Com grande alegria apresento a tradução do Capítulo 2 do livro Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo histórico: lo que es y lo que implica, publicado na Espanha por Editorial Peregrino, onde vários autores discorrem sobre a fé reformada no contexto contemporâneo.
Por ANDREW J. BIRCH.
E
no tocante à religião, mais precisamente à religião cristã, quem tem a “última
palavra”? Apesar das pretensões de infalibilidade por parte de alguns, por que
um teólogo seria mais infalível do que qualquer outro especialista? Talvez um
teólogo saiba mais sobre religião do que as outras pessoas, mas isso não lhe
confere uma auréola de infalibilidade: ele também pode se enganar, ser
suscetível como os demais mortais à influência, sempre poderosa, do ensino que
teve, do seu modo peculiar de ver as coisas, das limitações de sua mente
finita, etc. Aqui, como em tudo o mais, devemos buscar a última palavra não nas
pessoas, mas no que está escrito. E para o cristão, “o que está escrito”
significa “as Escrituras Sagradas” (cf. 2Tm 3.15). Essa Palavra “inspirada por
Deus” (2Tm 3.16, literalmente “Deus-expirada”, isto é, soprada por Deus – não
“inspirada”, como querem nossos tradutores traditores,
mas sim expirada por Deus), e
revelada por meio de “homens (...) impelidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21).
Aquilo em que creem todos os cristãos
Devemos
ter em mente que todos os verdadeiros cristãos estão de acordo sobre a maioria
dos ensinos bíblicos, como a inspiração divina das Escrituras; a doutrina da
Trindade e a perfeição do único Deus verdadeiro em tudo o que Ele é e em tudo o
que Ele faz; a divindade e a humanidade plenas do Filho de Deus; a
personalidade e a obra do Espírito Santo; a Queda do homem no pecado e suas
graves consequências para toda a raça humana; a total incapacidade do homem de
salvar-se a si mesmo; a encarnação, a vida perfeita, a morte expiatória, a
ressurreição corporal, a ascensão, a intercessão e a gloriosa vinda futura do
Senhor Jesus Cristo; a salvação somente pela graça de Deus, somente por meio do
Senhor Jesus Cristo, e recebida pelo homem somente por meio da fé em Cristo; a
realidade do Céu e do Inferno como únicos e definitivos destinos
respectivamente para os verdadeiros crentes e para os descrentes. Essa lista é
bastante longa, mas não pretendemos que esteja completa. O que pretendemos,
sim, é que ao tratar de assuntos sobre os quais não existe unanimidade perfeita
entre os cristãos, não percamos de vista aqueles sobre os quais todos os
verdadeiros cristãos creem em união.
As Doutrinas da Graça
Com
esse nome (entre outros) se resume um modo de entender a Bíblia em geral e o
plano divino de salvação em particular.
Muitos
cristãos creem que Deus deixou a decisão de crer em Cristo ou não à livre
escolha de cada pessoa, sem que Ele mesmo exerça influência alguma sobre quem quer
que seja. Os que creem desse modo dizem que na Pessoa e na obra de Cristo, Deus
tornou possível a salvação de todos
os seres humanos; que a vontade de Deus é dar a oportunidade de salvação a todo
o mundo; e que o destino de cada pessoa depende da decisão que cada um deve
tomar em resposta à mensagem do Evangelho.
Mas
há outros cristãos que creem que o papel de Deus na salvação é muito mais ativo
e decisivo: que Ele decidiu desde a “eternidade passada” escolher aqueles que
iria salvar e aqueles que não salvaria; que quando enviou Seu Filho ao mundo,
não foi para “tornar possível” a salvação de todo o mundo, mas sim para efetuar a salvação daqueles que Ele
escolheu para serem salvos; e que Ele fará que, pela obra do Espírito Santo,
sejam salvos infalivelmente todos os Seus escolhidos (ou eleitos, na linguagem
bíblica).
Os
que sustentam a primeira dessas posturas levantam algumas objeções à segunda
postura, objeções que eles pretendem estar baseadas no ensino bíblico. Essas
objeções poderiam ser classificadas de muitas maneiras, mas todas elas têm a
ver ou com a liberdade do homem ou com o caráter de Deus. Vamos considerá-las a
seguir.
A LIBERDADE DO HOMEM
Livres por criação
“Por
acaso Deus não criou o homem livre para escolher?”
Efetivamente,
Deus criou o homem livre para escolher. De fato, o primeiro homem, Adão, antes
da Queda, teve uma liberdade mais absoluta que a que foi tida desde então por
qualquer outro ser humano. Antes de ser pecador, Adão era livre para escolher o
bem ou o mal, obedecer a Deus ou não obedecer.
No
entanto, se Deus criou o homem livre, a Queda o tornou um escravo! Falar como
se o homem depois da Queda fosse mais
ou menos igual que antes dessa Queda é ignorar as terríveis consequências da
maior tragédia de toda a História do mundo.
A
Queda afetou – negativamente, é óbvio! – tudo o que o homem é: sua vida física,
sua mente, suas emoções, sua vontade, suas relações e, é claro, sua situação
espiritual. Reconhecer esse fato não é negar a continuação, depois da Queda, da
imagem de Deus no homem, nem minimiza a assombrosa realidade da “graça comum”
que é derramada igualmente sobre todos os homens (a qual inclui a restrição do
pecado), nem requer ir tão longe a ponto de negar que o homem seja livre hoje
em nenhum sentido da palavra. Somente afirmamos aqui que a Queda afetou o homem
em todos os aspectos, inclusive em sua liberdade de escolha.
A
partir da Queda, o homem tem uma clara tendência para o pecado. É concebido e
nasce em pecado (Sl 51.5). “A insensatez está ligada ao coração da criança” (Pv
22.15). Poucas gerações depois da Queda, o Senhor viu que “a perversidade do
homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu
coração era sempre e somente para o mal” (Gn 6.5). É claro que essa descrição
refere-se ao homem em seu ponto mais baixo de degradação, mas também demonstra
até onde nos leva o “pecado original”, e como seríamos todos se não existisse a
“graça comum” de Deus, que freia o pecado. Os escritores inspirados dos livros
bíblicos empregaram um vasto leque de palavras para descrever os diferentes
aspectos do pecado humano. O pecado é, entre outras coisas, “errar o alvo”,
“passar dos limites”, “rebeldia” (contra a soberania de Deus), “perversidade”
(isto é, inverter os valores de Deus), etc. E quando o Apóstolo Paulo, na
primeira parte de sua epístola aos crentes de Roma, deseja demonstrar que tanto
judeus quanto gentios necessitam do Evangelho, não lhe faltam evidências
bíblicas a respeito da tendência natural de todos os seres humanos (Rm 1.18-32;
2.17-24; 3.9-20)! E mais, a Bíblia descreve o homem em sua condição natural
como um escravo do pecado (Jo 8.34; Rm 6.17,20; 2Pe 2.19; etc)! É difícil ver
os que são “escravos do pecado” podem ser considerados livres para escolher o
bem ou a salvação! A única liberdade que tem um “escravo do pecado” é a
liberdade para continuar servindo ao seu mestre, o pecado, e para rejeitar o
Evangelho de Cristo!
Segundo
a Bíblia, a Queda não somente deixou os seres humanos afetados pelo pecado e escravos
do pecado; também os deixou espiritualmente
mortos! Quem crê na Bíblia não pode negar esse fato. O Apóstolo Paulo deixa
isso bem claro em Efésios 2, onde não somente afirma, mas também repete: “Vocês
estavam mortos em suas transgressões e pecados” (v. 1); “quando ainda estávamos
mortos em transgressões” (v. 5). Para Paulo, ele mesmo e seus irmãos na fé,
antes de experimentar o poder regenerador de Deus, haviam estado
espiritualmente mortos. Isto não deveria nos surpreender, afinal de contas,
Deus disse a Adão, falando sobre a árvore do conhecimento do bem e do mal: “no
dia em que dela comer, certamente você morrerá” (Gn 2.17). A advertência do
Senhor foi cumprida, pois não somente começou o processo de morte física no
mesmo dia em que Adão e Eva caíram em pecado, mas também naquele mesmo dia eles
morreram em outro sentido, no sentido espiritual. Sua desobediência matou sua
inocência e interrompeu sua comunhão com Deus. Por isso, ao longo do Novo
Testamento ouvimos falar da salvação em termos de “nova vida”, de um “nascimento
espiritual”, de uma “nova criação”, etc. Como diz o Apóstolo João: “já passamos
da morte para a vida” (1Jo 3.14).
No
entanto, apesar desse ensino claro da Palavra de Deus, muitos cristãos, com
toda probabilidade assentindo ao ensino bíblico de modo geral, parecem no
entanto contradizer as Escrituras na prática, ao insistir em que uma pessoa
espiritualmente morta possa efetuar a sua própria vivificação espiritual: que
alguém espiritualmente morto possa entender a mensagem do Evangelho; que possa
perceber que essa mensagem é verdadeira; que possa crer em Cristo; que possa se
arrepender de seus pecados; etc – e tudo isso sem nenhum tipo de intervenção
divina, já que isso nos faria voltar ao problema de por que Deus não intervém
do mesmo modo em todos!
É
preciso evitar dois erros a respeito da Queda do homem no pecado, dois extremos
opostos: primeiro, o erro de exagerar as consequências daquela trágica Queda,
afirmando que a imagem de Deus no ser humano foi completamente perdida (não
foi), ou que faculdades humanas relevantes como a inteligência, a consciência,
a vontade, etc, foram totalmente aniquiladas (não foram). Em segundo lugar, o
erro de tirar da Queda seus terríveis efeitos: desde então, todo ser humano que
é concebido (com a única exceção do Deus-homem, é claro) já é, em sua condição
natural, alguém afetado pelo pecado, escravo do pecado, e morto no pecado.
Negar tal condição humana é negar o ensino bíblico. Nessa condição, a liberdade
do ser humano não é uma liberdade “neutra”, mas sim uma “liberdade”
escravizada!
Verdadeiramente livres
“Então,
o homem é uma espécie de marionete? Um mero fantoche?”
Muitos
crentes pensam que se Deus é soberano no sentido absoluto, e que se a vontade
de Deus é, no fim das contas, aquela que sempre prevalece, então mesmo que se
fale em liberdade humana, essa liberdade não é mais do que uma ficção cruel: o
homem não passa de uma simples marionete, um fantoche, nas mãos do Criador.
Essa
objeção, ainda que compreensível, não passa de uma caricatura da verdade. Claro
que a vontade de Deus sempre prevalece – se não fosse assim, Deus não seria
Deus, o universo seria um caos total e ninguém poderia ser salvo. Mas a
soberania absoluta de Deus não anula a realidade da liberdade humana.
Para
entender esse aparente paradoxo – que a vontade de Deus sempre prevalece e que
nem por isso a liberdade do homem deixa de ser verdadeira – a chave está em
reconhecer a inevitável falta de igualdade entre o Criador e a criatura, entre
Deus e o homem.
A
insistência na igualdade está em moda atualmente, e muitas vezes com boas
razões. A mulher não é inferior ao homem, nem as pessoas de um lugar são
inferiores a pessoas de outro lugar. Mas essa insistência na igualdade, tão
apropriada e tão importante entre os seres humanos, não pode ser aplicada em
relação a Deus e ao homem. Deus é totalmente diferente do homem e infinitamente
maior do que o homem. Além disso, Deus é o Criador do homem. O homem só existe
porque Deus o criou, e desde então Deus tem assegurado a sobrevivência e
preservação da espécie humana. Fazendo uso de uma metáfora bíblica, podemos
dizer que Deus é o grande Oleiro, e o homem é a argila em suas mãos. Por tudo
isso, não se pode igualar a liberdade do homem com a de Deus, nem a vontade do
homem com a vontade de Deus.
Não
obstante, não é lógico chegar à conclusão de que a liberdade humana, por não
ser absoluta como a liberdade divina, seja uma mera ficção. Como já foi dito,
na Queda o homem não perdeu nenhuma das características que o tornam humano e
que constituem a imagem de Deus: sua espiritualidade, sua responsabilidade
moral, sua inteligência, sua criatividade, sua necessidade de relacionar-se,
sua mordomia sobre a criação, etc. Todas essas características foram afetadas,
danificadas, pelo pecado, mas nenhuma delas foi totalmente perdida. Em outras
palavras, apesar da Queda, o homem continua “funcionando” como homem, em seu
pensar, em seu sentir, e em seu fazer.
Isso
pode ser visto em todos os aspectos da vida: em circunstâncias normais, não
temos, nunca, a impressão de que nós e as pessoas ao nosso redor são meros
robôs! A cada dia temos à nossa disposição milhares de provas da humanidade do
homem, daquilo que nos torna diferentes de todos os demais seres que existem.
E
a mesma coisa pode ser vista também na esfera da fé. Deus realiza Seu plano de
salvação não com a força esmagadora de um rolo compressor, mas com a elegância
e a beleza de um artista, transformando os aparentes obstáculos do caminho em
degraus para o destino desejado, enquanto Ele opera não de modo independente da
vontade humana, mas através dela. Quando alguém experimenta a conversão, o que
acontece? Nós percebemos o que acontece exteriormente: a pessoa ouve o
Evangelho, crê e se converte. Nesse processo todas as faculdades da pessoa
estão em pleno funcionamento: seus ouvidos, sua mente, seu coração e sua
vontade. Quem se converte não é uma coisa, é uma pessoa. Mas a Bíblia nos
explica todo esse processo de outra perspectiva também: nos fala de Deus, nos
descreve o papel do Espírito Santo, iluminando, convencendo, regenerando,
vivificando; nos revela outra vontade, além da vontade da pessoa humana, também
operando: a vontade soberana de Deus. O “mérito” da salvação é atribuído
unicamente a Deus, não ao homem, e os que são verdadeiramente salvos não têm
nenhuma dúvida a respeito. Mas Deus não nos salva independentemente de nossas
faculdades humanas, mas através delas.
E
o que acontece com os que se perdem? Exatamente o mesmo, mas com resultado
oposto. A pessoa em questão atua do princípio ao fim como tal, utilizando todas
as suas faculdades humanas, mas neste caso rejeita o Evangelho e não se
converte. Qual é a diferença mais evidente entre os dois casos? É, no segundo
caso, a ausência da obra do Espírito
Santo. E essa ausência indica uma diferença na vontade soberana de Deus:
aqui, Deus não age, não intervém; simplesmente deixa o morto continuar morto. É
por isso que nós, cristãos, oramos a Deus pela conversão de outras pessoas.
Sabemos pela Bíblia e também pela nossa própria experiência de salvação, que é
Ele quem vivifica os mortos espirituais.
Mas
em qual desses casos a vontade do homem não funciona? Ora, funciona em ambos os
casos. Só que a vontade do homem, mesmo que real, presente e ativa, não está
fora do âmbito governado pela vontade de Deus, mas sim dentro desse âmbito.
Deus é a “causa primária”, o homem e sua vontade constituem uma “causa
secundária” que também é uma causa real, mas não é outra “causa primária” como
Deus, como se fosse outra paralela à vontade d’Ele. E a Bíblia ensina que Deus
é a “causa primária” de tudo o que acontece. E isso por três razões em
particular:
1.
Porque Deus é eterno, e não há nenhum outro ser nem nenhuma outra coisa que o
seja, no sentido de não haver tido um princípio. Houve um “tempo” em que
somente Deus existia. Portanto, na cadeia de causas e efeitos que tem havido
desde quando somente existia Deus, a causa primária teve de ser Deus.
2.
Porque Deus foi, e continua sendo, o Criador. A Bíblia ensina que Deus, além de
ser eterno, é um ser pessoal infinitamente inteligente e poderoso, e que criou
o universo e deu origem a tudo o que se pode denominar “vida”.
3.
Pela vontade soberana de Deus: Deus nada faz sem ter um propósito e, desde
antes da criação do universo, decidiu dirigir tudo o que acontece para o
cumprimento de seu infalível propósito.
Portanto,
nesses três sentidos, Deus, segundo a Bíblia, é a causa primária de tudo.
Mas
é preciso esclarecer que Deus é a “causa primária” não no sentido de ser o autor direto de tudo. O exemplo mais
claro disso é o pecado. Deus não é, nem pode ser, o autor do pecado. Deus é
perfeitamente santo, odeia o pecado e jamais poderia pecar nem induzir ninguém
a pecar. Mas ao mesmo tempo, o fato do pecado existir não significa que Deus
não esteja no controle de tudo o que acontece: Ele está, e em Seu plano eterno,
concebido pela Sua infinita sabedoria e executado por Seu infinito poder, Ele
faz com que até mesmo o pecado sirva para o Seu triunfo final.
Livres e responsáveis
“Se
o homem não é livre, também não pode ser responsável.”
Nos
tribunais organizados após a Segunda Guerra Mundial, um dos argumentos
utilizados pela defesa dos oficiais alemães acusados de crimes hediondos foi
que somente haviam cumprido as ordens de seus superiores. Alegaram que não
haviam tido escolha, que não haviam tido liberdade, e portanto não poderiam ser
responsabilizados pelas atrocidades que haviam cometido.
A
defesa daqueles soldados é parecida com o ataque de alguns “crentes” contra a
doutrina bíblica da predestinação. Dizem que Deus não pode (no sentido moral do
termo) responsabilizar pelos seus pecados a pessoas que, por razões alheias à
sua própria vontade, foram constituídas pecadoras pela desobediência de seus
primeiros pais (Rm 5.12-21), nem pode responsabilizar as pessoas que rejeitam o
Evangelho porque Ele mesmo não as predestinou para a salvação. Para que possa
nos responsabilizar, precisamos ser verdadeiramente livres, no sentido
absoluto.
Mas
esse argumento tem, pelo menos, dois pontos fracos:
Em
primeiro lugar, mesmo que não gostemos da doutrina bíblica do pecado original,
ainda assim não somos autênticos “santos” obrigados a pecar por culpa de Adão e
Eva, e contra nossa própria vontade! De fato, nossa própria vontade – aquilo
que nós verdadeiramente queremos fazer – é precisamente pecar! Assim como Deus
não obrigou Adão e Eva a pecar, ninguém fora de nós mesmos nos obriga a pecar.
Pecamos porque queremos, porque somos assim. E sabemos disso pela nossa
experiência diária; é a nossa própria vontade que não quer fazer aquilo que
sabemos que Deus quer que façamos. É nossa própria vontade que deseja fazer
aquilo que sabemos que Deus não quer que façamos. Em outras palavras, o inimigo
não está fora de nós – nós somos o nosso inimigo! A maioria daqueles oficiais e
soldados alemães foi condenada à morte, apesar de alegar não ser responsável
por seus crimes de guerra. Nós, por outro lado, quando pecamos, ainda que
(muitas vezes) sabendo perfeitamente o que estamos fazendo, normalmente não
temos ninguém ao nosso lado, nos apontando uma metralhadora, nos obrigando a
fazer aquilo que não queremos fazer! Não, a verdade é que o homem deseja pecar,
quer pecar. Sabemos muito bem disso.
Em
segundo lugar, a ideia de que não poder evitar fazer algo significa,
necessariamente, não ser responsável pelos seus atos, é uma falácia. Porque nós
mesmos somos culpados da causa de nossa impotência. Como exemplo, vamos supor
que um jovem decida experimentar algumas drogas. Quando toma essa decisão, ele
o faz livremente: ainda não é um viciado. Mas o que começa como uma simples
experiência em busca de prazer, ou como uma fuga de alguma realidade difícil de
enfrentar, logo acaba se tornando um vício incontrolável. E o vício leva ao
crime, especialmente ao roubo: é preciso buscar meios para satisfazer as
demandas do vício. Então, quando o jovem, já viciado, decide roubar para manter
seu vício, deve ser considerado responsável pelos seus atos, ou não? Se é pego
roubando, deve ser solto porque como viciado não pode ser considerado
responsável pelos seus atos? E o alcoólatra que bate em sua mulher? Já que o
álcool privou sua liberdade de escolha, não pode ser responsabilizado pelas
consequências de seu alcoolismo? [Nota do tradutor: Ah! É uma tragédia que no
Brasil essa maldita filosofia pseudo-humanitária esteja triunfando cada vez
mais! Só falta as autoridades darem uma medalha de honra para os viciados, os
pedófilos, os malfeitores, e todos os canalhas deste país! “Coitadinhos, são
vítimas do sistema!” Maldita sociedade que transforma os criminosos em vítimas,
e trata as vítimas e as famílias das vítimas como criminosos!]
O
fato é que às vezes cometemos erros que debilitam, ou mesmo paralisam, nossa
capacidade de fazer uma série de coisas. Mas nem por isso deixamos de ser
responsáveis diante de Deus: Ele não nos criou assim – nós nos tornamos assim.
Foram nossos primeiros pais quem livremente decidiram desobedecer seu Criador.
E somos nós quem tomamos decisões equivocadas, às vezes por falta de sabedoria,
às vezes por motivações mesquinhas, etc. Por nossa própria culpa, somos menos
livres do que éramos no princípio, e menos livres do que deveríamos ser, mas
não somos menos responsáveis.
Livres para crer?
“Por
acaso a Bíblia não diz que podem ser salvos todos os que quiserem?”
Sem
dúvida, há um sentido em que isso é correto. Para começar, Deus chama todas as
pessoas do mundo inteiro para que sejam salvas. Ele o fez através de profetas
como Isaías: “Voltem-se para mim e sejam salvos, todos vocês, confins da terra”
(Is 45.22). O Senhor Jesus Cristo enviou a Seus discípulos para pregar o
Evangelho “a todas as pessoas” (Mc 16.15), e quando eles o fizeram, disseram
coisas como: “Salvem-se desta geração corrompida!” (At 2.40). De fato, Deus
“ordena que todos, em todo lugar, se arrependam” (At 17.30). E o Senhor Jesus
Cristo fez uma afirmação que deveria encher de ânimo qualquer pessoa que
quisesse ser salva: “Quem vier a mim eu jamais rejeitarei” (Jo 6.37).
E
se tudo isso ainda fosse pouco, há na Palavra de Deus convites ainda mais
explícitos que claramente dão a entender que podem ser salvos todos aqueles que
desejam a salvação. O livro de Apocalipse termina com um desses convites: “Quem
tiver sede, venha; e quem quiser,
beba de graça da água da vida” (Ap 22.17).
Portanto,
quem pode ser salvo? Quem quiser ser salvo. A questão é: quem quer ser salvo? Essa pergunta pode parecer até ridícula. “Quem
não quer ser salvo?” Evidentemente, se fosse possível demonstrar de modo
irrefutável a todos a sua condição diante de Deus, o grande perigo da
condenação ao Inferno, e a urgente necessidade de salvação, até mesmo os ateus
convictos, que nem ao menos consideram a existência de Deus, se aferrariam a
qualquer coisa, mesmo em algo que jamais acreditariam em qualquer outra
circunstância, para safar-se da terrível situação. Mas essa não é a questão, nem
é a verdadeira situação do homem incrédulo. A verdadeira questão é: que homem
ou mulher, na condição espiritual na qual a Bíblia nos assegura que está todo
ser humano sem Cristo, realmente quer aceitar tudo o que diz a Palavra de Deus,
reconhecer a si mesmo como pecador, abandonar qualquer confiança em si mesmo e
em suas próprias obras e esforços, e humilhar-se diante de Deus, clamando por
misericórdia? Quem quer ser salvo
nesse sentido? O próprio Senhor Jesus Cristo deu a resposta, quando disse:
“Contudo, vocês não querem vir a mim
para terem vida” (Jo 5.40). E disse a Jerusalém: “Quantas vezes eu quis reunir
os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos, debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram!” (Lc 13.34). Ele
quis, mas eles não quiseram.
Talvez
alguém possa pensar que não é como aqueles judeus dos tempos de Jesus, que é
diferente, que quer sim ser salvo. Mas se pensarmos assim, não perceberemos o
poder que o pecado tem sobre toda a humanidade. Quando o Apóstolo Paulo, em
Romanos 6, lembra os cristãos de Roma da grande mudança que Deus havia efetuado
em suas vidas, descreve a terrível escravidão em que se encontravam antes, da
qual agora haviam sido libertados (Rm 6.17-22). E a vontade e os desejos são
parte daquilo que – até a maravilhosa libertação que traz o Espírito Santo –
está debaixo do domínio do pecado. Insisto, não se trata de uma escravidão contrária à nossa vontade, mas sim de
uma escravidão da nossa vontade:
gostamos do pecado, muitas vezes desfrutamos dos sórdidos prazeres que o pecado
nos proporciona, e a triste verdade é que no fundo não queremos deixar o
pecado.
Se
somos cristãos, sabemos que isso é verdade, porque agora podemos olhar para
trás e ver o que o Senhor tem feito em nossas vidas. Há um antes e um depois, e
sabemos perfeitamente que essa mudança somente pode ter sido efetuada por Deus,
e não por nós mesmos, pelo nosso próprio esforço. Sabemos que Ele, o Senhor,
mudou, entre outras coisas, a nossa vontade, submetendo-a finalmente à Palavra.
Certamente no passado estivemos lutando contra a verdade, mas afinal o Senhor
nos venceu! E por isso agora, em vez de exaltarmos a nós mesmos por termos sido
tão inteligentes a ponto de mudar de opinião, de vontade e de coração, damos
toda a glória a Deus porque Ele, e somente Ele, fez tudo isso em nós e por nós!
Éramos livres, antes, para escolher a salvação? Não, sabemos que não éramos.
Sabemos que éramos livres somente para continuar viciados em pecado. Sabemos
que Deus irrompeu em nossas vidas, nos transformando por completo – mente,
coração, vontade, tudo! – e que é graças a Ele, e não a uma suposta liberdade
de escolha da nossa parte, que agora somos verdadeiramente livres.
Livres para rejeitar
“Os
que rejeitam o Evangelho o fazem livremente, ou são obrigados por Deus para
fazê-lo?”
Há
quem diga que se Deus somente predestinou alguns para a salvação, na prática é
como se aos “não predestinados” Deus não somente não lhes desse a oportunidade
da salvação, mas que também os obrigasse a rejeitar o Evangelho.
Mas
Deus nunca obriga ninguém a fazer nada que não seja bom. Não obrigou Adão e Eva
a desobedecê-Lo: se tivesse feito isso, seria o autor direto do pecado, o qual
é totalmente inadmissível à luz da perfeita santidade de Deus. Não obrigou
Judas Iscariotes a trair Jesus: sim, estava profetizado que a traição
aconteceria, mas Judas foi responsável pelo que fez – pensou, decidiu,
planejou, compactuou com os líderes religiosos, escolheu o momento adequado e o
fez. Em cada parte do processo estiveram funcionando todas as faculdades
humanas de Judas. Não foi hipnotizado por Deus, nem induzido por Deus! Deus
jamais obrigará alguém a pecar. Ele odeia, com todo o Seu Ser, o pecado! Ele
também não obriga as pessoas a rejeitarem o Evangelho, ou a rejeitarem Seu
Filho, o Senhor Jesus Cristo.
Acontece
que não é necessário que Deus faça alguma coisa para que alguém rejeite o
Evangelho. Nós fazemos isso sem nenhuma ajuda externa! Para que rejeitemos o
Evangelho, Deus não precisa fazer nada além de nos deixar sozinhos, deixar que
façamos simplesmente aquilo que queremos fazer, aquilo que fazemos simplesmente
por ser como somos. Nada mais natural para uma pessoa que ama o pecado, que
está espiritualmente morta e que encontra-se em inimizade contra Deus, do que
rejeitar o Filho de Deus. Foi exatamente isso o que os homens fizeram quando
Ele veio! É exatamente isso o que todos nós fizemos, porque afinal de contas
aquilo que as pessoas fisicamente presentes naquele momento da História fizeram
– Judas Iscariotes, os líderes religiosos, a multidão que gritou:
“Crucifica-o!”, Pôncio Pilatos, os soldados, etc – o fizeram pessoalmente, mas
também representando toda a raça humana, “em nome de todos”.
E
quando o Dia final chegar, todos os verdadeiros crentes em Cristo dirão:
“Senhor, todo o mérito da nossa salvação pertence a Ti”. E os descrentes dirão:
“Senhor, toda a culpa pela nossa condenação pertence a nós mesmos”. Ninguém
dirá naquele Dia: “Mas, Senhor, tu me obrigaste a ser pecador, me obrigaste a
rejeitar a salvação!”. Não, tal como disse o Apóstolo Paulo, ao falar do Juízo
Final e definitivo, então todos se calarão e estarão sujeitos ao juízo de Deus
(cf. Rm 3.19).
Livres para mudar?
“Assim
como o homem é livre para crer, também é livre para deixar de crer”.
A
ideia de que é possível perder a salvação está sendo cada vez mais rejeitada
pelos cristãos. Não obstante, ainda há muitos que acreditam nela, e, em certo
sentido, trata-se de uma ideia lógica quando se acredita que a liberdade humana
é absoluta. Se a decisão de aceitar o convite à salvação, ou de rejeitá-lo,
depende em última instância da vontade livre de cada pessoa, então pareceria
lógico chegar à conclusão de que é possível mudar de ideia e rejeitar a
salvação. Ou será que, paradoxalmente, a decisão de crer em Cristo para a salvação
marca o fim da liberdade espiritual humana? Se hoje sou livre para decidir
seguir a Cristo, não serei livre também amanhã, para deixar de segui-Lo? Somos
livres para entrar, mas não livres para sair?
A
ideia de que é possível perder a salvação tem, pelo menos, uma aparência de
base bíblica. Há na Bíblia exemplos de pessoas que parecem deixar de ser
verdadeiros crentes: o rei Saul; alguns diriam que o rei Salomão; Judas
Iscariotes; Demas (um dos companheiros do Apóstolo Paulo); etc. E o que Paulo
quis dizer quando escreveu: “Mas esmurro o meu corpo (...) para que (...) eu
mesmo não venha a ser reprovado” (1Co 9.27)? E Apocalipse 3.5 parece implicar a
possibilidade de que o nome de alguém seja “apagado” do livro da vida. Mas sem
dúvida as passagens bíblicas mais usadas por aqueles que creem na perda da
salvação são aquelas que tratam da apostasia, como Hb 6.4-6; 10.26ss; 2Pe
2.20-22; etc. O que se pode dizer diante disso? Os verdadeiros crentes são
livres para abandonar o Reino de Deus?
Quando
atinamos com a verdade ensinada em toda a Palavra de Deus, de que a salvação
não é uma mera decisão humana, mas sim uma obra de Deus, percebemos também que
tudo aquilo que Deus faz, o faz bem e o conclui. Isso é precisamente o que
ensina o Apóstolo Paulo em Fp 1.6: “Estou convencido de que aquele que começou
boa obra em vocês, vai completá-la até o dia de Cristo Jesus”. Quanto aos casos
citados no parágrafo anterior, em nenhum deles é necessário recorrer à ideia da
perda da salvação. Se o rei Saul morreu apóstata, é porque nunca foi um
verdadeiro filho de Deus. Se Salomão foi um verdadeiro crente, também o foi em
seus piores momentos. E não há nenhuma boa razão para pensar que Judas
Iscariotes, “aquele que estava destinado à perdição” (Jo 17.12), alguma vez
tenha sido um verdadeiro crente, ainda que durante mais de três anos pudesse
parecer ser como qualquer outro dos doze Apóstolos. Judas não mudou no final:
somente demonstrou ser o que sempre havia sido. Demas é um caso mais difícil:
como vamos concluir com certeza alguma coisa a respeito de alguém que é
mencionado somente em três breves versículos da Bíblia? Por outro lado, alguém
cujo “epitáfio” diz: “Demas, amando este mundo, abandonou-me” (2Tm 4.10) parece
cheirar mais a apostasia do que a qualquer outra coisa!
Quanto
a 1Co 9.27, esse aparente temor do Apóstolo Paulo de que ele mesmo pudesse ser
“reprovado”, as possíveis interpretações podem ser resumidas em três: 1) O
Apóstolo acreditava de verdade que poderia perder sua salvação; 2) O que ele
temia era somente que pudesse perder sua recompensa, seu galardão, e salvar-se
“como alguém que escapa através do fogo” (veja 1Co 3.10-15); e 3) Paulo fala
hipoteticamente, como se pudesse revelar-se um apóstata (não no sentido de
perder sua salvação, mas no sentido de nunca ter sido um crente de verdade).
Dessas
três interpretações a mais convincente, ao menos para mim, é a terceira, pelas
seguintes razões: 1) A primeira interpretação seria uma contradição não somente
do ensino bíblico como um todo, mas também da insistência do próprio Paulo em
todos os seus escritos, a respeito da segurança da salvação (Rm 8.28-39; 2Co
5.1-8; Fp 1.6,21-24; 2Tm 1.12; 4.8,18; etc). 2) É difícil entender como o medo
de ser “reprovado” possa significar somente o medo de perder seu galardão. 3) Há
outros textos nos quais Paulo parece falar de modo hipotético de sua própria
possível perdição (Rm 9.3; 2Co 13.7; etc). 4) A palavra grega para “reprovado”,
adokimos, aparece oito vezes no Novo
Testamento, e seu significado é exatamente esse, desqualificado, rejeitado,
recusado, indigno [1] (At 6.8; Rm 1.28; 1Co 9.27; 2Co 13.5,6,7; 2Tm 3.8; Tt
1.16). É uma palavra reservada para os apóstatas e demais não crentes, uma
palavra jamais utilizada para descrever os salvos em Cristo.
Não
deveria nos surpreender o fato de que o Apóstolo Paulo pudesse contemplar a
terrível possibilidade de que ele mesmo pudesse ser um reprovado. Considerar
isso não era outra coisa do que tomar ele próprio do “remédio” que receitava
para os outros crentes: “Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a
si mesmos. Não percebem que Cristo Jesus está em vocês? A não ser que tenham
sido [2] reprovados!” (2Co 13.5). Paulo era consciente de que outro Apóstolo,
antes dele, havia se revelado, finalmente, um apóstata. O auto-exame e a
consciência da gravidade dos muitos problemas espirituais aos quais todo crente
está exposto não são contraditórios ao fato de que a Bíblia ensina que a
salvação não se perde.
À
igreja de Sardes, o Senhor Jesus disse: “O vencedor será igualmente vestido de
branco. Jamais apagarei o seu nome do livro da vida, mas o reconhecerei diante
do meu Pai e dos seus anjos” (Ap 3.5). Pode parecer que uma das implicações
dessa frase é que o Senhor apagará, sim, do livro da vida, os nomes dos não
vencedores. No entanto, essa seria uma leitura superficial do texto, conforme
as seguintes considerações: 1) Se a Palavra de Deus ensina que a salvação não
se perde, Ap 3.5 não pode ensinar o contrário, porque a Bíblia não se
contradiz. Uma das normas da correta interpretação das Escrituras é que as
passagens difíceis devem ser interpretadas à luz de passagens mais claras e
fáceis. 2) A frase que o Senhor utiliza em Ap 3.5 é uma frase metafórica na
qual a ideia de apagar um nome do livro da vida é utilizada para transmitir a ideia
da perdição daquelas pessoas que não são verdadeiramente crentes. Há outros
exemplos desse uso metafórico, entre eles Ex 32.32,33: “Mas agora, eu te rogo,
perdoa-lhes o pecado; se não, risca-me do teu livro que escreveste. Respondeu o
SENHOR a Moisés: Riscarei do meu livro todo aquele que pecar contra mim”. Neste
contexto é claro que a ideia de riscar alguém de um livro é uma forma de
expressar a rejeição, sem nenhuma necessidade de que isso implique rejeitar e
condenar alguém antes aceito e salvo. 3) Afinal de contas, Ap 3.5 não diz que o
Senhor vai apagar do livro da vida o nome de quem quer que seja. O que o Senhor
diz, simplesmente, é que não vai
apagar do livro da vida o nome do vencedor, isto é, daquele que demonstre ser
crente até o fim. Parece um procedimento, no mínimo, duvidoso embasar uma
doutrina que contradiz a revelação divina, simplesmente devido a uma suposta
interpretação de um versículo do Apocalipse!
Então,
o que é “apostasia”? Com essa pergunta voltamos às passagens bíblicas
utilizadas pelos que defendem a perda da salvação, como Hb 6.4-6; 10.26ss; 2Pe
2.20-22; etc. Uma leitura superficial de Hb 6.4-6, por exemplo, poderia levar
alguém à conclusão de que ali está sendo ensinada a perda da salvação.
Menciona-se aqueles que “uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial,
[e] tornaram-se participantes do Espírito Santo, experimentaram a bondade da
palavra de Deus e os poderes da era que há de vir”... tudo isso parece ser uma
descrição dos verdadeiros crentes. No entanto, tais palavras poderiam muito bem
ser um resumo da biografia de Judas Iscariotes! Foi escolhido, junto com os
outros onze, dentre todos os discípulos de Jesus, para ser um Apóstolo [3].
Esteve três anos e meio vivendo com o Senhor e com seu círculo íntimo de
seguidores. Foi testemunha da vida perfeita e sem pecado do Filho de Deus. Não
somente viu os milagres de Jesus, mas participou de alguns deles, curando
enfermos e expulsando demônios! Que privilégio! Mas tudo isso serviu apenas
para aumentar sua condenação. Sim, Judas Iscariotes é o exemplo supremo da
apostasia descrita em Hb 6.4-6; 10.26ss; 2Pe 2.20-22; etc.
E
isso sem mencionar Hb 6.7,8. Quantas vezes os que defendem a perda da salvação
se esquecem de versículos como esses! A ilustração da apostasia que nos dá o autor
de Hebreus deveria ser o último prego no caixão da teoria da perda da salvação.
O apóstata, diz o autor, é como a terra que, depois de ser abençoada com chuva
em abundância, somente produz espinhos e ervas daninhas. Por acaso essa terra
representa o crente em Cristo Jesus?! É evidente que não. Representa, sim, o
cristão aparente, que, apesar de sua profissão de fé, não apresenta nenhuma
evidência de conversão. “Pelos seus frutos vocês os reconhecerão” (Mt 7.20).
Creio
que uma das principais razões pelas quais alguns creem que na perda da salvação
é devido ao conceito pobre e superficial que essas pessoas têm a respeito da
conversão. Se aceitam qualquer “movimento para o Evangelho” como sinal
infalível de uma conversão, não é estranho que caiam num dilema. Porque se a
pessoa em questão volta e se afasta do Evangelho, o que pensar? Que ela perdeu
sua salvação? Que continua sendo cristã? Ou que nunca se converteu? Claro que
uma confissão de fé aparentemente sincera deve ser motivo de alegria, porém é
uma atitude sábia “dar tempo ao tempo” e esperar pelos frutos que demonstram a
verdadeira conversão.
Devemos
ter em mente que quem salva é Deus, e aqueles que são salvos por Deus são
também guardados por Deus. Jesus Cristo disse: “As minhas ovelhas ouvem a minha
voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais
perecerão; ninguém as poderá arrancar da minha mão. Meu Pai, que as deu para
mim, é maior do que todos; ninguém as pode arrancar da mão de meu Pai”. É
difícil imaginar uma declaração mais contundente a respeito da segurança da
salvação!
Se
a salvação dependesse, em última instância, de nós mesmos, não somente poderia
ser perdida – nem ao menos poderia ser obtida! Mas como depende de Deus – do
Deus soberano cujos propósitos são infalíveis, do Deus Todo-Poderoso que pode
fazer tudo o que deseja, do Deus que sempre conclui aquilo que começa – nenhuma
das verdadeiras “ovelhas” do Senhor poderá perder-se! Bendita segurança!
O CARÁTER DE DEUS
O Conhecimento de Deus
“Deus
escolheu aquelas pessoas que Ele sabia que iriam crer”.
Com
esse argumento muitos crentes tentam conciliar dois ensinos bíblicos
aparentemente irreconciliáveis: 1) Que “Deus não trata as pessoas com
parcialidade” (At 10.34); e 2) que Deus, antes da fundação do mundo,
predestinou uma parte dos seres humanos para a salvação (Rm 8.28-30; Ef 1.3-5;
etc). A “solução” oferecida por esse argumento é o conhecimento prévio de Deus.
Deus é onisciente: sabe todas as coisas. Portanto, Deus sabia quem haveria de
crer em Seu Filho, e a esses que Ele sabia que haveriam de crer, Ele
predestinou e escolheu para a salvação, não com parcialidade, mas simplesmente
utilizando o conhecimento que Ele tinha de antemão das decisões e ações
humanas.
Essa
explicação parece razoável e aparenta ter uma base bíblica. Em Rm 8.29, o
Apóstolo Paulo diz a respeito de Deus, que “aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou...”. E
outro Apóstolo, Pedro, descreve os crentes como “escolhidos de acordo com o pré-conhecimento de Deus Pai” (1Pe 1.2).
E, aplicando essa mesma ideia ao caso daqueles que não creem e se perdem, o
Apóstolo João nos diz que “Jesus sabia
desde o princípio quais deles não creriam e quem o iria trair” (Jo 6.64).
Tudo isso parece apoiar a ideia de que a base da eleição divina para a salvação
foi o seu conhecimento prévio. Mas será mesmo?
Ninguém
que crê na Bíblia pode questionar o fato do conhecimento prévio de Deus. Deus
sempre soube de todas as coisas. Ele é onisciente. Claro que Ele sabia “desde a
eternidade passada” quem, ao longo do tempo, iria ouvir a Palavra e crer em Seu
Filho. Mas a questão é se esse conhecimento prévio de Deus foi a base, o fator
determinante, em sua eleição de alguns (não de todos) para a salvação.
Em
Rm 8.29 há pelo menos duas razões para rejeitar a teoria que estamos
considerando: 1) Trata-se da palavra conhecer,
não “saber”. 2) Não se trata de fatos
que Deus sabe de antemão (como, por exemplo, quem iria crer em Cristo), mas sim
de pessoas que Deus conhece de
antemão. O que o Apóstolo Paulo está dizendo aqui é que, de todos os seres
humanos de todos os tempos, havia alguns (e sabemos que são tantos que ninguém
pode contá-los, de acordo com Ap 7.9) a quem Deus, desde a eternidade, conhecia
e amava de um modo especial. Obviamente, em outro sentido, Deus conhecia, desde
a eternidade, todas as pessoas, e não somente algumas. Mas é evidente que Paulo
se refere a uma parte dos seres humanos, não a todos: aos que “de antemão
conheceu”. É conhecimento de relação,
não de informação. Deus, diz o Apóstolo, “predestinou”, “chamou”, “justificou”
e “glorificou” (Rm 8.29,30) aquelas pessoas sobre quem Ele já (desde a
eternidade) havia posto esse Seu amor especial: aos que “de antemão conheceu”.
À
primeira vista, as palavras do Apóstolo Pedro: “escolhidos de acordo com o
pré-conhecimento de Deus” (1Pe 1.2) parecem tão claras e contundentes que
poderiam ser o lema daqueles que defendem a ideia que estamos considerando
aqui. Mas a palavra-chave aqui, “presciência” (ou “pré-conhecimento” na Nova
Versão Internacional), traduz uma palavra grega cuja raiz é a palavra
“conheceu” em Rm 8.29. Ou seja, novamente a Palavra está falando não de coisas que Deus sabia, mas de pessoas que
Deus conhecia.
E
Jo 6.64? (“Pois Jesus sabia desde o princípio quais deles não criam e quem o
iria trair”). Aqui o “saber” em questão é realmente o “saber” de informação, e
não o “conhecer” de relação. Mas o que chama a atenção nesse texto é
precisamente o fato de que o Senhor tenha escolhido aqueles que escolheu apesar do que Ele sabia! O Senhor
escolheu como um dos Seus doze seguidores mais íntimos alguém que Ele “sabia
desde o princípio” que iria trai-Lo.
Afinal
de contas, dizer que Deus escolheu para a salvação aqueles que Ele sabia que
creriam é fazer da fé algo totalmente independente da obra de Deus, e o fator
determinante na salvação, quando toda a Bíblia enfatiza constantemente que a salvação é obra de Deus, e a fé é o
efeito, não a causa, dessa obra. Deus decidiu salvar alguns sem que
houvesse nada nessas pessoas que pudesse inclinar a decisão divina a seu favor,
nem mesmo uma fé prevista. Ele enviou Seu Filho ao mundo para concretizar a
salvação quando nos via não como crentes em potencial, mas como inimigos. E
logo enviou o Espírito Santo aos nossos corações impotentes e mortos para nos
vivificar, a fim de que pudéssemos crer e ser salvos. E quando estivermos no
Céu, jamais cogitaremos cantar sobre como nossa fé, prevista por Deus desde a
eternidade passada, foi o fator decisivo em nossa salvação! Ao invés disso,
cantaremos de como Deus, não por nada positivo que tenha visto em nós, mas por
pura e soberana graça, decidiu nos salvar – e nos salvou!
A justiça de Deus
“Se a
predestinação é verdadeira, Deus não é justo.”
Se Deus “não
trata as pessoas com parcialidade” (At 10.34), isto é, se não há em Deus nenhum
tipo de discriminação, como podemos crer que Ele, desde a eternidade,
predestinou alguns para a salvação, e os demais para a condenação? Não parece
justo, não é mesmo? Parece um caso claro de discriminação.
Mas o que a
Bíblia está dizendo quando afirma que Deus não trata as pessoas com
parcialidade? Evidentemente não está dizendo que Deus trata da mesma forma
todas as pessoas, em todos os sentidos, já que nesse caso Deus deveria dar a
todos os seres humanos exatamente os mesmos anos de vida, as mesmas
oportunidades em tudo, as mesmas alegrias, os mesmos sofrimentos, os mesmos
dons e talentos, a mesma inteligência e capacidade, etc, etc. Além disso, a
maioria dos pais que têm mais de um filho normalmente não tratam seus filhos como
se fossem exatamente iguais, antes, levam em consideração as diferentes
características, necessidades e circunstâncias de vida de cada um. E isso é
absolutamente normal! Portanto, para começar, devemos esclarecer que “não
tratar as pessoas com parcialidade” não é sinônimo de tratar a todos de modo
exatamente igual.
Quando a
Bíblia afirma que Deus não trata as pessoas com parcialidade, quer dizer que
Deus não salva alguém por alguma característica própria da pessoa que a faça
diferente dos demais. Por exemplo, Deus não salva alguém por ser negro ou
branco, rico ou pobre, doutor ou analfabeto. Se o fizesse, isso sim seria
discriminação! Seria favorecer alguns, prejudicando outros, sobre a base de
alguma característica pessoal que atraísse o interesse de Deus. E é exatamente
assim que Deus não age.
Esclarecido
esse fato, vamos ao cerne da questão: como Deus escolheu aqueles que iria
salvar? O fez sem levar em consideração o fato da Queda e do pecado, ou levou
em consideração esse fato? Essa pode parecer uma pergunta mais teológica do que
prática, mas nada mais longe da verdade pensar desse modo. A verdadeira
teologia, quando bem compreendida, sempre é prática (algo que os teólogos
liberais e seus imitadores esqueceram totalmente). Se Deus tivesse escolhido para
a salvação um certo número de pessoas, sem mais nem menos, nos pareceria
injusto. Mas, em meu entender, Deus não fez isso. O que Ele fez foi contemplar
desde a perspectiva de Sua onisciência a humanidade arruinada pela Queda, e,
por pura misericórdia, decidiu colocar em marcha um plano de salvação. As
pessoas que escolheu, as escolheu dentre a massa de pecadores caídos e
perdidos.
Em outras
palavras, Deus não fez a “seleção” dentre pessoas moral e espiritualmente
“neutras”, mas sim dentre pecadores culpados. A lógica bíblica exige esta
conclusão, porque a palavra “salvar” implica um estado de perdição do qual seja
preciso salvar. Quando Deus predestinou aos que iria salvar, estava pensando na
raça humana como perdida, não em sua
condição original de santidade perfeita, porque, neste caso, que sentido teria
preparar um plano de “salvação”?
Deus não tinha
obrigação de salvar quem quer que
seja. E isso pelo menos por duas razões: em primeiro lugar, porque o Criador é
livre para fazer o que bem entender com aquilo que Ele criou; e em segundo
lugar, porque a Queda desqualificou totalmente a humanidade. Deus não obrigou o
homem a pecar; ao contrário, deu instruções claras ao homem para que ele não
pecasse. Os únicos culpados da Queda foram Satanás e o primeiro casal humano,
Adão e Eva. Então, quando Deus, o Juiz justo, desde a Sua perspectiva
onisciente na “eternidade passada”, viu o homem caído e pecador, Sua única
“obrigação”, longe de ter misericórdia e perdoar, era ser coerente com Sua
própria santidade e justiça e punir o pecado. E se tivesse decidido, em vez de
colocar em marcha o plano da salvação, deixar que as exigências de Sua justiça
seguissem seu curso, ninguém seria salvo, e Deus continuaria sendo
perfeitamente justo. Mas Ele não fez isso. As Pessoas da Trindade fizeram um
pacto, pelo qual o Pai enviaria o Filho e o Filho viria para salvar um número
incontável de seres humanos da condenação que eles mesmos, assim como os
demais, certamente mereciam.
Mas aqui
voltamos à dificuldade que pretendemos superar: se essas pessoas escolhidas
dentre a massa da humanidade caída mereciam a mesma condenação de todos os
não-escolhidos, por acaso não foi injusto da parte de Deus escolher somente
elas, e não a todo o mundo? A melhor resposta que podemos dar a essa pergunta é
a mesma do Apóstolo Paulo:
“E então, que
diremos? Acaso Deus é injusto? De maneira nenhuma! Pois ele diz a Moisés:
‘Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e terei compaixão de
quem eu quiser ter compaixao’. Portanto, isso não depende do desejo ou do
esforço humano, mas da misericórdia de Deus. Pois a Escritura diz ao faraó: ‘Eu
o levantei exatamente com este propósito: mostrar em você o meu poder, para que
o meu nome seja proclamado em toda a terra’. Portanto, Deus tem misericórdia de
quem ele quer, e endurece a quem ele quer. Mas algum de vocês me dirá: ‘Então,
por que Deus ainda nos culpa? Pois, quem resiste à sua vontade?’. Mas quem é
você, ó homem, para questionar a Deus? ‘Acaso aquilo que é formado pode dizer
ao que o formou: Por que me fizeste assim?’ O oleiro não tem direito de fazer
do mesmo barro um vaso para fins nobres e outro para uso desonroso? E se Deus,
querendo mostrar a sua ira e tornar conhecido o seu poder, suportou com grande
paciência os vasos de sua ira, preparados para a destruição? Que dizer, se ele
fez isto para tornar conhecidas as riquezas de sua glória aos vasos de sua
misericórdia, que preparou de antemão para glória, ou seja, a nós, a quem
também chamou, não apenas dentre os judeus, mas também dentre os gentios?” (Rm
9.14-24).
O que
significa isso? Que a razão pela qual Deus faz o que faz é para a Sua própria
glória, como resultado da manifestação de todos os Seus atributos – inclusive a
misericórdia e a ira.
O enfoque
antropocêntrico do pensamento dominante dos últimos séculos nos afetou mais do
que imaginamos. Em consequência, muitos crentes não aceitam soluções e
explicações que recoloquem Deus no centro do cenário. Mas a verdade proclamada
pela Bíblia é que nós não somos o centro dos planos de Deus, nem a nossa
felicidade é o fim principal de Seus planos. Deus faz tudo o que faz para a Sua
própria glória. O centro dos planos de Deus é Deus. O fim principal dos planos
de Deus é Deus. Deus faz tudo para a Sua
própria glória.
Nós dizemos
isso de vez em quando, mas aceitá-lo em todas as suas consequências é
extremamente difícil para muitos, porque é tirar o homem do papel principal no
roteiro da história do universo, e escrever o nome de Deus como protagonista
principal.
Mesmo que não
compreendamos totalmente, a resposta para algumas das perguntas mais difíceis
de todas: Por que Deus permitiu a existência do mal? Por que Ele permitiu a
Queda? Por que não predestinou todos para a salvação? Por que existe um inferno
de castigo consciente e sem fim?; etc, é que Deus faz aquilo que mais glorifica
a Deus.
Tudo o que
Deus permitiu deu oportunidade para a manifestação mais clara de todos os Seus
atributos. A cruz de Cristo é a solução de Deus para o problema do pecado, que
se originou na Queda. Por acaso poderiam ser vistos com a mesma intensidade
aqueles atributos de Deus manifestados na cruz, se o pecado e a cruz não
tivessem existido?! Ou se existisse somente um Céu, mas não um inferno, Deus
poderia ser louvado pela Sua perfeita santidade, justiça, misericórdia e ira? Claro
que mesmo nossas melhores respostas podem não ser totalmente satisfatórias,
devido à complexidade de tais questões e às nossas mentes finitas, mas é nosso
dever como portadores da imagem e semelhança de Deus ir até onde possamos ir.
Na profecia de
Ezequiel o Senhor se defende da acusação de Seu povo: “Contudo, os seus
compatriotas dizem: ‘O caminho do Senhor não é justo’. Mas é o caminho deles
que não é justo” (Ez 33.17; cf. 18.21-29). Se há algo que nós, seres humanos,
não somos os mais indicados para fazer, é questionar, ou mesmo negar, a justiça
de Deus. Crer em Deus, ao menos no Deus da Bíblia, é crer em Sua justiça. Não
deveriam nos surpreender os muitos relatos da injustiça dos “deuses” feitos à
imagem e semelhança do homem. Mas dificilmente poderia haver maior contradição
do que um Deus (com D maiúscula) injusto.
Será que somos
tão justos que podemos colocar nosso Criador no banco dos réus e julgá-Lo por
sua suposta injustiça? A Bíblia ensina que Deus é justo, “tudo o que ele faz é
certo, e todos os seus caminhos são justos” (Dn 4.37). Logo, se a Bíblia também
ensina que Ele predestinou alguns para a salvação, deixando os outros na
perdição, essa predestinação deve ser justa, ainda que nos seja difícil ou
mesmo impossível de entender em toda a sua plenitude. Sem dúvida, é muito
difícil para nós entender alguns elementos da justiça de Deus, mas em vez de
acusá-Lo de injustiça, deveríamos ter humildade suficiente para reconhecer 1)
que o nosso senso de justiça está inevitavelmente distorcido pelo pecado, e
portanto não estamos em condições de julgar a justiça de Deus; 2) que a justiça
de Deus, assim como os demais atributos de Deus, é o objeto, não em primeiro
lugar de nossa razão, mas de nossa fé (cf. Hb 11.1); e 3) se Deus é justo, e se
é justo em tudo o que faz, e se predestinou uma parte da humanidade para a
salvação, então essa predestinação é justa, mesmo se não entendemos como pode
ser justa.
O amor de Deus
“Deus não ama
todas as pessoas?”
A maioria dos
cristãos não hesitaria em afirmar o amor de Deus por todas as pessoas sem exceção.
Consideram isso como um dos principais pilares da fé cristã e do Evangelho de
Cristo.
No entanto, ainda
que pareça estranho para alguns, a resposta à pergunta se Deus ama a todas as
pessoas ou não, seja qual for, não encerra o assunto nem soluciona todas as
dificuldades. Porque, se dissermos que Deus ama a todas as pessoas, a Palavra
de Deus deixa muito claro que Deus não ama a todos exatamente da mesma maneira:
Ele ama o Seu povo, a Sua igreja, a Seus filhos, aos verdadeiros crentes, com um amor especial. Na declaração divina em Ml 1.2,3 (“Eu amei Jacó, mas
rejeitei Esaú”, que mais tarde o Apóstolo Paulo citaria em Rm 9.13), alguém
pode tentar “diluir” a rejeição (no
hebraico, literalmente: “odiei Esaú”),
ou seja, o ódio de Deus contra Esaú, mas dificilmente alguém poderá interpretar
Ml 1.2,3 a ponto de afirmar que Deus amou a Jacó e a Esaú da mesma maneira!
E quem pode
negar que o mesmo tipo de distinção no coração de Deus é visto em toda a
Bíblia? Consideremos o caso dos israelitas no Egito: por acaso não é possível
perceber claramente a diferença fundamental entre o amor de Deus para com os
israelitas e por outro lado Sua atitude, Seus sentimentos, para com os
egípcios? Qual a explicação para isso? “Pois vocês são um povo santo para o
SENHOR, o seu Deus. O SENHOR, o seu Deus, os escolheu dentre todos os povos da
face da terra para ser o seu povo, o seu tesouro pessoal. O SENHOR não se
afeiçoou a vocês nem os escolheu por serem mais numerosos do que os outros
povos, pois vocês eram o menor de todos os povos. Mas foi porque o SENHOR os
amou e por causa do juramento que fez aos seus antepassados. Por isso ele os
tirou com mão poderosa e os redimiu da terra da escravidão, do poder do faraó,
rei do Egito” (Dt 7.6-8). E esse amor especial pode ser rastreado e acompanhado
ao longo dos séculos e dos livros do Antigo Testamento, apesar das contínuas
rebeliões do povo de Israel contra o Senhor. E quando chegamos à era do Novo
Testamento, com as extraordinárias mudanças espirituais causadas pela morte e
ressurreição de Cristo e pela vinda do Espírito Santo no dia de Pentecoste, permaneceu
sem mudança o fato essencial de que o Senhor tem um povo especial sobre a face
da terra. A partir do Novo Testamento, esse povo especial seria um povo
internacional, não mais limitado a uma única nação. E nesta era do Novo
Testamento, da qual fazemos parte, Deus continua amando de modo especial o Seu
povo.
Quantas vezes
ouvimos, ou lemos, as palavras: “Deus odeia o pecado, mas ama o pecador”? Tais
palavras parecem agradáveis, mas o fato é que todas as vezes em que a Palavra
de Deus nos diz que Deus odeia, deteste ou aborrece, na maioria das vezes o
objeto do ódio divino não é o pecado, mas sim o pecador!
Podemos falar
da “graça comum” e dizer que o Senhor é bom para com todos (Sl 145.9) e que
“faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos”
(Mt 5.45), e podemos chamar isso de “amor”, mas não podemos fugir do fato
fundamental de que Deus reserva um “amor especial” para aqueles que pertencem
ao Seu povo.
A vontade de Deus
“Por acaso a
Bíblia não afirma que Deus quer que todo mundo seja salvo?”
Sim, diz.
Alguns dos textos mais claros a respeito são os seguintes: Ez 33.11: “Juro pela
minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos
ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem de seus caminhos e vivam.
Voltem! Voltem-se dos seus maus caminhos! Por que o seu povo haveria de morrer,
ó nação de Israel?”; 1Tm 2.3,4: “Isso é bom e agradável perante Deus, nosso
Salvador, que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento
da verdade”; e 2Pe 3.9: “O Senhor não demora em cumprir a sua promessa, como
julgam alguns. Ao contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém
pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento”.
Mas quando a
Bíblia fala do que Deus quer, ou da “vontade de Deus”, do que está falando? Na
prática, muitos cristãos utilizam essa última expressão no sentido da “vontade
de Deus para a minha vida”. Muitas livrarias cristãs estão cheias de livros que
pretendem oferecer ajuda para descobrir a “vontade de Deus para a sua vida”.
Essa forma de
pensar sobre a vontade de Deus está tão arraigada em muitos círculos cristãos que
é considerada bíblica, sem maiores questionamentos. Mas será bíblica mesmo?
Onde a Bíblia fala da vontade de Deus dessa forma? O fato é que a Bíblia fala
da vontade de Deus, ou do que Deus quer, de duas maneiras muito diferentes. O
texto bíblico que melhor resume essas duas maneiras é Dt 29.29: “As coisas
encobertas pertencem ao SENHOR, o nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós
e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei”.
Deus tem uma vontade “secreta” e uma vontade “revelada”. O que isso significa,
e qual a diferença entre elas?
O termo vontade revelada de Deus refere-se ao
modo como Deus quer que vivamos. Ele revelou a Sua vontade para nossa conduta
como seres humanos. Temos um resumo dessa vontade nos Dez Mandamentos e um
resumo desse resumo nas palavras do Senhor Jesus Cristo: “Ame o Senhor, o seu
Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e
de todas as suas forças. (...) Ame o seu próximo como a si mesmo” (Mc
12.30,31). Mas, além desses resumos de como Deus quer que vivamos e nos
comportemos, em todas as páginas da Bíblia encontramos exemplos (às vezes mais
gerais e às vezes mais específicos) dessa vontade de Deus que Ele nos revelou.
Em certo sentido, cada vez que nos encontramos com qualquer tipo de exortação
ou ensino com implicações para nossa conduta – seja para nosso comportamento
exterior ou para nossas palavras ou para o nosso eu mais íntimo – estamos
diante da “vontade de Deus”, Sua vontade revelada.
Então, a que
se refere a vontade secreta de Deus?
Tal como o nome indica, trata-se de uma dimensão da vontade de Deus que Ele não
quis dar a conhecer, pelo menos não em todos os detalhes. É o que costumamos
chamar de “o plano de Deus”, “o propósito de Deus”. O verdadeiro Deus não é um
relojoeiro celestial que, segundo alguns filósofos e teólogos, depois de criar
o relógio chamado universo e de dar-lhe corda, foi embora e o deixou para que a
partir de então funcionasse sozinho. Não, o Deus que se revelou nas Escrituras
é um Deus que tem um plano eterno, um plano que Ele colocou em marcha na
criação do universo e que vai realizando no tempo e no espaço por meio de Sua
providência e de Sua obra de salvação, e que um dia consumará na grande cena
final, quando a história mergulhar na eternidade.
Quais são as
principais diferenças entre essas duas “vontades” de Deus, ou melhor, entre
essas duas expressões da vontade única de
Deus? Além do que já foi dito, a diferença mais importante é que a “vontade
revelada” de Deus tem a ver com o que Deus quer que nós façamos (ou que não
façamos), e sua “vontade secreta” tem a ver com o que Deus decidiu, desde a
eternidade, o que Ele mesmo fará. E outra diferença importante é que a vontade
“revelada” de Deus não é infalível, mas sua vontade “secreta”, sim. Por
exemplo, um dos Dez Mandamentos diz: “Não matarás”, mas como qualquer um pode
ver, esse mandamento – a expressão da vontade de Deus para o comportamento do
homem – é quebrado em grande escala, diariamente! Aquilo que Deus disse que não
quer que seja feito, é feito constantemente; e o que Ele quer que façamos,
muitas vezes deixamos de fazer. Sua vontade, nesse sentido, não é infalível,
pois o homem não a cumpre. No entanto, a vontade “secreta” de Deus é sempre
infalível. Aquilo que Deus, desde a eternidade, decidiu que faria, Ele o faz. É
disso que tratam textos bíblicos como Is 46.10: “Desde o início faço conhecido
o fim, desde tempos remotos, o que ainda virá. Digo: Meu propósito permanecerá
em pé, e farei tudo o que me agrada”; Dn 4.35: “Todos os povos da terra são
como nada diante dele. Ele age como lhe agrada com os exércitos dos céus e com
os habitantes da terra. Ninguém é capaz de resistir à sua mão ou dizer-lhe: O
que fizeste?”; Ef 1.11: “Nele fomos também escolhidos, tendo sido predestinados
conforme o plano daquele que faz todas as coisas segundo o propósito da sua
vontade”; apenas para citar três de muitos textos que poderíamos incluir. Essas
passagens não tratam daquilo que Deus quer que façamos, mas daquilo que Ele
mesmo, soberana e infalivelmente, decidiu fazer.
É dessa
“vontade secreta” de Deus que tratam passagens como Rm 9, onde, entre outras
coisas, Paulo fala da eleição soberana de Deus para com Israel, de Seu amor
especial para com Jacó, de Seu direito soberano de ter compaixão de quem Ele
quiser e dos “vasos de ira” e “vasos de misericórdia” preparados por Deus, e
onde diz acerca da salvação: “Portanto, isso não depende do desejo ou do
esforço humano, mas da misericórdia de Deus” (v. 16). E antecipando a objeção
comum de que isso não parece justo, o Apóstolo responde: “Mas quem é você, ó
homem, para questionar a Deus? Acaso aquilo que é formado pode dizer ao que o
formou: ‘Por que me fizeste assim?’. O oleiro não tem direito de fazer do mesmo
barro um vaso para fins nobres e outro para uso desonroso?” (vv. 20,21).
Essa importante
diferença entre os dois lados da vontade de Deus – o lado revelado e o lado
secreto – poderia ser resumida da seguinte maneira: Deus não aprecia a perdição de ninguém, nem é
para Ele, como Criador do homem e de cada ser humano em particular, um motivo de
alegria a condenação de tantos seres humanos (portadores de Sua imagem e
semelhança) à pena de eterna perdição, mediante a qual ficarão sujeitos à
“separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder” (2Ts 1.9). Porém,
aquilo que Ele não aprecia, o decretou na eternidade, com vistas a um objetivo
maior. Portanto, ainda que seja um mistério para nós, o plano eterno de Deus
(esse “propósito da sua vontade” do qual fala Paulo em Ef 1.11) inclui a
perdição dos que se perderão, e assim será, porque esse plano de Deus, essa
misteriosa vontade secreta de Deus, é infalível: nada nem ninguém pode deter a
Deus.
Aquilo que
hoje pode nos parecer correndo em linhas paralelas (um lado revelado e um lado
secreto da vontade de Deus), algum dia o veremos em sua perfeita harmonia e
convergência.
O propósito de Deus
“A Bíblia diz
claramente que Cristo morreu por todos.”
Para a maioria
dos cristãos a morte de Cristo por todos é
algo tão evidente que sem isso dificilmente poderiam aceitar o Evangelho. Tanto
é assim que uma das maneiras mais comuns de evangelizar é dizer ao descrente:
“Deus te ama e Jesus morreu por você”. No entanto, talvez para surpresa de
alguns, essas palavras tantas vezes repetidas não se encontram em nenhuma parte
da Bíblia. E os Apóstolos certamente não evangelizavam dessa maneira.
O que sim,
encontra-se na Bíblia, é a frase: “um morreu por todos” (2Co 5.14,15). E há
outros textos bíblicos que parecem dar a entender a mesma coisa: “Estava
chegando ao mundo a verdadeira luz, que ilumina todos os homens” (Jo 1.9). “Porque
Deus tanto amou o mundo...” (Jo 3.16). “...O Salvador de todos os homens,
especialmente dos que creem” (1Tm 4.10). “Porque a graça de Deus se manifestou
salvadora a todos os homens” (Tt 2.11). “...Jesus... pela graça de Deus, em favor
de todos, experimentasse a morte” (Hb 2.9); etc. Incontáveis sermões foram
pregados afirmando, para a satisfação de muitos ouvintes, que “quando a Bíblia
diz ‘todos’, quer dizer ‘todos’!”.
À luz de
tantos textos aparentemente tão claros (e os citados acima são apenas uma parte
dos que existem), é possível manter como bíblica a doutrina de uma expiação
feita somente para aqueles que foram predestinados para a salvação?
Consideremos os seguintes argumentos a respeito:
A expiação no Antigo Testamento
Durante o
período do Antigo Testamento, nunca houve nenhum indício de que os sacrifícios
de animais que eram oferecidos em Israel, sacrifícios que simbolizavam e
antecipavam o perfeito sacrifício de Cristo, fizessem expiação por todos os
habitantes do mundo.
A família de Eli
Sabemos de
pelo menos um caso dentro de Israel do qual o Senhor disse (1Sm 3.14): “Por
isso jurei à família de Eli: Jamais se fará propiciação pela culpa da família
de Eli mediante sacrifício ou oferta”.
É verdade que “todos” significa “todos”?!
Dizer que
quando a Bíblia diz “todos” quer dizer “todos”, simplesmente não é verdade. É
provável que na maioria dos textos bíblicos nos quais aparece a palavra
“todos”, a interpretação de que refere-se a “todas as pessoas de todos os
tempos” seja impossível.
E o mundo?
Essa frase tem
muitos significados e matizes diferentes na Bíblia. Sem ir mais longe, nos
escritos do Apóstolo João é frequente a ideia de “mundo” como aquilo que está
oposto a Deus e ao Seu povo: “Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes me
odiou” (Jo 15.18), etc. E como poderíamos entender que o “Apóstolo do amor”
pudesse escrever: “Não amem o mundo nem o que nele há” (1Jo 2.15), se não
reconhecendo esses diferentes matizes e significados?
João 3.16
Esse texto,
sem dúvida o mais conhecido de toda a Bíblia, é frequentemente citado como se
fosse a última palavra sobre este assunto. Mas o que ele realmente ensina? Fala
da grandeza do amor de Deus, é claro, mas também fala de Seu propósito ao enviar Seu Filho unigênito:
não enviou Seu Filho para que todo mundo
tivesse vida eterna; mas O enviou para que todo
aquele que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Isto é, o
propósito de Deus foi a salvação de todos os crentes em Seu Filho. Dito de
outro modo: Por acaso Jo 3.16 ensina que Deus enviou Seu Filho unigênito para
que aqueles que se recusam a crer n’Ele
tenham vida eterna? Obviamente não ensina tal coisa.
Expiação universal ou manifestação
universal?
Alguns dos
textos citados não se referem ao propósito da expiação de Cristo, mas sim ao
caráter público e o alcance universal de Sua encarnação. Cristo, “a luz do mundo” (Jo 8.12), “ilumina a todo
homem” (Jo 1.9), mas, tristemente, “os homens amaram mais as trevas do que a
luz” (Jo 3.19). “Porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os
homens” (Tt 2.11), mas muitos desses homens (e mulheres) rejeitaram essa
manifestação da graça de Deus, e portanto não serão salvos.
“Fogo amigo” teológico!
Às vezes os
mesmos textos da Bíblia citados para “demonstrar” que Cristo morreu por todos
sem exceção voltam-se contra o próprio Evangelho.
Um exemplo
disso é 2Co 5.14, que diz que “um morreu por todos”. Mas o que a frase completa
diz é: “Pois o amor de Cristo nos constrange, porque estamos convencidos de que
um morreu por todos; logo, todos morreram”. Mas em que sentido todos
“morreram”? No contexto Paulo não está falando de morte física, mas da morte para o domínio do pecado (compare
com Rm 6.1-14). Se insistimos em interpretar 2Co 5.14 no sentido em que Cristo
fez expiação por todos os seres humanos sem exceção, para sermos coerentes
deveremos dizer também que todos os seres humanos sem exceção morrem para o
domínio do pecado!
Ocorre algo
semelhante quanto à frase difícil de Paulo em 1Tm 4.10: “Se trabalhamos e
lutamos é porque temos colocado a nossa esperança no Deus vivo, o Salvador de
todos os homens, especialmente dos que creem”. Em que sentido o Senhor Jesus é
Salvador dos que não creem? Aqui
parece mais correto reconhecer que há mais de um sentido no qual o Senhor salva
e é Salvador: no livro de Juízes, por exemplo, Deus “salva” Seu povo várias
vezes; e em muitos salmos os salmistas atribuem a Deus sua salvação física, militar, etc...
Por quem o Senhor “provou a morte”?
Quanto a essa
expressão (Hb 2.9), seria bom continuar lendo: “Ao levar muitos filhos à
glória, convinha que Deus, por causa de quem e por meio de quem tudo existe,
tornasse perfeito, mediante o sofrimento, o autor da salvação deles” (v.10).
Assim, Cristo deveria “levar muitos filhos à glória”, uma clara referência aos
crentes, os verdadeiros filhos de Deus. E Cristo é o “autor da salvação deles”: desses filhos que deveria levar
à glória. Esse era o propósito de nosso Senhor ao tornar-se homem e
“experimentar a morte”: não meramente “tornar possível” a salvação de todos,
mas efetivamente salvar todos os
verdadeiros filhos de Deus.
“A melhor defesa é o ataque.”
Até aqui temos
analisado aqueles textos da Bíblia que a
priori aparentam defender uma expiação universal, e oferecemos uma
interpretação natural, séria e honesta, que leva em consideração o contexto e
que não cria mais problemas do que soluções. Mas o que diremos daqueles textos
bíblicos que parecem definir explicitamente as pessoas que foram objeto da
expiação do Senhor? “Ele salvará o seu
povo dos seus pecados” (Mt 1.21, ênfase acrescentada). “O bom pastor dá a
sua vida pelas ovelhas” (Jo 10.11,
ênfase acrescentada). “Cristo amou a
igreja e entregou-se por ela” (Ef
5.25, ênfases acrescentadas). E muitas outras passagens.
Cristo morreu para “tornar possível a
salvação” ou para salvar de verdade?
Este é o cerne
da questão. Se Cristo morreu por todos sem exceção, e a Sua morte realmente fez
expiação pelo pecado, afastou a ira de Deus, fez reconciliação com Deus, etc,
então a única conclusão lógica seria que todo o mundo foi salvo por Cristo e,
portanto, ninguém irá ao inferno. (Foi esse pensamento que levou Karl Barth,
ainda que de forma não totalmente decidida, a “flertar” com o universalismo).
Portanto, a única maneira de conciliar uma expiação universal com a terrível
realidade de um inferno “habitado” é dizer que Cristo, afinal de contas, não
salvou ninguém, apenas “tornou possível” a salvação de todos. [Esse é o
argumento tortuoso, irracional e repulsivo do arminianismo.] Pois, que sentido
teria afirmar que Cristo salvou mesmo aqueles que passarão a eternidade no
inferno? Ou Cristo os salvou, ou não salvou. Se os salvou, é impossível que
sejam lançados no inferno. Se vão para o inferno, é porque Cristo não os
salvou, e, portanto, sua morte não conseguiu obter coisa alguma: não fez
expiação pelos pecados, não afastou a ira de Deus, não reconciliou Deus com o
homem, etc. E isso significa que, para os pelagianos, semipelagianos e
arminianos, o fator determinante na salvação não é o que Cristo fez, mas o que cada um faz. Mas é assim que a
Palavra de Deus apresenta a salvação?? Onde está escrito que Cristo somente
“tornou possível” a salvação de todos?? Não, o que a Bíblia diz é: “Pelas suas
feridas fomos curados” (Is 53.5); “Ele salvará o seu povo dos seus pecados” (Mt
1.21); “Fomos reconciliados com ele mediante a morte de seu Filho” (Rm 5.10); “Ele
nos salvou” (Tt 3.5); “Porque, por meio de um único sacrifício, ele aperfeiçoou
para sempre os que estão sendo santificados” (Hb 10.14); “Vocês foram
redimidos... pelo precioso sangue de Cristo” (1Pe 1.18,19); etc. A Palavra de
Deus insiste em falar da morte de Cristo como uma morte que realmente efetuou a
salvação, não que meramente “a tornou possível”.
A sinceridade de Deus
“Se Deus já
determinou quem irá salvar, seu convite ao Evangelho não é sincero.”
O problema
aqui é fácil de resumir: se Deus predestinou, desde antes da criação do mundo,
as pessoas que serão salvas, como pode oferecer a salvação de modo
indiscriminado a todos? Oferecer a salvação a pessoas que Ele sabe
perfeitamente que não serão salvas (porque Ele mesmo as predestinou para não
serem salvas), não seria a mais cruel falta de sinceridade?
Como sói
acontecer no tocante aos aspectos mais profundos da vontade de Deus, tem havido
reações vigorosas nos dois extremos desse dilema. Há aqueles que chegaram à
conclusão de que se Deus oferece a salvação para todos, não poderia ter
predestinado aqueles que serão salvos. E, no outro extremo, há aqueles que
chegaram à conclusão de que se Deus predestinou aqueles que serão salvos, não
pode oferecer a salvação a todos.
No entanto, se
a nossa maior autoridade nessas questões é a Palavra de Deus, dificilmente
poderemos negar o fato da predestinação e nem o fato da oferta universal de
salvação. No tocante à primeira, já falamos sobre ela. E quanto à segunda, sem
ir mais longe, a “grande comissão” parece ser bem universal! “Portanto, vão e
façam discípulos de todas as nações...” (Mt 28.19); “Vão pelo mundo todo e
preguem o evangelho a todas as pessoas” (Mc 16.15). E vemos no livro de Atos
precisamente a obediência da igreja primitiva a essa comissão universal.
Como podemos
conciliar esses dois ensinos bíblicos (a predestinação e a oferta universal de
salvação), sem precisar recorrer a um dos dois extremos mencionados acima?
Creio que, mesmo reconhecendo as dificuldades aqui, podemos dizer algumas
coisas a respeito.
O fim e os meios
A pregação
indiscriminada do Evangelho é o principal meio que Deus escolheu para efetuar a
salvação daqueles que Ele predestinou.
“Eleitos Anônimos”
O Senhor não
quis revelar de antemão quem são os Seus eleitos. Eles não têm nenhuma etiqueta
indicativa! A missão da Igreja não consiste em identificar os eleitos e logo a
seguir pregar-lhes o Evangelho, mas sim em pregar o Evangelho “a todas as pessoas”
e logo deixar que Deus faça o que desejar com essa pregação.
Nesse contexto
é relevante o que diz Is 55.11 sobre a Palavra de Deus: “Assim também ocorre
com a palavra que sai da minha boca: ela não voltará para mim vazia, mas fará o
que desejo e atingirá o propósito para o qual a enviei”. Essas palavras são
comumente citadas como se aquilo que o Senhor quer, e o propósito final pelo
qual Ele envia a Sua Palavra, é única e exclusivamente a salvação dos ouvintes.
Mas é assim mesmo? Foi assim com a pregação de Isaías? O profeta foi fiel à sua
missão, mas qual foi o fruto de seu longo ministério? “Quem creu em nossa
mensagem? E a quem foi revelado o braço do Senhor?” (Is 53.1). O Apóstolo Paulo
pode nos ajudar aqui: “Porque para Deus somos o aroma de Cristo entre os que
estão sendo salvos e os que estão perecendo. Para estes somos cheiro de morte;
para aqueles, fragrância de vida” (2Co 2.15,16). Salvar não é o único propósito
de Deus para a Sua Palavra; também a utiliza para endurecer e para agravar a
culpa “dos que estão perecendo” e selar a sua condenação.
“Deus não quer a morte do ímpio.”
Como foi dito
antes, a “vontade de Deus” possui duas vertentes, e uma delas é a Sua vontade
“moral”: aquilo que Ele deseja com respeito aos homens. Ele mesmo diz que não
deseja a morte do ímpio (Ez 33.11), nem mesmo a morte daqueles ímpios que nunca
serão salvos. Foi por isso que o Filho de Deus chorou sobre Jerusalém (Lc
19.41-44), ao pensar no terrível juízo justo que viria sobre seus habitantes.
Sim, chorou inclusive pelo justo juízo que viria sobre os perdidos. E nessa
mesma atitude também desejou que a salvação fosse oferecida a todos.
A graça comum
O conhecimento
do Evangelho não é somente uma manifestação da graça especial de Deus através
da qual salva as suas “ovelhas”; é também uma manifestação de Sua graça comum
para com todas as pessoas em geral. Como já vimos, o Senhor é bom para com
todos (Sl 145.9), e se é bom fazendo com que “o seu sol” brilhe “sobre justos e
injustos” (Mt 5.45), não seria também fazendo chegar o seu Evangelho igualmente
a todas as pessoas, ainda que muitas delas não se convertam? Por acaso o
conhecimento do Evangelho não tem trazido grandes benefícios à Humanidade, além
de ter levado os eleitos de Deus à salvação?
“Coisas encobertas”
“As coisas
encobertas pertencem ao Senhor, o nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós
e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei”
(Dt 29.29). A doutrina da predestinação tem a ver com essas coisas
“encobertas”, no sentido em que refere-se ao que Deus faz, e não ao que nós,
seres humanos, fazemos. Mas a pregação do Evangelho pertence às coisas
“reveladas”, que “pertencem a nós”. Mesmo quando não entendemos o que Deus está
fazendo, devemos continuar fazendo aquilo que nos corresponde fazer como
criaturas racionais de Deus, e isso inclui pregar o Evangelho “a todas as
pessoas”.
Portanto...
Portanto, o
fato de que o Senhor decidiu que o Evangelho seja oferecido a todo o mundo não
reflete uma falta de sinceridade de Sua parte. A sinceridade é uma das
consequências necessárias dos atributos de Deus em geral – Sua santidade,
veracidade, fidelidade, imutabilidade, etc. Se Ele não fosse absolutamente
sincero, não seria Deus.
CONCLUSÃO
O propósito
deste capítulo foi analisar seriamente as objeções às Doutrinas da Graça da
parte de muitos que afirmam crer na Bíblia, e responder a essas objeções.
Agrupamos essas objeções em duas categorias pois nos pareceu que a maioria
delas tem a ver ou com a liberdade humana ou com o caráter de Deus.
É comum os
reformados serem acusados de impor seu “sistema teológico” sobre o texto da
Bíblia. Reconhecemos a realidade desse perigo não somente em nós, mas em todos
os crentes, em toda igreja e denominação, pois ninguém está livre de um
“sistema teológico” ou outro. Devemos ter muito cuidado para não forçar a
interpretação do texto sagrado para que o mesmo encaixe naquilo que já havia
sido decidido que “deveria dizer”.
Não obstante,
todos os que cremos na autoria divina (além da humana) das Escrituras nos
aproximamos da tarefa da interpretação da Bíblia conscientes do fato de que
Deus não se contradiz, e que, portanto, se nós fazemos o texto bíblico entrar
em contradição, é porque a nossa interpretação do mesmo está errada. E é nosso
dever diante d’Aquele que inspirou os escritores humanos dos livros bíblicos e
que “expirou” Sua Palavra através deles, procurar onde está o nosso erro e
corrigi-lo. O fato de que há “mistérios” na revelação bíblica, e muitas coisas
que desde a nossa perspectiva atual somente podemos conhecer “em parte” (veja
1Co 13.9,12) não justifica que abandonemos a tarefa de chegar a um entendimento
mais completo aqui e agora daquilo que o Senhor quis nos dar a conhecer.
A tese deste
capítulo, e deste livro em sua totalidade, é que a “fé cristã histórica”, a fé
registrada nas grandes confissões de fé históricas, com seu enfoque
teocêntrico, sua disposição de prostrar-se em submissão diante da vontade do
Deus soberano e a sua insistência numa salvação verdadeiramente determinada por
Deus Pai, verdadeiramente efetuada por Deus Filho e verdadeiramente aplicada
por Deus Espírito Santo, nos oferece, não uma série de “pontos doutrinais”, mas
sim a chave para uma hermenêutica bíblica coerente, e uma visão grandiosa,
global e verdadeira dos grandes temas da vida e da eternidade.
[1].
MOULTON, Harold K. Léxico Grego Analítico. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p.
9.
[2].
Ou: “A não ser que se considerem
reprovados!”. As duas traduções são possíveis.
[3].
Veja Jo 6.70: Então Jesus respondeu: “Não
fui eu que os escolhi, os Doze? Todavia, um de vocês é um diabo!”. E Jo
6.64: “Contudo, há alguns de vocês que
não creem”. Pois Jesus sabia desde o princípio quais deles não criam e quem o
iria trair. Judas nunca foi salvo. E Jesus sabia disso “desde o princípio”.
Lástima que os arminianos, pelagianos e semipelagianos não o admitam!
Fonte:
PUIGVERT, Pedro (org.). Una Fe para el III Milenio: el Cristianismo histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2002, pp. 56-97.
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