como o objeto de uma celebração festiva cujo objetivo é o prazer dos participantes.


No entanto, não é somente o conhecimento correto de Deus que deve motivar a nossa adoração: também Suas obras - especialmente a redenção - devem nos levar a prostrar-nos diante d'Ele. Isaías provavelmente sentiu-se muito agradecido quando a brasa viva tocou seus lábios, e a sua culpa e o seu pecado foram removidos (Is 6.7).


A redenção é um grande motivo para que adoremos a Deus. Pela pura graça de Deus fomos comprados com o sangue de Jesus (1Pe 1.18,19), e isso nos leva a adorar como servos (latreuo), não contra a nossa vontade, mas com a mais sincera gratidão: "Portanto, já que estamos recebendo um Reino inabalável, sejamos agradecidos, e assim adoremos a Deus" (cf. Hb 12.28).


Toda adoração baseada em motivos inferiores é indigna de Deus. A adoração é utilizada muitas vezes como uma espécie de escapismo, de fuga da realidade, para fugir dos problemas da vida. É como uma panaceia para todo tipo de males: uma "droga" espiritual que nos proporciona uma viagem dominical ao paraíso, do qual, desgraçadamente, deve-se retornar a tempo para a segunda-feira de manhã. Utiliza-se o erroneamente chamado "louvor" a fim de obter coisas de Deus. [13] É como se Deus fosse uma máquina caça-níqueis na qual introduzimos louvor esperando receber um prêmio em troca. Essa é a filosofia do chamado "Evangelho da Prosperidade". A experiência de Isaías, no entanto, foi bem diferente. Quando o profeta viu a glória de Deus, não disse: "Como sou abençoado por estar aqui!". Ao contrário, o que disse foi: "Ai de mim! Estou perdido!".


Segundo João, na verdade Isaías viu Jesus (Jo 12.41) e foi Jesus quem o profeta adorou. Cristo deve ser adorado por ser Deus e por ser o nosso Redentor. Cristo foi adorado na Terra (Mt 2.11; 14.33; 28.9,17; Jo 9.38) e é justo que continuemos a adorá-Lo agora que está no Céu. Hoje, no entanto, em muitos lugares, estão adorando o Espírito Santo em vez de adorar a Cristo. A Cruz e a redenção quase não são mencionadas, e toda a ênfase é colocada nos dons e demais manifestações sobrenaturais do Espírito Santo. A ênfase bíblica, no entanto, é adorar no Espírito, não adorar o Espírito.


A EXPRESSÃO DA ADORAÇÃO


"Acima dele estavam serafins; cada um deles tinha seis asas: com duas cobriam o rosto, com duas cobriam os pés e com duas voavam" (Is 6.2).


Isaías não somente viu o Senhor e Seu trono e Suas vestes; também viu a adoração celestial efetuada por seres angélicos chamados serafins (isto é, afogueados ou resplandecentes). A razão de estarem incluídos na visão poderia ser mostrar a Isaías, mutatis mutandis, um modelo de como deve ser a atitude e a prática do crente ao adorar a Deus.


À luz deste versículo, consideraremos as lições que podemos deduzir desta visão no tocante à expressão da adoração.


Serviço


A palavra "estavam" no versículo 2 significa literalmente "estavam em pé" [14]. Isto parece indicar sua disposição para servir. Não estavam ali para contemplar ou representar um espetáculo, mas para servir seu Criador. Qualquer expressão que adotemos em nossa adoração que contradiga o nosso caráter de servos é espúria. Somos e sempre seremos o que serve (veja Lc 22.27). D. Paterson nos adverte:


"Algo vai muito mal quando as pessoas creem que auto-gratificação espiritual é adoração!" [15]


E, como somos exortados pelo Salmo 96.8, na adoração devemos trazer nossas ofertas e todo o nosso ser a Deus, não meramente assistir um espetáculo musical ou teatral.


Reverência


O fato dos serafins cobrirem seus rostos é, sem dúvida, um sinal de reverência. Apesar de serem santos, sem pecado, não se atreviam a olhar diretamente para Deus. A ênfase aqui não está no ato de ver a Deus (a Bíblia fala de certos homens escolhidos que "viram" Deus), mas sim em seu cuidado para não olhar o Ser diante de quem sentiam-se indignos - em outras palavras, a ênfase está em sua atitude reverente.


Todas as expressões de nossa adoração devem estar caracterizadas pela reverência. A Escritura nos exorta: "adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor" (Hb 12.28). Nas palavras de Frank Gabelein:


"A reverência é absolutamente essencial na adoração".


A reverência deve ser manifestada com ordem. A exortação bíblica é fazer tudo "com decência e ordem" (1Co 14.40). Paulo nos dá essa instrução no contexto da celebração da Ceia do Senhor, ou seja, num contexto de culto. Sem minimizar a importância da espontaneidade e da naturalidade, a adoração não deve ser praticada de modo desordenado, anárquico e desleixado. Os adoradores devem receber e transmitir a impressão de que aquilo que é feito no culto cristão não é o resultado de improvisação e descuido, mas uma obra que, como a aliança de Deus, é "firmada e garantida em todos os aspectos" (2Sm 23.5). Em todo culto cristão deve haver um equilíbrio saudável entre espontaneidade e ordem, entre emoção e profundidade. Hoje, por desgraça, muitos priorizam mais a espontaneidade e a emoção, deixando de lado a ordem e a profundidade.


A reverência exclui a indevida familiaridade, irreverência e desrespeito que são tão comuns em certos cultos. Mesmo os anjos, que estão muito mais próximos de Deus do que nós, não agem desse modo; muito menos devemos fazê-lo nós, os remidos, que, com tanta frequência, perdemos nossa comunhão com Deus devido a nossos pecados!


No entanto, infelizmente a adoração tem cada vez um caráter mais horizontal e menos vertical. Perde-se rapidamente a sensação de mistério e admiração e em seu lugar surge um tipo de reunião social cujo objetivo é fazer com que todo mundo sinta-se bem.


No capítulo 10 de Levítico lemos sobre a malfadada experiência de Nadabe e Abiú, filhos de Arão, quando ofereceram "fogo estranho" que o Senhor não havia ordenado. O resultado foi que "saiu fogo da presença do SENHOR  e os consumiu" (Lv 10.2). Não sabemos exatamente em que consistiu aquele "fogo estranho" ou profano, mas é evidente que aqueles sacerdotes praticaram uma adoração que não estava de acordo com a santidade de Deus e com a reverência que a Ele é devida. Daí a explicação dada por Moisés: "Foi isto que o SENHOR disse: Aos que de mim se aproximam santo me mostrarei; à vista de todo o povo glorificado serei" (Lv 10.3).


A reverência jamais deve ser o mero resultado de uma imposição ou de uma tradição. Já há muitas igrejas que praticam a "reverência" de um funeral por estarem espiritualmente mortas. Ao contrário, a reverência deve surgir de corações que conhecem e amam o Senhor. Como diz o poeta William Cowper:


"Ninguém reverencia o Senhor mais do que aquele que O conhece melhor".


A reverência devida a Deus na adoração sempre será coerente com o nosso conceito de Deus. A expressão da adoração deve estar intrinsecamente ligada à experiência interior dos adoradores. A adoração não começa no aspecto formal, mas na atitude interior.


Mistério


Do fato dos serafins cobrirem seus rostos podemos deduzir que o Ser de Deus não deve ser alvo da nossa curiosidade. Quando adoramos, não procuramos entender, procuramos louvar. Facilmente podemos cair no perigo de uma adoração baseada meramente em nossa própria imaginação, e então louvar um "deus" que só existe em nossas mentes (cf. Cl 2.18). O fato de que "o templo ficou cheio de fumaça" pode ser um sinal da barreira de mistério que cerca a Deus, visto que Ele "habite em luz inacessível, a quem ninguém viu nem pode ver" (1Tm 6.16).


Humildade


Os serafins cobriam não somente seus rostos, mas também seus pés. Os pés são representados nas Escrituras como instrumentos que utilizamos no serviço a Deus (cf. Is 52.7). Poderia haver aqui uma referência à ocultação de qualquer mérito que pudesse nos tornar "aceitáveis" a Deus (Rm 9.16)? Nossas obras não nos tornam aceitáveis a Deus, nem na adoração nem em qualquer outro aspecto. Mesmo as virtudes dos anjos são somente o fruto da graça do Criador.


Obediência


Os serafins contavam com um terceiro par de asas, que utilizavam para voar. Aqui é quase inevitável pensar na rapidez e na diligência com que os anjos executam a vontade de Deus (Hb 1.7). A adoração não consiste de um exercício extático ou contemplativo, mas sim de uma atitude submissa e obediente que procura fazer a vontade de Deus. Dizia o Dr. Lloyd-Jones que a Igreja não é uma enfermaria, mas sim um quartel, isto é, o lugar onde recebemos as ordens do Senhor por meio de Sua Palavra. Calvino também afirma:


"Entendo por adoração, a veneração e o culto que cada um de nós oferece a Deus quando se submete à Sua grandeza; e por isso, não sem razão, parte da adoração consiste em submeter nossas consciências à Lei de Deus". [16]


Incompreensível para o mundo


Algumas das ações dos serafins podem parecer um tanto estranhas e até mesmo incompreensíveis para Isaías; no entanto, eles não modificaram sua maneira de adorar para que o profeta se sentisse mais à vontade. Um grave erro de muitas igrejas é querer adaptar a adoração ao gosto dos visitantes não-crentes, para que estes sintam-se mais à vontade. Assim, as bodas e os funerais são transformados, muitas vezes, em meros atos evangelísticos sem muita relação com o motivo principal de tais eventos. E mesmo alguns cultos dominicais sofrem tais transformações pelo mesmo motivo. Devemos ser sensíveis aos não-crentes em nossos cultos? Sim. Devemos adaptar o culto para torná-lo mais aceitável ou agradável ao mundo? Não.


Expressões físicas


Além disso, em nosso texto não encontramos referências a outras expressões físicas na adoração dos serafins, o que não deixa de ser interessante, tendo em vista o contexto do Antigo Testamento em que teve lugar a visão e o local da visão (o templo), em cujas dependências dava-se tanta importância a elementos externos. Temos aqui uma antecipação do que viria a ser a adoração neotestamentária, "em Espírito e em verdade" (Jo 4.23,24; Fp 3.3). Daí a exortação de Pedro: "Vocês também estão sendo utilizados como pedras vivas na edificação de uma casa espiritual para serem sacerdócio santo, oferecendo sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo" (1Pe 2.5).


O catolicismo romano, obviamente, não percebeu essa transição neotestamentária que enfatiza a espiritualidade da adoração. Por isso o uso de vestes especiais, de incenso, de apresentações artísticas, de ornamentação exagerada dos locais dedicados ao culto. Mas em algumas igrejas evangélicas parece estar acontecendo um tipo de involução, como um retorno a formas de adoração baseadas no Antigo Testamento e, pior, no romanismo, tais como certos tipos de música, danças, encenações dramáticas, etc. [17]


Para a prática de levantar as mãos na adoração Herbert Carson vê apoio bíblico tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. [18] Outros, no entanto [19], pensam que o ato de levantar as mãos estava associado com a adoração no templo e, portanto, é desnecessária para os crentes do Novo Testamento. É interessante notar que no Antigo Testamento o ato de erguer as mãos acompanhava, às vezes, o ato de ajoelhar-se (Ne 8.6), bem diferente da prática moderna.


Em certos círculos o louvor musical está sendo acompanhado por dança, justificando tal prática com exemplos do Antigo Testamento. Para um estudo mais profundo sobre o assunto, recomendo a leitura do livro de Brian H. Edwards, Shall we Dance?, de Evangelical Press. Aqui nos limitaremos a dizer que a dança veterotestamentária era praticada principalmente por mulheres e por motivo de vitórias militares de Israel. Não era uma atividade cúltica propriamente dita. Pelo contrário, a dança (de ambos os sexos) no culto é mais um obstáculo à adoração do que qualquer outra coisa, e ainda pode despertar desejos lascivos.


No melhor dos casos, as expressões físicas na adoração devem "ser consideradas sempre como inteiramente subordinadas à atividade espiritual. Dar a elas uma indevida proeminência, ou concentrar-se no que é feito com mãos e pés, é desviar-se para um culto de aparências, estéril e meramente formal". [20]


Personagem principal


Devemos notar que a descrição do versículo 2 é periférica e subordinada à cláusula central ("vi o Senhor"). Em outras palavras, Deus é o personagem principal, o motivo central de toda a cena. Lamentavelmente, certas formas de adoração tendem a obscurecer esse fato. Existe na adoração moderna o perigo das personagens humanas serem consideradas as principais em cena. Às vezes, o pregador (ou o "dirigente do culto") assume o papel de um apresentador de televisão ou de um animador de auditório, tornando-se o centro das atenções, deixando a Deus o papel de um "ator convidado" que recebe uma breve saudação de boas-vindas. Que desvio tremendo do fato de que Deus é o divino anfitrião que nos recebe em Sua casa! Os Apóstolos e os anjos entenderam que seu papel era totalmente secundário (At 10.26; Ap 19.10; 22.8,9). Uma "igreja" sem raízes, sem nenhuma ligação com a Reforma, tem trocado os "santos" de gesso e madeira por outros de carne e osso.


Flexibilidade


Há princípios bíblicos de adoração que são inegociáveis, mas isso não impede um certo grau de adaptação às diferentes culturas, países e épocas. Portanto, a adoração no terceiro milênio será uma adoração contextualizada. Tão revolucionária foi a música da Reforma diante dos cantos gregorianos como os hinos de Isaac Watts diante da salmódia de seus contemporâneos. Tão diversas são as formas de adoração do Ocidente com respeito ao Oriente quanto as dos países mais desenvolvidos em relação aos menos desenvolvidos. [21]


Estética


A visão de Isaías foi esteticamente bela. O trono, as vestes, o templo, os serafins, as portas, a névoa, tudo formava um conjunto harmonioso. Já falamos sobre a natureza espiritual da adoração e seria contraditório prestar demasiada atenção a aspectos estéticos como a decoração dos lugares de culto. O catolicismo romano e outras religiões caíram nesse erro, com suas catedrais e edifícios imponentes. É curioso notar que algumas igrejas chamam o lugar do culto de "templo", mesmo que seu aspecto não se pareça muito a um templo no sentido clássico da palavra, e sempre existe a tentação de dar uma importância exagerada aos edifícios e aos ornamentos. Os cristãos primitivos, como sabemos, nada sabiam sobre edifícios especiais, mas reuniam-se em casas de famílias (Rm 16.5; 1Co 16.19; Cl 4.15; Fm 2). O Apóstolo Paulo rejeita a ideia de que Deus possa habitar em templos feitos por mãos humanas (At 17.24,25).


No entanto, corremos o risco de ir ao extremo oposto e descuidar do aspecto externo de nossos lugares de culto, ou de construí-los toscamente, de modo desagradável à vista. Nossos lugares de culto devem ser esteticamente atraentes, sem cair no luxo e na ostentação, e servir de ajuda e não de obstáculo para a adoração. Não esqueçamos que, ainda que adoramos "em Espírito", o fazemos em nossos corpos de carne e osso!


O dia de repouso


Não sabemos se a visão de Isaías aconteceu no dia de repouso ou durante alguma festa do calendário judeu, ou, simplesmente, em um dia qualquer. Para o crente neotestamentário não faz diferença, já que toda a sua vida deve ser uma vida de adoração. Mas seria simplório de nossa parte igualar todos os dias da semana no tocante à adoração. Calvino comenta a respeito do dia de repouso:


"É tão difícil guardar a ordem e a conveniência sem essa precaução de certos dias determinados, que se os tais não existissem, logo veríamos grandes perturbações e confusões na Igreja". [22]


O Senhor ressuscitou e apareceu várias vezes a Seus discípulos no domingo. João encontrou-se "em Espírito" no dia do Senhor (Ap 1.10). Os discípulos se reuniam no primeiro dia da semana para partir o pão (At 20.7). No primeiro dia da semana as ofertas eram recolhidas (1Co 16.2).


O dia de repouso, portanto, deve ser o dia de adoração por excelência para o cristão. Nenhum crente deveria faltar sem um motivo sério ao seu encontro semanal com o povo de Deus para adorar o Senhor. E isso não somente no culto em si, mas durante todo o dia do Senhor.


Importância da forma


Finalmente, não é possível minimizar a importância do modo - a forma externa - como expressamos nossa adoração. Certamente Deus vê, antes de tudo, o coração dos adoradores. Mas o aspecto externo costuma ser um reflexo da atitude interior. Se lembrarmos que Deus não viu com agrado a oferta vegetal de Caim, e que fulminou Uzá por ter tocado a arca, talvez começaremos a dar mais importância ao modo como adoramos a Deus.


NOTAS


[1] Catecismo Menor de Westminster, resposta à pergunta 1.
[2] Reformation Today, nº 149, janeiro-fevereiro de 1996.
[3] New Dictionary of Theology, p. 730.
[4] Halleluja!, p. 7.
[5] Engaging with God, p. 18.
[6] Citado por D. Peterson: Engaging with God, p. 19.
[7] Ibid., p. 15.
[8] Citações da revista Letra Viva (Espanha).
[9] D. Peterson: Engaging with God, p. 26.
[10] Ibid., p. 19.
[11] Motyer: The Prophecy of Isaiah, p. 76.
[12] Charles Hodge: An Exposition of 1 and 2 Corinthians, p. 247 (Sovereign Grace Publishers, 1974). Existe uma versão desse livro publicada em espanhol por El Estandarte de la Verdad.
[13] Veja-se o livro De la prisión a la alabanza, por Merlin Carothers (Editorial Vida, 1975).
[14] Cf. La Biblia de las Américas, Isaías 6.2, nota marginal.
[15] D. Peterson, Engaging with God, p. 17.
[16] Instituição da Religião Cristã, II, VIII, 16.
[17] Alfonso Ropero: "Palmadas en la Adoración", revista Nueva Reforma, nº 12 (janeiro de 1990).
[18] Herbert Carson: Halleluja!, pp. 65-66.
[19] Sword and Trowel nº 99/1, artigo "Why Raise Hands?".
[20] Herbert Carson: Halleluja!, p. 69.
[21] Cf. a introdução do hinário Praise!, por Brian Edwards e outros.
[22] Instituição da Religião Cristã, II, VIII, 32.


FONTE: Primeira parte do artigo Una fe que lleva a la adoración, capítulo 4 do livro:
PUIGVERT, Pedro (org.). Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2002, pp. 148-173. A segunda parte deste artigo será publicada em breve, querendo Deus, neste blog. Ela contém os seguintes subtítulos: "O conteúdo da adoração", "Os efeitos da adoração" e "As consequências da adoração". Traduzido do espanhol por F. V. 

domingo, 6 de maio de 2012

TEMORES APOSTÓLICOS

Por J. C. Ryle.

"O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoção a Cristo" (2Coríntios 11.3).

O texto acima contém parte da experiência de um famoso cristão. Talvez nenhum servo de Cristo tenha deixado semelhante marca para o bem do mundo como o Apóstolo Paulo. Quando nasceu, todo o império romano, com exceção de uma pequeníssima parte, estava submerso nas trevas do paganismo; quando morreu, o tremendo conglomerado pagão havia sido sacudido em seu núcleo e já estava a caminho da ruína. E nenhum dos instrumentos que Deus utilizou para produzir essa maravilhosa mudança fez mais do que Saulo de Tarso depois de sua conversão. No entanto, mesmo em meio a tanto sucesso e utilidade para Deus, podemos ouvi-lo clamar: "Receio!".


Tal clamor possui uma melancolia que exige a nossa atenção. Quem pensa que Paulo teve uma vida cômoda por ser um Apóstolo, por ter feito milagres, por ter fundado igrejas e por ter escrito epístolas inspiradas pelo Espírito Santo, tem muito o que aprender. Nada mais longe da verdade! O capítulo 11 de 2Coríntios conta uma história muito diferente. Esse capítulo merece um estudo cuidadoso. Em parte devido à oposição dos pagãos, filósofos e sacerdotes, cujo ofício estava em perigo, em parte devido à amarga inimizade de seus próprios compatriotas descrentes, em parte devido aos irmãos falsos ou fracos, em parte devido ao seu próprio aguilhão na carne, o grande Apóstolo dos gentios era como seu Senhor: "um homem de dores e experimentado no sofrimento" (cf. Is 53.3).


Mas de todos os fardos que Paulo teve de suportar, nenhum parece ter pesado tanto quanto a preocupação por todas as igrejas (2Co 11.28). O conhecimento precário de muitos cristãos primitivos, sua fé débil, sua inexperiência, sua esperança minguada, seu baixo nível de santidade, todas essas coisas os faziam particularmente suscetíveis de perder-se por causa dos falsos mestres, e assim afastar-se da fé. Como crianças pequenas, que com grande dificuldade começam a andar, necessitavam ser tratados com grande paciência. Como plantas exóticas numa estufa, deveriam ser tratados continuamente. Pode-se duvidar que eles mantinham o Apóstolo num estado de contínua ansiedade? Nos surpreende que ele diga aos colossenses: "Quero que vocês saibam quanto estou lutando por vocês, pelos que estão em Laodiceia e por todos os que ainda não me conhecem pessoalmente"; e aos gálatas: "Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo, para seguirem outro evangelho". "Ó gálatas insensatos! Quem os enfeitiçou? Não foi diante dos seus olhos que Jesus Cristo foi exposto como crucificado?" (Cl 2.1; Gl 1.6; 3.1). Nenhum leitor atento pode estudar as epístolas sem perceber que essa questão surge uma e outra vez. E o texto que encabeça este artigo é um exemplo do que quero dizer: "O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoção a Cristo" (2Co 11.3). O texto contém três importantes lições, às quais desejo que meus leitores dirijam sua atenção. Creio que são lições válidas para todas as épocas.


I. Em primeiro lugar, o texto nos revela uma doença espiritual a qual todos somos suscetíveis e a qual devemos temer. Essa doença é o desvario da mente: "Receio... que a mente de vocês seja corrompida".


II. Em segundo lugar, o texto nos revela um exemplo que devemos sempre lembrar: "A serpente enganou Eva com astúcia".


III. Em terceiro lugar, o texto nos revela um ponto sobre o qual devemos manter vigilância. Esse ponto é o desvio de nossa "sincera e pura devoção a Cristo".


O texto é uma mina de ouro profunda, e não encontra-se isento de dificuldades. Mas desçamos corajosamente a fim de encontrar nosso tesouro.


I. Primeiramente, pois, há uma doença espiritual que devemos temer: o desvario ou corrupção da mente. 


Interpreto "corrupção da mente" como a lesão que nossa mente sofre ao admitir falsas doutrinas e ensinos antibíblicos em nossa religião. E creio que o Apóstolo queria dizer o seguinte: "Receio que seus sentidos absorvam ideias equivocadas e defeituosas a respeito do Cristianismo. Receio que vocês adotem como verdades alguns princípios que não são a Verdade. Receio que vocês se afastem da fé que foi entregue de uma vez por todas aos santos e que abracem ideias que praticamente destroem o Evangelho de Cristo".


O receio expressado pelo Apóstolo é dolorosamente instrutivo e à primeira vista pode até causar surpresa. Quem poderia imaginar que, mesmo sob o olhar dos próprios discípulos escolhidos por Cristo, quando o sangue vertido no Calvário mal havia secado, quando a era apostólica e a era dos milagres ainda não havia passado, já existiria o perigo de que os cristãos se afastassem de sua fé? No entanto, é certo que o "mistério da iniquidade" já havia começado a operar antes mesmo da morte dos Apóstolos (cf. 2Ts 2.7). "Já agora muitos anticristos têm surgido" (1Jo 2.18). E não há nenhum fato na história da Igreja que esteja mais demonstrado que este: que a falsa doutrina jamais deixou de ser uma praga na cristandade nos últimos dezoito séculos. Olhando para o futuro com olhos de profeta, Paulo disse: "Receio... não somente a corrupção de sua moralidade, mas também de seus sentidos".


A pura verdade é que a falsa doutrina tem sido o modo escolhido por Satanás para deter o avanço do progresso do Evangelho de Cristo em todas as épocas. Ao ver-se incapaz de evitar que a fonte da vida fosse aberta, ele tem trabalhado incansavelmente para poluir os mananciais que dela começam a fluir. Embora não tenha conseguido estancá-la, eventualmente tem sido bem-sucedido ao neutralizá-la por meio de adição, substração ou substituição. Em outras palavras, tem corrompido as mentes dos homens.


a) A falsa doutrina logo propagou-se pela igreja primitiva depois da morte dos Apóstolos, ainda que muitos gostem de falar de uma suposta pureza inicial da Igreja. Em parte devido ao estranho ensino a respeito da Trindade e da pessoa de Cristo, em parte devido a uma absurda multiplicação de ritos e cerimônias, em parte devido à introdução do monasticismo e de um ascetismo de origem humana, a luz da Igreja logo foi enfraquecendo e sua utilidade foi perdida. Mesmo nos tempos de Agostinho, como nos diz o prefácio do Livro de Oração inglês: "O número de cerimônias cresceu de tal modo que o estado dos cristãos era pior do que o dos judeus nesse aspecto". Aqui estava a corrupção dos sentidos humanos.


b) Durante a Idade Média, a falsa doutrina havia se propagado de tal forma pela Igreja, que a Verdade de Cristo Jesus esteve a ponto de ser enterrada ou sufocada. Durante os três séculos anteriores à Reforma, é provável que somente uma minúscula parte dos cristãos teria conseguido responder à pergunta: "O que devo fazer para ser salvo?". Os papas e cardeais, os abades e priores, os arcebispos e bispos, os sacerdotes e diáconos, os monges e as freiras, salvo raríssimas exceções, estavam profundamente imersos na ignorância e na superstição. Estavam submersos num sono profundo, do qual foram parcialmente despertos pelo terremoto da Reforma. Neles estava a "corrupção dos sentidos humanos".


c) Desde os dias da Reforma a falsa doutrina tem voltado a surgir continuamente, uma e outra vez, estorvando a obra começada pelos reformadores. O modernismo em algumas regiões da Europa, o unitarismo em outras, o formalismo e a indiferença em outras, têm feito do protestantismo algo simplesmente estéril.


d) A falsa doutrina, mesmo na atualidade e diante de nossos próprios olhos, está devorando o coração da Igreja da Inglaterra e colocando em perigo sua existência. Uma escola eclesiástica não hesita em expressar seu desagrado diante dos princípios da Reforma e está buscando romanizar o sistema. Outra escola, com o mesmo ímpeto, fala com desdém da inspiração bíblica, graceja da própria ideia de uma religião sobrenatural e tenta tenazmente lançar fora os milagres como se fossem trastes inúteis. Outra escola proclama a liberdade de opinião religiosa em todas as suas variações e nos diz que todos os mestres merecem a nossa confiança sem importar quão heterodoxas e contraditórias sejam suas opiniões, desde que sejam inteligentes, fervorosos e sinceros. Para todas essas escolas é válida a mesma observação: são exemplo vivo da "corrupção da mente humana".


Diante de fatos como esses, faríamos bem em tomar seriamente as palavras do Apóstolo no texto que encabeça o presente artigo. Como ele, temos motivos de sobra para recear. Creio que os cristãos ingleses jamais precisaram estar tão em guarda quanto hoje. Jamais foi tão necessário que os ministros fiéis clamem em alta voz e não se calem. "Se a trombeta não emitir um som claro, quem se preparará para a batalha?" (1Co 14.8).


Peço a cada membro leal da Igreja da Inglaterra que abra seus olhos diante do perigo ao qual sua Igreja está exposta e tenha cuidado para que ela não seja danificada por causa da apatia e de um desejo insano de paz. A controvérsia é algo odioso; mas há tempos em que a mesma torna-se um dever imperioso. A Paz é algo excelente; mas, assim como o ouro, pode custar muito caro. A Unidade é uma grande bênção; mas não vale nada se é conquistada em troca da Verdade. Repito mais uma vez: abra seus olhos e mantenha-se em guarda.


A nação que se dá por satisfeita com sua prosperidade comercial e descuida suas defesas nacionais porque são complicadas ou caras, provavelmente se transformará em presa do primeiro Alarico, Átila ou Napoleão que decida atacá-la. A Igreja que seja "rica e próspera" pode pensar que "de nada tem necessidade" devido a sua antiguidade, sua ordem e suas qualidades. Pode clamar "paz, paz" e se convencer de que não verá mal nenhum. Mas, se não   conservar a sã doutrina entre seus ministros e membros, não deverá surpreender-se de que lhe retirem seu candelabro.


Desaprovo desde o fundo do meu coração a covardia ou o pessimismo diante desta crise. A única coisa que digo é: Exercitemos um temor piedoso. Não vejo a menor necessidade de abandonar um barco velho e dá-lo por perdido. Por ruins que pareçam as coisas dentro de nossa arca, certamente não são piores do que o dilúvio lá fora. Mas protesto, sim, contra esse espírito despreocupado de sonolência que parece selar os olhos de muitos clérigos e cegá-los diante do enorme perigo em que se encontram devido ao progresso das falsas doutrinas em nosso tempo. Protesto contra a ideia generalizada que tão frequentemente proclamam os homens de altos cargos de que a Unidade é mais importante do que a sã doutrina e que a Paz é mais valiosa do que a Verdade. E convoco todo leitor deste artigo que ame verdadeiramente a Igreja da Inglaterra e que reconheça os perigos desta época e leve a cabo seu dever de resistir energicamente a tais clérigos por meio da ação conjunta e da oração. Não é sem motivo que o Senhor diz: "Se [alguém] não tem espada, venda a sua capa e compre uma" (cf. Lc 22.36). Não esqueçamos as palavras de Paulo: "Estejam vigilantes, mantenham-se firmes na fé, sejam homens de coragem, sejam fortes" (1Co 16.13). Nossos nobres reformadores compraram a Verdade pagando com seu próprio sangue e a entregaram a nós. Não a venderemos por um prato de lentilhas em nome da Unidade e da Paz.


II. Em segundo lugar, o texto nos revela um exemplo que faremos bem em lembrar: "A serpente enganou Eva com astúcia".


Quase não é necessário lembrar aos leitores que Paulo, aqui, faz referência à história da Queda no capítulo 3 de Gênesis como um fato histórico. Não há aqui a menor indicação que propicie à crítica moderna a ideia de que o livro de Gênesis não passa de uma agradável coleção de mitos e fábulas. Não dá a entender que não existe um ser como o diabo, que não houve um fruto proibido e que não foi desse modo, literalmente, que o pecado entrou no mundo. Ao contrário, menciona a história de Gênesis 3 como um fato histórico que ocorreu realmente.


Devemos recordar, igualmente, que este não é um caso isolado. É fato que as várias histórias de milagres extraordinários do Pentateuco são mencionadas no Novo Testamento sempre como fatos históricos. Caim e Abel, a arca de Noé, a destruição de Sodoma e Gomorra, Esaú vendendo sua primogenitura, a morte dos primogênitos no Egito, a passagem pelo Mar Vermelho, a serpente de bronze, a água que fluiu da rocha, a jumenta de Balaão que falou - os autores do Novo Testamento mencionam todas essas coisas como algo real, não como fábulas. Não esqueçamos disso jamais. Aqueles que gostam de desprezar os milagres do Antigo Testamento e tirar a autoridade do Pentateuco fariam bem em considerar se têm mais conhecimento do que nosso Senhor Jesus Cristo e do que os Apóstolos. Quanto a mim, falar de Gênesis como um conjunto de mitos e fábulas diante de uma passagem das Escrituras como essa que temos diante de nós, parece soar como irracional e blasfemo. Paulo estava enganado quando mencionou a história da tentação e da Queda? Se estava, era uma pessoa crédula e tola, e talvez tenha se enganado em muitas outras coisas. Se assim fosse, desapareceria sua autoridade como escritor! Podemos descartar semelhante conclusão monstruosa. Mas é bom lembrar que muita incredulidade começa com um desprezo irreverente em relação ao Antigo Testamento.


De qualquer modo, o que o Apóstolo deseja que percebamos na história de Eva e da serpente é que a "astúcia" do diabo a levou a pecar. Ele não disse a ela, simplesmente, que queria causar-lhe dano. Ao contrário, disse a ela que aquilo que estava proibido era bom para comer, agradável aos olhos e desejável para obter sabedoria (veja Gn 3.6). Não teve escrúpulos ao afirmar que ela poderia comer o fruto proibido sem temer a morte. Cegou os olhos de Eva para a pecaminosidade e a transgressão. A persuadiu para afastar-se do claro mandamento de Deus e crer que isso lhe daria benefícios e não ruína. "Com sua astúcia enganou Eva". Bem, é justamente essa "astúcia" que Paulo nos diz que devemos temer na falsa doutrina. Não devemos esperar que as doutrinas falsas se aproximem de nós com aparência de engano, mas sim travestidas de verdade. A moeda falsa jamais entraria em circulação se não fosse semelhante à autêntica. O lobo raramente conseguiria entrar no aprisco se não se disfarçasse de ovelha. O papismo e a incredulidade não causariam muitos estragos se se apresentassem ao mundo com seus verdadeiros nomes. Satanás é um general inteligente demais para dirigir uma campanha dessa forma. Utiliza palavras elegantes e frases de efeito como "catolicidade", "apostolicidade", "unidade", "ordem na Igreja", "ideias corretas a respeito da Igreja", "pensamento livre", "interpretação liberal das Escrituras" e outras semelhantes, e desse modo toma posse das mentes dos incautos. É essa, precisamente, a "astúcia" à qual Paulo se refere no presente texto. Não devemos duvidar que ele havia lido as palavras do Senhor no Sermão do Monte: "Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores" (Mt 7.15).


Peço sua atenção especial com respeito a este ponto. Tal é a característica simplória e ingênua de muitos ministros da nossa época que de fato esperam que as doutrinas falsas pareçam falsas e não entendem que a própria essência da falsidade é sua semelhança com a verdade de Deus. Um jovem clérigo, por exemplo, que desde a sua infância foi educado para ouvir somente o ensino evangélico, recebe um dia o convite para ouvir um sermão pregado por algum eminente mestre de opiniões semicatólicas ou liberais. Em sua ingenuidade, vai à igreja esperando ouvir somente heresias do princípio ao fim. Para seu assombro, escuta um sermão inteligente e eloquente que contém uma grande dose de verdade e tão-somente umas poucas gotas, homeopáticas, de erro. Então surge uma violenta reação em sua mente ingênua. Começa a pensar que seus professores eram gente de mente estreita, intolerantes e duros, e sua confiança neles fica danificada, talvez para sempre. Com frequência, acaba pervertendo-se completamente e finalmente passa a fazer parte dos romanistas ou dos liberais! E por qual motivo? Por um tolo esquecimento da lição do Apóstolo Paulo neste texto: a serpente enganou Eva "com astúcia". Assim Satanás engana as almas incautas do nosso tempo, aproximando-se delas sob o disfarce da Verdade.


Rogo a cada leitor deste artigo que lembre-se disso e mantenha-se alerta. Os falsos mestres têm multidões de seguidores fanatizados que, incansavelmente, os elogiam a todos os que encontram pela frente, dizendo coisas como: "Ele é tão bom, tão amável, tão humilde, tão esforçado, tão abnegado, tão caridoso, tão fervoroso, tão inteligente, tão sincero, que não pode haver perigo nenhum em ouvi-lo. Além disso prega um evangelho agradável e genuíno! Ninguém prega melhor do que ele! Não posso acreditar - e nunca acreditarei - que trata-se de um enganador". Quem não escuta constantemente esse tipo de discurso? Ora, os falsos mestres não se apresentam como tais, mas como "anjos de luz", e são inteligentes demais para dizer tudo o que pensam e planejam fazer. Jamais foi tão necessário lembrar que "a serpente enganou Eva com astúcia".


Deixo esta parte do assunto com a triste sensação de que vivemos em tempos em que sentir receio em relação à sã doutrina não somente é um dever, mas uma virtude. Não é ao fariseu ou ao saduceu declarados que devemos temer, mas sim o fermento dos fariseus e dos saduceus. É a "reputação de sabedoria" que reveste o erro que o torna tão perigoso para muitos (veja Cl 2.23). Parece tão bom, tão justo, tão zeloso, santo e reverente, tão devoto e tão amável que arrasta muitas pessoas bem-intencionadas como uma tsunami. Quem quiser estar a salvo deve cultivar um espírito de sentinela. Não deve se importar se zombam de si, por considerá-lo alguém que "vê heresias em qualquer lugar". Em tempos como estes, não deve se envergonhar de desconfiar do perigo. E se há alguém que zombe dele por isso, bem pode responder: "A serpente enganou Eva com astúcia".


III. A terceira e última lição deste texto nos mostra uma questão a respeito da qual devemos estar particularmente precavidos. Essa questão é denominada "a sincera e pura devoção a Cristo".


Essa expressão é extraordinária e única no Novo Testamento. Há algo claro aqui: a sincera e pura devoção significa aquilo que é puro em contraste com o que foi misturado. Desenvolvendo essa ideia, alguns têm sustentado que a expressão significa "afetos exclusivos para Cristo", isto é, não devemos dividir o nosso afeto entre Cristo e mais alguém. Sem dúvida, é boa teologia, mas não estou convencido de que esse seja o verdadeiro sentido do texto. Prefiro a opinião de que ele refere-se a uma simples doutrina cristológica, sem adulterá-la nem alterá-la, a simples "verdade como é em Jesus", sem acréscimos, substrações nem substituições. Afastar-se do simples e genuíno preceito do Evangelho, seja deixando de lado alguma parte ou acrescentando alguma outra coisa, era o que Paulo queria que os coríntios temessem. A expressão está cheia de significado e parece escrita especialmente para o nosso ensino nestes últimos tempos. Nosso zelo deve ser grande e devemos estar sempre em guarda, para que não nos afastemos do simples Evangelho que Cristo entregou de uma vez por todas aos santos.


A expressão que temos diante de nós é tremendamente instrutiva. O princípio nela contido é de inefável importância. Se amamos nossas almas e queremos mantê-las saudáveis, devemos nos esforçar para jamais nos afastarmos da singela doutrina de Cristo. Uma vez que algo seja acrescentado ou tirado dela, transforma-se o remédio divino em veneno mortal. Que o princípio a guiá-lo seja: "Nenhuma outra doutrina salvo a doutrina de Cristo, nada mais e nada menos!". Aferre-se firmemente a esse princípio e não o solte. Escreva-o em seu coração e não se esqueça dele jamais.


1) Tenhamos claro, por exemplo, que não há um caminho para a Paz exceto o caminho traçado por Cristo. A verdadeira tranquilidade de consciência e a paz interior da alma não procedem jamais de alguma outra coisa que não seja a fé inequívoca em Cristo e em Sua obra completa. A paz por meio da confissão, do ascetismo, da frequência contínua aos cultos ou da participação constante da Ceia do Senhor é uma paz enganosa. As almas somente alcançam descanso quando dirigem-se diretamente a Jesus Cristo, cansadas e sobrecarregadas, descansando n'Ele por meio da fé, da confiança e da comunhão. Nesta questão devemos nos manter firmes na "sincera e pura devoção a Cristo".


2) Tenhamos claro, igualmente, que não há outro sacerdote que possa mediar de alguma maneira entre Deus e nós, além de Jesus Cristo. Ele mesmo disse, e Suas palavras não passarão: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim" (Jo 14.6). Nenhum filho pecador de Adão, sem importar como tenha sido ordenado nem qual seja seu título eclesiástico, pode ocupar o lugar de Cristo ou fazer o que somente Cristo foi chamado para fazer. O sacerdócio é um cargo específico de Cristo e jamais Ele o delegou a outrem. Também nesta questão, devemos nos manter firmes na "sincera e pura devoção a Cristo".


3) Tenhamos claro também que não existe sacrifício pelo pecado exceto o sacrifício único de Cristo na cruz. Não ouça nem por um momento aqueles que dizem que há algum tipo de sacrifício na Ceia do Senhor, alguma repetição da oferta de Cristo na cruz ou alguma oferta de Seu corpo e de Seu sangue sob a forma do pão e do vinho consagrados. O sacrifício pelos pecados que Jesus Cristo ofereceu foi único, perfeito e completo e não passa de uma blasfêmia o querer repeti-lo, "porque, por meio de um único sacrifício, Ele aperfeiçoou para sempre os que estão sendo santificados" (Hb 10.14). Nesta questão, devemos nos manter firmes em nossa "sincera e pura devoção a Cristo".


4) Tenhamos claro que não existe outra regra de fé nem outro juiz nas controvérsias doutrinárias que aquele ao qual Cristo sempre mencionou: a Palavra escrita de Deus. Não deixemos que nenhum homem perturbe nossas almas com expressões vagas como "a voz da Igreja, a Antiguidade primitiva, o julgamento dos primeiros Pais" e esse tipo de discurso grandiloquente. Que o nosso único padrão da Verdade seja a Bíblia, a Palavra escrita de Deus. O que diz a Escritura? O que está escrito na Lei? Como você lê? À Lei e ao testemunho! Estudem cuidadosamente as Escrituras! (veja Rm 4.3; Lc 10.26; Is 8.20; Jo 5.39). Nesta questão, devemos nos manter firmes na "sincera e pura devoção a Cristo".


5) Tenhamos claro que não há outros meios de graça na Igreja que tenham autoridade além dos meios conhecidos que Cristo e os Apóstolos nos deixaram. Consideremos com o maior zelo as cerimônias e rituais de origem humano quando se lhes outorga tão exagerada importância a ponto de as coisas de Deus ficarem relegadas a um segundo plano. As ideias humanas tendem invariavelmente a suplantar os decretos de Deus. Vigiemos para que a Palavra de Deus não seja substituída por vãs invenções humanas. Nesta questão, devemos nos manter firmes em nossa "sincera e pura devoção a Cristo".


6) Tenhamos claro que não pode ser verdadeiro nenhum ensino a respeito dos sacramentos que atribua aos mesmos um poder que Cristo não menciona. Tenhamos cuidado para não admitir que o batismo e a Ceia do Senhor possam conferir graça ex opere operato, isto é, por meio da mera ministração externa, independentemente do estado do coração daqueles que os recebem. Precisamos lembrar que a única prova de que as pessoas batizadas e os comungantes têm a graça de Deus é a demonstração dessa graça em suas vidas. O fruto do Espírito é a única prova de que nascemos do Espírito e estamos unidos a Cristo, e não a mera recepção dos sacramentos. Nesta questão, devemos nos manter firmes em nossa "sincera e pura devoção a Cristo".


7) Tenhamos claro também que nenhum ensino a respeito do Espírito Santo é correto a menos que concorde com o ensino de Jesus Cristo. Não devemos ouvir aqueles que asseveram que o Espírito Santo habita realmente em todas as pessoas batizadas, sem exceção, em virtude unicamente de seu batismo, e que a única coisa que deve ser feita é "fomentar" a graça nessas pessoas. O ensino simples e direto de nosso Senhor é que o Espírito Santo habita unicamente naqueles que são Seus discípulos fiéis e que o mundo não conhece, não vê, nem pode receber o Espírito Santo (cf. Jo 14.17). Sua presença interior é um privilégio dos cristãos, e somente deles. Nesta questão, devemos manter firmes a nossa "sincera e pura devoção a Cristo".


8) Por último, tenhamos claro que nenhuma doutrina pode ser sã se não apresentar a Verdade de forma equilibrada, como fizeram Cristo e os Apóstolos. Evitemos qualquer ensino que enfatize exageradamente a exaltação à Igreja, ao ministério ou aos sacramentos, enquanto grandes verdades como o arrependimento, a fé, a conversão e a santificação são colocadas em lugares inferiores e subordinadas a ritualismos estéreis. Compare tal doutrina com aquela dos Evangelhos, de Atos dos Apóstolos e das Epístolas. Analise os textos, faça seus cálculos. Perceba quão pouco é dito no Novo Testamento a respeito da Igreja, do batismo, da Ceia do Senhor e do ministério, e então julgue você mesmo quais são as proporções na Verdade. Também nesta questão, repito mais uma vez, devemos nos manter firmes em nossa "sincera e pura devoção a Cristo".


A simples e pura doutrina de Cristo é, pois - sem acréscimos, subtrações ou substituições - a meta à qual devemos almejar. Esse é o ponto do qual devemos evitar qualquer desvio. Podemos melhorar a doutrina de Cristo? Somos mais sábios do que Ele? Podemos crer que Ele deixou de lado alguma coisa importante e que a mesma foi trazida à tona pelas tradições humanas? Arrogamos a nós mesmos o direito de mudar ou corrigir algum decreto de Cristo? Temos consciência de que não devemos declarar como necessária para a salvação coisa alguma que Cristo não tenha ensinado? Precisamos nos precaver de tudo o que possa nos desviar de nossa "sincera e pura devoção a Cristo".


A pura verdade é que nunca será excessivo exaltar o Senhor Jesus Cristo como o Cabeça da Igreja e Soberano sobre todas as coisas, Senhor dos decretos e Salvador dos pecadores. Creio que todos falhamos aqui. Não compreendemos que Rei tão excelso, grande e glorioso é o Filho de Deus e quanta lealdade - lealdade absoluta - devemos a Aquele que não delegou nenhum de Seus ofícios nem deu Sua glória a nenhum outro. Vale a pena lembrar as solenes palavras que John Owen dirigiu à Casa dos Comuns num sermão sobre a grandeza de Cristo. Receio que a Casa dos Comuns ouça poucos sermões como esse na atualidade:


"Cristo é o caminho: os homens sem Cristo são como Caim, errantes pelo mundo. Cristo é a Verdade: sem Ele, os homens são enganadores tal como o diabo, desde a antiguidade. Cristo é a vida: sem Ele, os homens estão mortos em delitos e pecados. Cristo é a luz: sem Ele, os homens estão em trevas e não sabem para onde vão. Cristo é a videira: os homens que não estão em Cristo são ramos cortados e preparados para o fogo. Cristo é a rocha: os homens que não estão construídos sobre Ele serão arrastados pelas torrentes. Cristo é o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o Autor e o Consumador, Aquele que começa e Aquele que conclui a nossa salvação. Quem não tem a Cristo, não possui o princípio do bem, e sua infelicidade não terá fim. Oh, bendito Jesus, seria melhor não existir do que existir sem Ti! Melhor não nascer do que morrer sem Ti! Mil infernos não são piores do que a eternidade sem Ti!"


E agora concluirei este artigo oferecendo alguns conselhos a meus leitores. Não os ofereço como alguém que tem um pouco de autoridade, mas como alguém que deseja afetuosamente fazer o bem a meus irmãos. Os ofereço como conselhos que considero úteis para a minha própria alma e que, por isso, aventuro-me a pensar que podem ser úteis para todos.


1) Em primeiro lugar, se desejamos evitar cair na falsa doutrina, precisamos equipar nossas mentes com um profundo conhecimento da Palavra de Deus. Devemos ler nossas Bíblias do princípio ao fim diariamente e com diligência, esforçando-nos para nos familiarizar com seu conteúdo, em constante oração, pedindo ao Espírito Santo que nos ensine. O desconhecimento da Bíblia é a raiz de todos os erros, e um conhecimento superficial da mesma explica muitas das tristes perversões e deserções da atualidade. Numa época de pressa e correria, de estradas de ferro e telégrafos, estou firmemente persuadido de que muitos cristãos não dedicam tempo suficiente à leitura diária das Escrituras. Estou certo de que há 200 anos atrás os ingleses conheciam melhor a Bíblia do que hoje. A consequência é que muitos são como crianças, levados daqui para lá por qualquer vento de doutrina, presas fáceis de qualquer mestre inteligente do engano. Rogo a meus leitores que lembrem este conselho e atentem para o rumo de suas vidas. É certíssimo que somente o bom estudante do texto bíblico será um bom teólogo e que a familiaridade com os textos essenciais da Bíblia é, como nosso Senhor demonstrou na tentação, a melhor das salvaguardas contra o erro. Procure equipar-se, portanto, com a espada do Espírito e treine suas mãos para utilizá-la. Sou muito consciente de que não existe um caminho fácil para o conhecimento da Bíblia. Sem diligência e esforço ninguém chega a ser "poderoso nas Escrituras". "A justificação" - disse Charles Simeon - "é pela fé, mas o conhecimento da Bíblia vem pelas obras". Mas de uma coisa estou certo: não há trabalho que seja melhor recompensado do que um estudo diário e esforçado da Palavra de Deus.


2) Em segundo lugar, se desejamos manter um caminho reto como ministros do Evangelho nos tempos em que vivemos, conheçamos profundamente os Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra. Esses artigos são a confissão autorizada de nossa igreja, e a verdadeira prova que todo aspirante a clérigo deveria submeter-se. Como a Confissão de Fé de Westminster, nossos Trinta e Nove Artigos são uma barreira eficiente contra a tendência atual de voltar ao catolicismo romano.


3) O terceiro e último conselho que desejo oferecer é o seguinte: precisamos nos familiarizar profundamente com a História da Reforma. Nossa história tem sido injustamente esquecida e milhares de ministros do Evangelho têm, hoje, uma noção muito pobre de tudo quanto devemos aos reformadores. Muitos pagaram com o martírio para que hoje possamos ser uma igreja livre. É preciso ter um conceito claro sobre a situação de trevas e superstição na qual viviam nossos antepassados e sobre a luz e a liberdade que foram introduzidas pela Reforma. Devido ao desconhecimento da História, sofremos hoje com movimentos favoráveis ao catolicismo romano e ideias ingênuas e pueris sobre a verdadeira natureza do papado. É hora de mudar as coisas. A origem de grande parte da apatia atual com respeito à romanização da Igreja pode ser encontrada na mais crassa ignorância tanto sobre a verdadeira natureza do papismo quanto sobre a História da Reforma Protestante.


A ignorância, depois de tudo, é uma das melhores amigas das falsas doutrinas. O que qualquer época precisa é de mais luz. Multidões são extraviadas pelo papismo ou caem na incredulidade por pura falta de leitura e informação. Repito uma vez mais: se os homens estudassem com atenção a Bíblia, as confissões de fé e a História da Reforma, não temeriam que suas mentes fossem corrompidas e se desviassem da sincera e pura devoção a Cristo.


John Charles Ryle (1816-1900), "um homem de granito, com o coração de uma criança", foi o primeiro bispo de Liverpool, escritor prolífico e defensor do caráter protestante da Igreja da Inglaterra. Mais de 100 anos depois de sua morte, seus escritos ainda falam poderosamente aos cristãos da atualidade. 


Fonte: RYLE, J. C. Advertencias a las Iglesias. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2003, pp. 114-131.


Traduzido do espanhol por Fábio Vaz.