sexta-feira, 9 de setembro de 2011

UMA FÉ BÍBLICA

Com grande alegria apresento a tradução do Capítulo 2 do livro Una Fe para el III Milenio: El Cristianismo histórico: lo que es y lo que implica, publicado na Espanha por Editorial Peregrino, onde vários autores discorrem sobre a fé reformada no contexto contemporâneo.

Por ANDREW J. BIRCH.
  
             Parece que em cada família sempre há alguém que quer ter a última palavra. Se não for por direito de família, quem sabe pela “lei do mais forte”! Em outros âmbitos da vida também reconhecemos a autoridade de certas pessoas para ter a “última palavra”, mesmo quando essa última palavra não nos seja agradável: numa partida de futebol, é o árbitro; num tribunal, é o juiz; em questões históricas ou científicas, são os especialistas de cada área do conhecimento humano. No entanto, na verdade nenhum deles deveria ter a “última palavra”. Por acaso algum árbitro, juiz, historiador ou cientista é infalível? A experiência nos diz que não – a infalibilidade não é própria dos seres humanos. A última palavra não reside nessas pessoas, mas sim na regra escrita. O futebol tem um regulamento reconhecido internacionalmente. Os juízes podem somente aplicar a lei. E não poucos “especialistas” de hoje serão os ignorantes de amanhã, à luz de novos descobrimentos e novas conquistas do saber humano.
            E no tocante à religião, mais precisamente à religião cristã, quem tem a “última palavra”? Apesar das pretensões de infalibilidade por parte de alguns, por que um teólogo seria mais infalível do que qualquer outro especialista? Talvez um teólogo saiba mais sobre religião do que as outras pessoas, mas isso não lhe confere uma auréola de infalibilidade: ele também pode se enganar, ser suscetível como os demais mortais à influência, sempre poderosa, do ensino que teve, do seu modo peculiar de ver as coisas, das limitações de sua mente finita, etc. Aqui, como em tudo o mais, devemos buscar a última palavra não nas pessoas, mas no que está escrito. E para o cristão, “o que está escrito” significa “as Escrituras Sagradas” (cf. 2Tm 3.15). Essa Palavra “inspirada por Deus” (2Tm 3.16, literalmente “Deus-expirada”, isto é, soprada por Deus – não “inspirada”, como querem nossos tradutores traditores, mas sim expirada por Deus), e revelada por meio de “homens (...) impelidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21).

            Aquilo em que creem todos os cristãos

            Devemos ter em mente que todos os verdadeiros cristãos estão de acordo sobre a maioria dos ensinos bíblicos, como a inspiração divina das Escrituras; a doutrina da Trindade e a perfeição do único Deus verdadeiro em tudo o que Ele é e em tudo o que Ele faz; a divindade e a humanidade plenas do Filho de Deus; a personalidade e a obra do Espírito Santo; a Queda do homem no pecado e suas graves consequências para toda a raça humana; a total incapacidade do homem de salvar-se a si mesmo; a encarnação, a vida perfeita, a morte expiatória, a ressurreição corporal, a ascensão, a intercessão e a gloriosa vinda futura do Senhor Jesus Cristo; a salvação somente pela graça de Deus, somente por meio do Senhor Jesus Cristo, e recebida pelo homem somente por meio da fé em Cristo; a realidade do Céu e do Inferno como únicos e definitivos destinos respectivamente para os verdadeiros crentes e para os descrentes. Essa lista é bastante longa, mas não pretendemos que esteja completa. O que pretendemos, sim, é que ao tratar de assuntos sobre os quais não existe unanimidade perfeita entre os cristãos, não percamos de vista aqueles sobre os quais todos os verdadeiros cristãos creem em união.

            As Doutrinas da Graça

            Com esse nome (entre outros) se resume um modo de entender a Bíblia em geral e o plano divino de salvação em particular.
            Muitos cristãos creem que Deus deixou a decisão de crer em Cristo ou não à livre escolha de cada pessoa, sem que Ele mesmo exerça influência alguma sobre quem quer que seja. Os que creem desse modo dizem que na Pessoa e na obra de Cristo, Deus tornou possível a salvação de todos os seres humanos; que a vontade de Deus é dar a oportunidade de salvação a todo o mundo; e que o destino de cada pessoa depende da decisão que cada um deve tomar em resposta à mensagem do Evangelho.
            Mas há outros cristãos que creem que o papel de Deus na salvação é muito mais ativo e decisivo: que Ele decidiu desde a “eternidade passada” escolher aqueles que iria salvar e aqueles que não salvaria; que quando enviou Seu Filho ao mundo, não foi para “tornar possível” a salvação de todo o mundo, mas sim para efetuar a salvação daqueles que Ele escolheu para serem salvos; e que Ele fará que, pela obra do Espírito Santo, sejam salvos infalivelmente todos os Seus escolhidos (ou eleitos, na linguagem bíblica).
            Os que sustentam a primeira dessas posturas levantam algumas objeções à segunda postura, objeções que eles pretendem estar baseadas no ensino bíblico. Essas objeções poderiam ser classificadas de muitas maneiras, mas todas elas têm a ver ou com a liberdade do homem ou com o caráter de Deus. Vamos considerá-las a seguir.
           

            A LIBERDADE DO HOMEM

            Livres por criação

            “Por acaso Deus não criou o homem livre para escolher?”
            Efetivamente, Deus criou o homem livre para escolher. De fato, o primeiro homem, Adão, antes da Queda, teve uma liberdade mais absoluta que a que foi tida desde então por qualquer outro ser humano. Antes de ser pecador, Adão era livre para escolher o bem ou o mal, obedecer a Deus ou não obedecer.
            No entanto, se Deus criou o homem livre, a Queda o tornou um escravo! Falar como se o homem depois da Queda fosse mais ou menos igual que antes dessa Queda é ignorar as terríveis consequências da maior tragédia de toda a História do mundo.
            A Queda afetou – negativamente, é óbvio! – tudo o que o homem é: sua vida física, sua mente, suas emoções, sua vontade, suas relações e, é claro, sua situação espiritual. Reconhecer esse fato não é negar a continuação, depois da Queda, da imagem de Deus no homem, nem minimiza a assombrosa realidade da “graça comum” que é derramada igualmente sobre todos os homens (a qual inclui a restrição do pecado), nem requer ir tão longe a ponto de negar que o homem seja livre hoje em nenhum sentido da palavra. Somente afirmamos aqui que a Queda afetou o homem em todos os aspectos, inclusive em sua liberdade de escolha.
            A partir da Queda, o homem tem uma clara tendência para o pecado. É concebido e nasce em pecado (Sl 51.5). “A insensatez está ligada ao coração da criança” (Pv 22.15). Poucas gerações depois da Queda, o Senhor viu que “a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal” (Gn 6.5). É claro que essa descrição refere-se ao homem em seu ponto mais baixo de degradação, mas também demonstra até onde nos leva o “pecado original”, e como seríamos todos se não existisse a “graça comum” de Deus, que freia o pecado. Os escritores inspirados dos livros bíblicos empregaram um vasto leque de palavras para descrever os diferentes aspectos do pecado humano. O pecado é, entre outras coisas, “errar o alvo”, “passar dos limites”, “rebeldia” (contra a soberania de Deus), “perversidade” (isto é, inverter os valores de Deus), etc. E quando o Apóstolo Paulo, na primeira parte de sua epístola aos crentes de Roma, deseja demonstrar que tanto judeus quanto gentios necessitam do Evangelho, não lhe faltam evidências bíblicas a respeito da tendência natural de todos os seres humanos (Rm 1.18-32; 2.17-24; 3.9-20)! E mais, a Bíblia descreve o homem em sua condição natural como um escravo do pecado (Jo 8.34; Rm 6.17,20; 2Pe 2.19; etc)! É difícil ver os que são “escravos do pecado” podem ser considerados livres para escolher o bem ou a salvação! A única liberdade que tem um “escravo do pecado” é a liberdade para continuar servindo ao seu mestre, o pecado, e para rejeitar o Evangelho de Cristo!
            Segundo a Bíblia, a Queda não somente deixou os seres humanos afetados pelo pecado e escravos do pecado; também os deixou espiritualmente mortos! Quem crê na Bíblia não pode negar esse fato. O Apóstolo Paulo deixa isso bem claro em Efésios 2, onde não somente afirma, mas também repete: “Vocês estavam mortos em suas transgressões e pecados” (v. 1); “quando ainda estávamos mortos em transgressões” (v. 5). Para Paulo, ele mesmo e seus irmãos na fé, antes de experimentar o poder regenerador de Deus, haviam estado espiritualmente mortos. Isto não deveria nos surpreender, afinal de contas, Deus disse a Adão, falando sobre a árvore do conhecimento do bem e do mal: “no dia em que dela comer, certamente você morrerá” (Gn 2.17). A advertência do Senhor foi cumprida, pois não somente começou o processo de morte física no mesmo dia em que Adão e Eva caíram em pecado, mas também naquele mesmo dia eles morreram em outro sentido, no sentido espiritual. Sua desobediência matou sua inocência e interrompeu sua comunhão com Deus. Por isso, ao longo do Novo Testamento ouvimos falar da salvação em termos de “nova vida”, de um “nascimento espiritual”, de uma “nova criação”, etc. Como diz o Apóstolo João: “já passamos da morte para a vida” (1Jo 3.14).
            No entanto, apesar desse ensino claro da Palavra de Deus, muitos cristãos, com toda probabilidade assentindo ao ensino bíblico de modo geral, parecem no entanto contradizer as Escrituras na prática, ao insistir em que uma pessoa espiritualmente morta possa efetuar a sua própria vivificação espiritual: que alguém espiritualmente morto possa entender a mensagem do Evangelho; que possa perceber que essa mensagem é verdadeira; que possa crer em Cristo; que possa se arrepender de seus pecados; etc – e tudo isso sem nenhum tipo de intervenção divina, já que isso nos faria voltar ao problema de por que Deus não intervém do mesmo modo em todos!
            É preciso evitar dois erros a respeito da Queda do homem no pecado, dois extremos opostos: primeiro, o erro de exagerar as consequências daquela trágica Queda, afirmando que a imagem de Deus no ser humano foi completamente perdida (não foi), ou que faculdades humanas relevantes como a inteligência, a consciência, a vontade, etc, foram totalmente aniquiladas (não foram). Em segundo lugar, o erro de tirar da Queda seus terríveis efeitos: desde então, todo ser humano que é concebido (com a única exceção do Deus-homem, é claro) já é, em sua condição natural, alguém afetado pelo pecado, escravo do pecado, e morto no pecado. Negar tal condição humana é negar o ensino bíblico. Nessa condição, a liberdade do ser humano não é uma liberdade “neutra”, mas sim uma “liberdade” escravizada!

            Verdadeiramente livres

            “Então, o homem é uma espécie de marionete? Um mero fantoche?”

            Muitos crentes pensam que se Deus é soberano no sentido absoluto, e que se a vontade de Deus é, no fim das contas, aquela que sempre prevalece, então mesmo que se fale em liberdade humana, essa liberdade não é mais do que uma ficção cruel: o homem não passa de uma simples marionete, um fantoche, nas mãos do Criador.
            Essa objeção, ainda que compreensível, não passa de uma caricatura da verdade. Claro que a vontade de Deus sempre prevalece – se não fosse assim, Deus não seria Deus, o universo seria um caos total e ninguém poderia ser salvo. Mas a soberania absoluta de Deus não anula a realidade da liberdade humana.
            Para entender esse aparente paradoxo – que a vontade de Deus sempre prevalece e que nem por isso a liberdade do homem deixa de ser verdadeira – a chave está em reconhecer a inevitável falta de igualdade entre o Criador e a criatura, entre Deus e o homem.
            A insistência na igualdade está em moda atualmente, e muitas vezes com boas razões. A mulher não é inferior ao homem, nem as pessoas de um lugar são inferiores a pessoas de outro lugar. Mas essa insistência na igualdade, tão apropriada e tão importante entre os seres humanos, não pode ser aplicada em relação a Deus e ao homem. Deus é totalmente diferente do homem e infinitamente maior do que o homem. Além disso, Deus é o Criador do homem. O homem só existe porque Deus o criou, e desde então Deus tem assegurado a sobrevivência e preservação da espécie humana. Fazendo uso de uma metáfora bíblica, podemos dizer que Deus é o grande Oleiro, e o homem é a argila em suas mãos. Por tudo isso, não se pode igualar a liberdade do homem com a de Deus, nem a vontade do homem com a vontade de Deus.
            Não obstante, não é lógico chegar à conclusão de que a liberdade humana, por não ser absoluta como a liberdade divina, seja uma mera ficção. Como já foi dito, na Queda o homem não perdeu nenhuma das características que o tornam humano e que constituem a imagem de Deus: sua espiritualidade, sua responsabilidade moral, sua inteligência, sua criatividade, sua necessidade de relacionar-se, sua mordomia sobre a criação, etc. Todas essas características foram afetadas, danificadas, pelo pecado, mas nenhuma delas foi totalmente perdida. Em outras palavras, apesar da Queda, o homem continua “funcionando” como homem, em seu pensar, em seu sentir, e em seu fazer.
            Isso pode ser visto em todos os aspectos da vida: em circunstâncias normais, não temos, nunca, a impressão de que nós e as pessoas ao nosso redor são meros robôs! A cada dia temos à nossa disposição milhares de provas da humanidade do homem, daquilo que nos torna diferentes de todos os demais seres que existem.
            E a mesma coisa pode ser vista também na esfera da fé. Deus realiza Seu plano de salvação não com a força esmagadora de um rolo compressor, mas com a elegância e a beleza de um artista, transformando os aparentes obstáculos do caminho em degraus para o destino desejado, enquanto Ele opera não de modo independente da vontade humana, mas através dela. Quando alguém experimenta a conversão, o que acontece? Nós percebemos o que acontece exteriormente: a pessoa ouve o Evangelho, crê e se converte. Nesse processo todas as faculdades da pessoa estão em pleno funcionamento: seus ouvidos, sua mente, seu coração e sua vontade. Quem se converte não é uma coisa, é uma pessoa. Mas a Bíblia nos explica todo esse processo de outra perspectiva também: nos fala de Deus, nos descreve o papel do Espírito Santo, iluminando, convencendo, regenerando, vivificando; nos revela outra vontade, além da vontade da pessoa humana, também operando: a vontade soberana de Deus. O “mérito” da salvação é atribuído unicamente a Deus, não ao homem, e os que são verdadeiramente salvos não têm nenhuma dúvida a respeito. Mas Deus não nos salva independentemente de nossas faculdades humanas, mas através delas.
            E o que acontece com os que se perdem? Exatamente o mesmo, mas com resultado oposto. A pessoa em questão atua do princípio ao fim como tal, utilizando todas as suas faculdades humanas, mas neste caso rejeita o Evangelho e não se converte. Qual é a diferença mais evidente entre os dois casos? É, no segundo caso, a ausência da obra do Espírito Santo. E essa ausência indica uma diferença na vontade soberana de Deus: aqui, Deus não age, não intervém; simplesmente deixa o morto continuar morto. É por isso que nós, cristãos, oramos a Deus pela conversão de outras pessoas. Sabemos pela Bíblia e também pela nossa própria experiência de salvação, que é Ele quem vivifica os mortos espirituais.
            Mas em qual desses casos a vontade do homem não funciona? Ora, funciona em ambos os casos. Só que a vontade do homem, mesmo que real, presente e ativa, não está fora do âmbito governado pela vontade de Deus, mas sim dentro desse âmbito. Deus é a “causa primária”, o homem e sua vontade constituem uma “causa secundária” que também é uma causa real, mas não é outra “causa primária” como Deus, como se fosse outra paralela à vontade d’Ele. E a Bíblia ensina que Deus é a “causa primária” de tudo o que acontece. E isso por três razões em particular:
            1. Porque Deus é eterno, e não há nenhum outro ser nem nenhuma outra coisa que o seja, no sentido de não haver tido um princípio. Houve um “tempo” em que somente Deus existia. Portanto, na cadeia de causas e efeitos que tem havido desde quando somente existia Deus, a causa primária teve de ser Deus.
            2. Porque Deus foi, e continua sendo, o Criador. A Bíblia ensina que Deus, além de ser eterno, é um ser pessoal infinitamente inteligente e poderoso, e que criou o universo e deu origem a tudo o que se pode denominar “vida”.
            3. Pela vontade soberana de Deus: Deus nada faz sem ter um propósito e, desde antes da criação do universo, decidiu dirigir tudo o que acontece para o cumprimento de seu infalível propósito.
            Portanto, nesses três sentidos, Deus, segundo a Bíblia, é a causa primária de tudo.
            Mas é preciso esclarecer que Deus é a “causa primária” não no sentido de ser o autor direto de tudo. O exemplo mais claro disso é o pecado. Deus não é, nem pode ser, o autor do pecado. Deus é perfeitamente santo, odeia o pecado e jamais poderia pecar nem induzir ninguém a pecar. Mas ao mesmo tempo, o fato do pecado existir não significa que Deus não esteja no controle de tudo o que acontece: Ele está, e em Seu plano eterno, concebido pela Sua infinita sabedoria e executado por Seu infinito poder, Ele faz com que até mesmo o pecado sirva para o Seu triunfo final.

            Livres e responsáveis

            “Se o homem não é livre, também não pode ser responsável.”
            Nos tribunais organizados após a Segunda Guerra Mundial, um dos argumentos utilizados pela defesa dos oficiais alemães acusados de crimes hediondos foi que somente haviam cumprido as ordens de seus superiores. Alegaram que não haviam tido escolha, que não haviam tido liberdade, e portanto não poderiam ser responsabilizados pelas atrocidades que haviam cometido.
            A defesa daqueles soldados é parecida com o ataque de alguns “crentes” contra a doutrina bíblica da predestinação. Dizem que Deus não pode (no sentido moral do termo) responsabilizar pelos seus pecados a pessoas que, por razões alheias à sua própria vontade, foram constituídas pecadoras pela desobediência de seus primeiros pais (Rm 5.12-21), nem pode responsabilizar as pessoas que rejeitam o Evangelho porque Ele mesmo não as predestinou para a salvação. Para que possa nos responsabilizar, precisamos ser verdadeiramente livres, no sentido absoluto.
            Mas esse argumento tem, pelo menos, dois pontos fracos:
            Em primeiro lugar, mesmo que não gostemos da doutrina bíblica do pecado original, ainda assim não somos autênticos “santos” obrigados a pecar por culpa de Adão e Eva, e contra nossa própria vontade! De fato, nossa própria vontade – aquilo que nós verdadeiramente queremos fazer – é precisamente pecar! Assim como Deus não obrigou Adão e Eva a pecar, ninguém fora de nós mesmos nos obriga a pecar. Pecamos porque queremos, porque somos assim. E sabemos disso pela nossa experiência diária; é a nossa própria vontade que não quer fazer aquilo que sabemos que Deus quer que façamos. É nossa própria vontade que deseja fazer aquilo que sabemos que Deus não quer que façamos. Em outras palavras, o inimigo não está fora de nós – nós somos o nosso inimigo! A maioria daqueles oficiais e soldados alemães foi condenada à morte, apesar de alegar não ser responsável por seus crimes de guerra. Nós, por outro lado, quando pecamos, ainda que (muitas vezes) sabendo perfeitamente o que estamos fazendo, normalmente não temos ninguém ao nosso lado, nos apontando uma metralhadora, nos obrigando a fazer aquilo que não queremos fazer! Não, a verdade é que o homem deseja pecar, quer pecar. Sabemos muito bem disso.
            Em segundo lugar, a ideia de que não poder evitar fazer algo significa, necessariamente, não ser responsável pelos seus atos, é uma falácia. Porque nós mesmos somos culpados da causa de nossa impotência. Como exemplo, vamos supor que um jovem decida experimentar algumas drogas. Quando toma essa decisão, ele o faz livremente: ainda não é um viciado. Mas o que começa como uma simples experiência em busca de prazer, ou como uma fuga de alguma realidade difícil de enfrentar, logo acaba se tornando um vício incontrolável. E o vício leva ao crime, especialmente ao roubo: é preciso buscar meios para satisfazer as demandas do vício. Então, quando o jovem, já viciado, decide roubar para manter seu vício, deve ser considerado responsável pelos seus atos, ou não? Se é pego roubando, deve ser solto porque como viciado não pode ser considerado responsável pelos seus atos? E o alcoólatra que bate em sua mulher? Já que o álcool privou sua liberdade de escolha, não pode ser responsabilizado pelas consequências de seu alcoolismo? [Nota do tradutor: Ah! É uma tragédia que no Brasil essa maldita filosofia pseudo-humanitária esteja triunfando cada vez mais! Só falta as autoridades darem uma medalha de honra para os viciados, os pedófilos, os malfeitores, e todos os canalhas deste país! “Coitadinhos, são vítimas do sistema!” Maldita sociedade que transforma os criminosos em vítimas, e trata as vítimas e as famílias das vítimas como criminosos!]
            O fato é que às vezes cometemos erros que debilitam, ou mesmo paralisam, nossa capacidade de fazer uma série de coisas. Mas nem por isso deixamos de ser responsáveis diante de Deus: Ele não nos criou assim – nós nos tornamos assim. Foram nossos primeiros pais quem livremente decidiram desobedecer seu Criador. E somos nós quem tomamos decisões equivocadas, às vezes por falta de sabedoria, às vezes por motivações mesquinhas, etc. Por nossa própria culpa, somos menos livres do que éramos no princípio, e menos livres do que deveríamos ser, mas não somos menos responsáveis.

            Livres para crer?

            “Por acaso a Bíblia não diz que podem ser salvos todos os que quiserem?”
            Sem dúvida, há um sentido em que isso é correto. Para começar, Deus chama todas as pessoas do mundo inteiro para que sejam salvas. Ele o fez através de profetas como Isaías: “Voltem-se para mim e sejam salvos, todos vocês, confins da terra” (Is 45.22). O Senhor Jesus Cristo enviou a Seus discípulos para pregar o Evangelho “a todas as pessoas” (Mc 16.15), e quando eles o fizeram, disseram coisas como: “Salvem-se desta geração corrompida!” (At 2.40). De fato, Deus “ordena que todos, em todo lugar, se arrependam” (At 17.30). E o Senhor Jesus Cristo fez uma afirmação que deveria encher de ânimo qualquer pessoa que quisesse ser salva: “Quem vier a mim eu jamais rejeitarei” (Jo 6.37).
            E se tudo isso ainda fosse pouco, há na Palavra de Deus convites ainda mais explícitos que claramente dão a entender que podem ser salvos todos aqueles que desejam a salvação. O livro de Apocalipse termina com um desses convites: “Quem tiver sede, venha; e quem quiser, beba de graça da água da vida” (Ap 22.17).
            Portanto, quem pode ser salvo? Quem quiser ser salvo. A questão é: quem quer ser salvo? Essa pergunta pode parecer até ridícula. “Quem não quer ser salvo?” Evidentemente, se fosse possível demonstrar de modo irrefutável a todos a sua condição diante de Deus, o grande perigo da condenação ao Inferno, e a urgente necessidade de salvação, até mesmo os ateus convictos, que nem ao menos consideram a existência de Deus, se aferrariam a qualquer coisa, mesmo em algo que jamais acreditariam em qualquer outra circunstância, para safar-se da terrível situação. Mas essa não é a questão, nem é a verdadeira situação do homem incrédulo. A verdadeira questão é: que homem ou mulher, na condição espiritual na qual a Bíblia nos assegura que está todo ser humano sem Cristo, realmente quer aceitar tudo o que diz a Palavra de Deus, reconhecer a si mesmo como pecador, abandonar qualquer confiança em si mesmo e em suas próprias obras e esforços, e humilhar-se diante de Deus, clamando por misericórdia? Quem quer ser salvo nesse sentido? O próprio Senhor Jesus Cristo deu a resposta, quando disse: “Contudo, vocês não querem vir a mim para terem vida” (Jo 5.40). E disse a Jerusalém: “Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos, debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram!” (Lc 13.34). Ele quis, mas eles não quiseram.
            Talvez alguém possa pensar que não é como aqueles judeus dos tempos de Jesus, que é diferente, que quer sim ser salvo. Mas se pensarmos assim, não perceberemos o poder que o pecado tem sobre toda a humanidade. Quando o Apóstolo Paulo, em Romanos 6, lembra os cristãos de Roma da grande mudança que Deus havia efetuado em suas vidas, descreve a terrível escravidão em que se encontravam antes, da qual agora haviam sido libertados (Rm 6.17-22). E a vontade e os desejos são parte daquilo que – até a maravilhosa libertação que traz o Espírito Santo – está debaixo do domínio do pecado. Insisto, não se trata de uma escravidão contrária à nossa vontade, mas sim de uma escravidão da nossa vontade: gostamos do pecado, muitas vezes desfrutamos dos sórdidos prazeres que o pecado nos proporciona, e a triste verdade é que no fundo não queremos deixar o pecado.
            Se somos cristãos, sabemos que isso é verdade, porque agora podemos olhar para trás e ver o que o Senhor tem feito em nossas vidas. Há um antes e um depois, e sabemos perfeitamente que essa mudança somente pode ter sido efetuada por Deus, e não por nós mesmos, pelo nosso próprio esforço. Sabemos que Ele, o Senhor, mudou, entre outras coisas, a nossa vontade, submetendo-a finalmente à Palavra. Certamente no passado estivemos lutando contra a verdade, mas afinal o Senhor nos venceu! E por isso agora, em vez de exaltarmos a nós mesmos por termos sido tão inteligentes a ponto de mudar de opinião, de vontade e de coração, damos toda a glória a Deus porque Ele, e somente Ele, fez tudo isso em nós e por nós! Éramos livres, antes, para escolher a salvação? Não, sabemos que não éramos. Sabemos que éramos livres somente para continuar viciados em pecado. Sabemos que Deus irrompeu em nossas vidas, nos transformando por completo – mente, coração, vontade, tudo! – e que é graças a Ele, e não a uma suposta liberdade de escolha da nossa parte, que agora somos verdadeiramente livres.

            Livres para rejeitar

            “Os que rejeitam o Evangelho o fazem livremente, ou são obrigados por Deus para fazê-lo?”
            Há quem diga que se Deus somente predestinou alguns para a salvação, na prática é como se aos “não predestinados” Deus não somente não lhes desse a oportunidade da salvação, mas que também os obrigasse a rejeitar o Evangelho.
            Mas Deus nunca obriga ninguém a fazer nada que não seja bom. Não obrigou Adão e Eva a desobedecê-Lo: se tivesse feito isso, seria o autor direto do pecado, o qual é totalmente inadmissível à luz da perfeita santidade de Deus. Não obrigou Judas Iscariotes a trair Jesus: sim, estava profetizado que a traição aconteceria, mas Judas foi responsável pelo que fez – pensou, decidiu, planejou, compactuou com os líderes religiosos, escolheu o momento adequado e o fez. Em cada parte do processo estiveram funcionando todas as faculdades humanas de Judas. Não foi hipnotizado por Deus, nem induzido por Deus! Deus jamais obrigará alguém a pecar. Ele odeia, com todo o Seu Ser, o pecado! Ele também não obriga as pessoas a rejeitarem o Evangelho, ou a rejeitarem Seu Filho, o Senhor Jesus Cristo.
            Acontece que não é necessário que Deus faça alguma coisa para que alguém rejeite o Evangelho. Nós fazemos isso sem nenhuma ajuda externa! Para que rejeitemos o Evangelho, Deus não precisa fazer nada além de nos deixar sozinhos, deixar que façamos simplesmente aquilo que queremos fazer, aquilo que fazemos simplesmente por ser como somos. Nada mais natural para uma pessoa que ama o pecado, que está espiritualmente morta e que encontra-se em inimizade contra Deus, do que rejeitar o Filho de Deus. Foi exatamente isso o que os homens fizeram quando Ele veio! É exatamente isso o que todos nós fizemos, porque afinal de contas aquilo que as pessoas fisicamente presentes naquele momento da História fizeram – Judas Iscariotes, os líderes religiosos, a multidão que gritou: “Crucifica-o!”, Pôncio Pilatos, os soldados, etc – o fizeram pessoalmente, mas também representando toda a raça humana, “em nome de todos”.
            E quando o Dia final chegar, todos os verdadeiros crentes em Cristo dirão: “Senhor, todo o mérito da nossa salvação pertence a Ti”. E os descrentes dirão: “Senhor, toda a culpa pela nossa condenação pertence a nós mesmos”. Ninguém dirá naquele Dia: “Mas, Senhor, tu me obrigaste a ser pecador, me obrigaste a rejeitar a salvação!”. Não, tal como disse o Apóstolo Paulo, ao falar do Juízo Final e definitivo, então todos se calarão e estarão sujeitos ao juízo de Deus (cf. Rm 3.19).

            Livres para mudar?

            “Assim como o homem é livre para crer, também é livre para deixar de crer”.
            A ideia de que é possível perder a salvação está sendo cada vez mais rejeitada pelos cristãos. Não obstante, ainda há muitos que acreditam nela, e, em certo sentido, trata-se de uma ideia lógica quando se acredita que a liberdade humana é absoluta. Se a decisão de aceitar o convite à salvação, ou de rejeitá-lo, depende em última instância da vontade livre de cada pessoa, então pareceria lógico chegar à conclusão de que é possível mudar de ideia e rejeitar a salvação. Ou será que, paradoxalmente, a decisão de crer em Cristo para a salvação marca o fim da liberdade espiritual humana? Se hoje sou livre para decidir seguir a Cristo, não serei livre também amanhã, para deixar de segui-Lo? Somos livres para entrar, mas não livres para sair?
            A ideia de que é possível perder a salvação tem, pelo menos, uma aparência de base bíblica. Há na Bíblia exemplos de pessoas que parecem deixar de ser verdadeiros crentes: o rei Saul; alguns diriam que o rei Salomão; Judas Iscariotes; Demas (um dos companheiros do Apóstolo Paulo); etc. E o que Paulo quis dizer quando escreveu: “Mas esmurro o meu corpo (...) para que (...) eu mesmo não venha a ser reprovado” (1Co 9.27)? E Apocalipse 3.5 parece implicar a possibilidade de que o nome de alguém seja “apagado” do livro da vida. Mas sem dúvida as passagens bíblicas mais usadas por aqueles que creem na perda da salvação são aquelas que tratam da apostasia, como Hb 6.4-6; 10.26ss; 2Pe 2.20-22; etc. O que se pode dizer diante disso? Os verdadeiros crentes são livres para abandonar o Reino de Deus?
            Quando atinamos com a verdade ensinada em toda a Palavra de Deus, de que a salvação não é uma mera decisão humana, mas sim uma obra de Deus, percebemos também que tudo aquilo que Deus faz, o faz bem e o conclui. Isso é precisamente o que ensina o Apóstolo Paulo em Fp 1.6: “Estou convencido de que aquele que começou boa obra em vocês, vai completá-la até o dia de Cristo Jesus”. Quanto aos casos citados no parágrafo anterior, em nenhum deles é necessário recorrer à ideia da perda da salvação. Se o rei Saul morreu apóstata, é porque nunca foi um verdadeiro filho de Deus. Se Salomão foi um verdadeiro crente, também o foi em seus piores momentos. E não há nenhuma boa razão para pensar que Judas Iscariotes, “aquele que estava destinado à perdição” (Jo 17.12), alguma vez tenha sido um verdadeiro crente, ainda que durante mais de três anos pudesse parecer ser como qualquer outro dos doze Apóstolos. Judas não mudou no final: somente demonstrou ser o que sempre havia sido. Demas é um caso mais difícil: como vamos concluir com certeza alguma coisa a respeito de alguém que é mencionado somente em três breves versículos da Bíblia? Por outro lado, alguém cujo “epitáfio” diz: “Demas, amando este mundo, abandonou-me” (2Tm 4.10) parece cheirar mais a apostasia do que a qualquer outra coisa!
            Quanto a 1Co 9.27, esse aparente temor do Apóstolo Paulo de que ele mesmo pudesse ser “reprovado”, as possíveis interpretações podem ser resumidas em três: 1) O Apóstolo acreditava de verdade que poderia perder sua salvação; 2) O que ele temia era somente que pudesse perder sua recompensa, seu galardão, e salvar-se “como alguém que escapa através do fogo” (veja 1Co 3.10-15); e 3) Paulo fala hipoteticamente, como se pudesse revelar-se um apóstata (não no sentido de perder sua salvação, mas no sentido de nunca ter sido um crente de verdade).
            Dessas três interpretações a mais convincente, ao menos para mim, é a terceira, pelas seguintes razões: 1) A primeira interpretação seria uma contradição não somente do ensino bíblico como um todo, mas também da insistência do próprio Paulo em todos os seus escritos, a respeito da segurança da salvação (Rm 8.28-39; 2Co 5.1-8; Fp 1.6,21-24; 2Tm 1.12; 4.8,18; etc). 2) É difícil entender como o medo de ser “reprovado” possa significar somente o medo de perder seu galardão. 3) Há outros textos nos quais Paulo parece falar de modo hipotético de sua própria possível perdição (Rm 9.3; 2Co 13.7; etc). 4) A palavra grega para “reprovado”, adokimos, aparece oito vezes no Novo Testamento, e seu significado é exatamente esse, desqualificado, rejeitado, recusado, indigno [1] (At 6.8; Rm 1.28; 1Co 9.27; 2Co 13.5,6,7; 2Tm 3.8; Tt 1.16). É uma palavra reservada para os apóstatas e demais não crentes, uma palavra jamais utilizada para descrever os salvos em Cristo.
            Não deveria nos surpreender o fato de que o Apóstolo Paulo pudesse contemplar a terrível possibilidade de que ele mesmo pudesse ser um reprovado. Considerar isso não era outra coisa do que tomar ele próprio do “remédio” que receitava para os outros crentes: “Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos. Não percebem que Cristo Jesus está em vocês? A não ser que tenham sido [2] reprovados!” (2Co 13.5). Paulo era consciente de que outro Apóstolo, antes dele, havia se revelado, finalmente, um apóstata. O auto-exame e a consciência da gravidade dos muitos problemas espirituais aos quais todo crente está exposto não são contraditórios ao fato de que a Bíblia ensina que a salvação não se perde.
            À igreja de Sardes, o Senhor Jesus disse: “O vencedor será igualmente vestido de branco. Jamais apagarei o seu nome do livro da vida, mas o reconhecerei diante do meu Pai e dos seus anjos” (Ap 3.5). Pode parecer que uma das implicações dessa frase é que o Senhor apagará, sim, do livro da vida, os nomes dos não vencedores. No entanto, essa seria uma leitura superficial do texto, conforme as seguintes considerações: 1) Se a Palavra de Deus ensina que a salvação não se perde, Ap 3.5 não pode ensinar o contrário, porque a Bíblia não se contradiz. Uma das normas da correta interpretação das Escrituras é que as passagens difíceis devem ser interpretadas à luz de passagens mais claras e fáceis. 2) A frase que o Senhor utiliza em Ap 3.5 é uma frase metafórica na qual a ideia de apagar um nome do livro da vida é utilizada para transmitir a ideia da perdição daquelas pessoas que não são verdadeiramente crentes. Há outros exemplos desse uso metafórico, entre eles Ex 32.32,33: “Mas agora, eu te rogo, perdoa-lhes o pecado; se não, risca-me do teu livro que escreveste. Respondeu o SENHOR a Moisés: Riscarei do meu livro todo aquele que pecar contra mim”. Neste contexto é claro que a ideia de riscar alguém de um livro é uma forma de expressar a rejeição, sem nenhuma necessidade de que isso implique rejeitar e condenar alguém antes aceito e salvo. 3) Afinal de contas, Ap 3.5 não diz que o Senhor vai apagar do livro da vida o nome de quem quer que seja. O que o Senhor diz, simplesmente, é que não vai apagar do livro da vida o nome do vencedor, isto é, daquele que demonstre ser crente até o fim. Parece um procedimento, no mínimo, duvidoso embasar uma doutrina que contradiz a revelação divina, simplesmente devido a uma suposta interpretação de um versículo do Apocalipse!
            Então, o que é “apostasia”? Com essa pergunta voltamos às passagens bíblicas utilizadas pelos que defendem a perda da salvação, como Hb 6.4-6; 10.26ss; 2Pe 2.20-22; etc. Uma leitura superficial de Hb 6.4-6, por exemplo, poderia levar alguém à conclusão de que ali está sendo ensinada a perda da salvação. Menciona-se aqueles que “uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, [e] tornaram-se participantes do Espírito Santo, experimentaram a bondade da palavra de Deus e os poderes da era que há de vir”... tudo isso parece ser uma descrição dos verdadeiros crentes. No entanto, tais palavras poderiam muito bem ser um resumo da biografia de Judas Iscariotes! Foi escolhido, junto com os outros onze, dentre todos os discípulos de Jesus, para ser um Apóstolo [3]. Esteve três anos e meio vivendo com o Senhor e com seu círculo íntimo de seguidores. Foi testemunha da vida perfeita e sem pecado do Filho de Deus. Não somente viu os milagres de Jesus, mas participou de alguns deles, curando enfermos e expulsando demônios! Que privilégio! Mas tudo isso serviu apenas para aumentar sua condenação. Sim, Judas Iscariotes é o exemplo supremo da apostasia descrita em Hb 6.4-6; 10.26ss; 2Pe 2.20-22; etc.
            E isso sem mencionar Hb 6.7,8. Quantas vezes os que defendem a perda da salvação se esquecem de versículos como esses! A ilustração da apostasia que nos dá o autor de Hebreus deveria ser o último prego no caixão da teoria da perda da salvação. O apóstata, diz o autor, é como a terra que, depois de ser abençoada com chuva em abundância, somente produz espinhos e ervas daninhas. Por acaso essa terra representa o crente em Cristo Jesus?! É evidente que não. Representa, sim, o cristão aparente, que, apesar de sua profissão de fé, não apresenta nenhuma evidência de conversão. “Pelos seus frutos vocês os reconhecerão” (Mt 7.20).
            Creio que uma das principais razões pelas quais alguns creem que na perda da salvação é devido ao conceito pobre e superficial que essas pessoas têm a respeito da conversão. Se aceitam qualquer “movimento para o Evangelho” como sinal infalível de uma conversão, não é estranho que caiam num dilema. Porque se a pessoa em questão volta e se afasta do Evangelho, o que pensar? Que ela perdeu sua salvação? Que continua sendo cristã? Ou que nunca se converteu? Claro que uma confissão de fé aparentemente sincera deve ser motivo de alegria, porém é uma atitude sábia “dar tempo ao tempo” e esperar pelos frutos que demonstram a verdadeira conversão.
            Devemos ter em mente que quem salva é Deus, e aqueles que são salvos por Deus são também guardados por Deus. Jesus Cristo disse: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão; ninguém as poderá arrancar da minha mão. Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; ninguém as pode arrancar da mão de meu Pai”. É difícil imaginar uma declaração mais contundente a respeito da segurança da salvação!
            Se a salvação dependesse, em última instância, de nós mesmos, não somente poderia ser perdida – nem ao menos poderia ser obtida! Mas como depende de Deus – do Deus soberano cujos propósitos são infalíveis, do Deus Todo-Poderoso que pode fazer tudo o que deseja, do Deus que sempre conclui aquilo que começa – nenhuma das verdadeiras “ovelhas” do Senhor poderá perder-se! Bendita segurança!


            O CARÁTER DE DEUS

            O Conhecimento de Deus

            “Deus escolheu aquelas pessoas que Ele sabia que iriam crer”.
            Com esse argumento muitos crentes tentam conciliar dois ensinos bíblicos aparentemente irreconciliáveis: 1) Que “Deus não trata as pessoas com parcialidade” (At 10.34); e 2) que Deus, antes da fundação do mundo, predestinou uma parte dos seres humanos para a salvação (Rm 8.28-30; Ef 1.3-5; etc). A “solução” oferecida por esse argumento é o conhecimento prévio de Deus. Deus é onisciente: sabe todas as coisas. Portanto, Deus sabia quem haveria de crer em Seu Filho, e a esses que Ele sabia que haveriam de crer, Ele predestinou e escolheu para a salvação, não com parcialidade, mas simplesmente utilizando o conhecimento que Ele tinha de antemão das decisões e ações humanas.
            Essa explicação parece razoável e aparenta ter uma base bíblica. Em Rm 8.29, o Apóstolo Paulo diz a respeito de Deus, que “aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou...”. E outro Apóstolo, Pedro, descreve os crentes como “escolhidos de acordo com o pré-conhecimento de Deus Pai” (1Pe 1.2). E, aplicando essa mesma ideia ao caso daqueles que não creem e se perdem, o Apóstolo João nos diz que “Jesus sabia desde o princípio quais deles não creriam e quem o iria trair” (Jo 6.64). Tudo isso parece apoiar a ideia de que a base da eleição divina para a salvação foi o seu conhecimento prévio. Mas será mesmo?
            Ninguém que crê na Bíblia pode questionar o fato do conhecimento prévio de Deus. Deus sempre soube de todas as coisas. Ele é onisciente. Claro que Ele sabia “desde a eternidade passada” quem, ao longo do tempo, iria ouvir a Palavra e crer em Seu Filho. Mas a questão é se esse conhecimento prévio de Deus foi a base, o fator determinante, em sua eleição de alguns (não de todos) para a salvação.
            Em Rm 8.29 há pelo menos duas razões para rejeitar a teoria que estamos considerando: 1) Trata-se da palavra conhecer, não “saber”. 2) Não se trata de fatos que Deus sabe de antemão (como, por exemplo, quem iria crer em Cristo), mas sim de pessoas que Deus conhece de antemão. O que o Apóstolo Paulo está dizendo aqui é que, de todos os seres humanos de todos os tempos, havia alguns (e sabemos que são tantos que ninguém pode contá-los, de acordo com Ap 7.9) a quem Deus, desde a eternidade, conhecia e amava de um modo especial. Obviamente, em outro sentido, Deus conhecia, desde a eternidade, todas as pessoas, e não somente algumas. Mas é evidente que Paulo se refere a uma parte dos seres humanos, não a todos: aos que “de antemão conheceu”. É conhecimento de relação, não de informação. Deus, diz o Apóstolo, “predestinou”, “chamou”, “justificou” e “glorificou” (Rm 8.29,30) aquelas pessoas sobre quem Ele já (desde a eternidade) havia posto esse Seu amor especial: aos que “de antemão conheceu”.
            À primeira vista, as palavras do Apóstolo Pedro: “escolhidos de acordo com o pré-conhecimento de Deus” (1Pe 1.2) parecem tão claras e contundentes que poderiam ser o lema daqueles que defendem a ideia que estamos considerando aqui. Mas a palavra-chave aqui, “presciência” (ou “pré-conhecimento” na Nova Versão Internacional), traduz uma palavra grega cuja raiz é a palavra “conheceu” em Rm 8.29. Ou seja, novamente a Palavra está falando não de coisas que Deus sabia, mas de pessoas que Deus conhecia.
            E Jo 6.64? (“Pois Jesus sabia desde o princípio quais deles não criam e quem o iria trair”). Aqui o “saber” em questão é realmente o “saber” de informação, e não o “conhecer” de relação. Mas o que chama a atenção nesse texto é precisamente o fato de que o Senhor tenha escolhido aqueles que escolheu apesar do que Ele sabia! O Senhor escolheu como um dos Seus doze seguidores mais íntimos alguém que Ele “sabia desde o princípio” que iria trai-Lo.
            Afinal de contas, dizer que Deus escolheu para a salvação aqueles que Ele sabia que creriam é fazer da fé algo totalmente independente da obra de Deus, e o fator determinante na salvação, quando toda a Bíblia enfatiza constantemente que a salvação é obra de Deus, e a fé é o efeito, não a causa, dessa obra. Deus decidiu salvar alguns sem que houvesse nada nessas pessoas que pudesse inclinar a decisão divina a seu favor, nem mesmo uma fé prevista. Ele enviou Seu Filho ao mundo para concretizar a salvação quando nos via não como crentes em potencial, mas como inimigos. E logo enviou o Espírito Santo aos nossos corações impotentes e mortos para nos vivificar, a fim de que pudéssemos crer e ser salvos. E quando estivermos no Céu, jamais cogitaremos cantar sobre como nossa fé, prevista por Deus desde a eternidade passada, foi o fator decisivo em nossa salvação! Ao invés disso, cantaremos de como Deus, não por nada positivo que tenha visto em nós, mas por pura e soberana graça, decidiu nos salvar – e nos salvou!

A justiça de Deus

“Se a predestinação é verdadeira, Deus não é justo.”
Se Deus “não trata as pessoas com parcialidade” (At 10.34), isto é, se não há em Deus nenhum tipo de discriminação, como podemos crer que Ele, desde a eternidade, predestinou alguns para a salvação, e os demais para a condenação? Não parece justo, não é mesmo? Parece um caso claro de discriminação.
Mas o que a Bíblia está dizendo quando afirma que Deus não trata as pessoas com parcialidade? Evidentemente não está dizendo que Deus trata da mesma forma todas as pessoas, em todos os sentidos, já que nesse caso Deus deveria dar a todos os seres humanos exatamente os mesmos anos de vida, as mesmas oportunidades em tudo, as mesmas alegrias, os mesmos sofrimentos, os mesmos dons e talentos, a mesma inteligência e capacidade, etc, etc. Além disso, a maioria dos pais que têm mais de um filho normalmente não tratam seus filhos como se fossem exatamente iguais, antes, levam em consideração as diferentes características, necessidades e circunstâncias de vida de cada um. E isso é absolutamente normal! Portanto, para começar, devemos esclarecer que “não tratar as pessoas com parcialidade” não é sinônimo de tratar a todos de modo exatamente igual.
Quando a Bíblia afirma que Deus não trata as pessoas com parcialidade, quer dizer que Deus não salva alguém por alguma característica própria da pessoa que a faça diferente dos demais. Por exemplo, Deus não salva alguém por ser negro ou branco, rico ou pobre, doutor ou analfabeto. Se o fizesse, isso sim seria discriminação! Seria favorecer alguns, prejudicando outros, sobre a base de alguma característica pessoal que atraísse o interesse de Deus. E é exatamente assim que Deus não age.
Esclarecido esse fato, vamos ao cerne da questão: como Deus escolheu aqueles que iria salvar? O fez sem levar em consideração o fato da Queda e do pecado, ou levou em consideração esse fato? Essa pode parecer uma pergunta mais teológica do que prática, mas nada mais longe da verdade pensar desse modo. A verdadeira teologia, quando bem compreendida, sempre é prática (algo que os teólogos liberais e seus imitadores esqueceram totalmente). Se Deus tivesse escolhido para a salvação um certo número de pessoas, sem mais nem menos, nos pareceria injusto. Mas, em meu entender, Deus não fez isso. O que Ele fez foi contemplar desde a perspectiva de Sua onisciência a humanidade arruinada pela Queda, e, por pura misericórdia, decidiu colocar em marcha um plano de salvação. As pessoas que escolheu, as escolheu dentre a massa de pecadores caídos e perdidos.
Em outras palavras, Deus não fez a “seleção” dentre pessoas moral e espiritualmente “neutras”, mas sim dentre pecadores culpados. A lógica bíblica exige esta conclusão, porque a palavra “salvar” implica um estado de perdição do qual seja preciso salvar. Quando Deus predestinou aos que iria salvar, estava pensando na raça humana como perdida, não em sua condição original de santidade perfeita, porque, neste caso, que sentido teria preparar um plano de “salvação”?
Deus não tinha obrigação de salvar quem quer que seja. E isso pelo menos por duas razões: em primeiro lugar, porque o Criador é livre para fazer o que bem entender com aquilo que Ele criou; e em segundo lugar, porque a Queda desqualificou totalmente a humanidade. Deus não obrigou o homem a pecar; ao contrário, deu instruções claras ao homem para que ele não pecasse. Os únicos culpados da Queda foram Satanás e o primeiro casal humano, Adão e Eva. Então, quando Deus, o Juiz justo, desde a Sua perspectiva onisciente na “eternidade passada”, viu o homem caído e pecador, Sua única “obrigação”, longe de ter misericórdia e perdoar, era ser coerente com Sua própria santidade e justiça e punir o pecado. E se tivesse decidido, em vez de colocar em marcha o plano da salvação, deixar que as exigências de Sua justiça seguissem seu curso, ninguém seria salvo, e Deus continuaria sendo perfeitamente justo. Mas Ele não fez isso. As Pessoas da Trindade fizeram um pacto, pelo qual o Pai enviaria o Filho e o Filho viria para salvar um número incontável de seres humanos da condenação que eles mesmos, assim como os demais, certamente mereciam.
Mas aqui voltamos à dificuldade que pretendemos superar: se essas pessoas escolhidas dentre a massa da humanidade caída mereciam a mesma condenação de todos os não-escolhidos, por acaso não foi injusto da parte de Deus escolher somente elas, e não a todo o mundo? A melhor resposta que podemos dar a essa pergunta é a mesma do Apóstolo Paulo:
“E então, que diremos? Acaso Deus é injusto? De maneira nenhuma! Pois ele diz a Moisés: ‘Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixao’. Portanto, isso não depende do desejo ou do esforço humano, mas da misericórdia de Deus. Pois a Escritura diz ao faraó: ‘Eu o levantei exatamente com este propósito: mostrar em você o meu poder, para que o meu nome seja proclamado em toda a terra’. Portanto, Deus tem misericórdia de quem ele quer, e endurece a quem ele quer. Mas algum de vocês me dirá: ‘Então, por que Deus ainda nos culpa? Pois, quem resiste à sua vontade?’. Mas quem é você, ó homem, para questionar a Deus? ‘Acaso aquilo que é formado pode dizer ao que o formou: Por que me fizeste assim?’ O oleiro não tem direito de fazer do mesmo barro um vaso para fins nobres e outro para uso desonroso? E se Deus, querendo mostrar a sua ira e tornar conhecido o seu poder, suportou com grande paciência os vasos de sua ira, preparados para a destruição? Que dizer, se ele fez isto para tornar conhecidas as riquezas de sua glória aos vasos de sua misericórdia, que preparou de antemão para glória, ou seja, a nós, a quem também chamou, não apenas dentre os judeus, mas também dentre os gentios?” (Rm 9.14-24).
O que significa isso? Que a razão pela qual Deus faz o que faz é para a Sua própria glória, como resultado da manifestação de todos os Seus atributos – inclusive a misericórdia e a ira.
O enfoque antropocêntrico do pensamento dominante dos últimos séculos nos afetou mais do que imaginamos. Em consequência, muitos crentes não aceitam soluções e explicações que recoloquem Deus no centro do cenário. Mas a verdade proclamada pela Bíblia é que nós não somos o centro dos planos de Deus, nem a nossa felicidade é o fim principal de Seus planos. Deus faz tudo o que faz para a Sua própria glória. O centro dos planos de Deus é Deus. O fim principal dos planos de Deus é Deus. Deus faz tudo para a Sua própria glória.
Nós dizemos isso de vez em quando, mas aceitá-lo em todas as suas consequências é extremamente difícil para muitos, porque é tirar o homem do papel principal no roteiro da história do universo, e escrever o nome de Deus como protagonista principal.
Mesmo que não compreendamos totalmente, a resposta para algumas das perguntas mais difíceis de todas: Por que Deus permitiu a existência do mal? Por que Ele permitiu a Queda? Por que não predestinou todos para a salvação? Por que existe um inferno de castigo consciente e sem fim?; etc, é que Deus faz aquilo que mais glorifica a Deus.
Tudo o que Deus permitiu deu oportunidade para a manifestação mais clara de todos os Seus atributos. A cruz de Cristo é a solução de Deus para o problema do pecado, que se originou na Queda. Por acaso poderiam ser vistos com a mesma intensidade aqueles atributos de Deus manifestados na cruz, se o pecado e a cruz não tivessem existido?! Ou se existisse somente um Céu, mas não um inferno, Deus poderia ser louvado pela Sua perfeita santidade, justiça, misericórdia e ira? Claro que mesmo nossas melhores respostas podem não ser totalmente satisfatórias, devido à complexidade de tais questões e às nossas mentes finitas, mas é nosso dever como portadores da imagem e semelhança de Deus ir até onde possamos ir.
Na profecia de Ezequiel o Senhor se defende da acusação de Seu povo: “Contudo, os seus compatriotas dizem: ‘O caminho do Senhor não é justo’. Mas é o caminho deles que não é justo” (Ez 33.17; cf. 18.21-29). Se há algo que nós, seres humanos, não somos os mais indicados para fazer, é questionar, ou mesmo negar, a justiça de Deus. Crer em Deus, ao menos no Deus da Bíblia, é crer em Sua justiça. Não deveriam nos surpreender os muitos relatos da injustiça dos “deuses” feitos à imagem e semelhança do homem. Mas dificilmente poderia haver maior contradição do que um Deus (com D maiúscula) injusto.
Será que somos tão justos que podemos colocar nosso Criador no banco dos réus e julgá-Lo por sua suposta injustiça? A Bíblia ensina que Deus é justo, “tudo o que ele faz é certo, e todos os seus caminhos são justos” (Dn 4.37). Logo, se a Bíblia também ensina que Ele predestinou alguns para a salvação, deixando os outros na perdição, essa predestinação deve ser justa, ainda que nos seja difícil ou mesmo impossível de entender em toda a sua plenitude. Sem dúvida, é muito difícil para nós entender alguns elementos da justiça de Deus, mas em vez de acusá-Lo de injustiça, deveríamos ter humildade suficiente para reconhecer 1) que o nosso senso de justiça está inevitavelmente distorcido pelo pecado, e portanto não estamos em condições de julgar a justiça de Deus; 2) que a justiça de Deus, assim como os demais atributos de Deus, é o objeto, não em primeiro lugar de nossa razão, mas de nossa fé (cf. Hb 11.1); e 3) se Deus é justo, e se é justo em tudo o que faz, e se predestinou uma parte da humanidade para a salvação, então essa predestinação é justa, mesmo se não entendemos como pode ser justa.

O amor de Deus

“Deus não ama todas as pessoas?”
A maioria dos cristãos não hesitaria em afirmar o amor de Deus por todas as pessoas sem exceção. Consideram isso como um dos principais pilares da fé cristã e do Evangelho de Cristo.
No entanto, ainda que pareça estranho para alguns, a resposta à pergunta se Deus ama a todas as pessoas ou não, seja qual for, não encerra o assunto nem soluciona todas as dificuldades. Porque, se dissermos que Deus ama a todas as pessoas, a Palavra de Deus deixa muito claro que Deus não ama a todos exatamente da mesma maneira: Ele ama o Seu povo, a Sua igreja, a Seus filhos, aos verdadeiros crentes, com um amor especial. Na declaração divina em Ml 1.2,3 (“Eu amei Jacó, mas rejeitei Esaú”, que mais tarde o Apóstolo Paulo citaria em Rm 9.13), alguém pode tentar “diluir” a rejeição (no hebraico, literalmente: “odiei Esaú”), ou seja, o ódio de Deus contra Esaú, mas dificilmente alguém poderá interpretar Ml 1.2,3 a ponto de afirmar que Deus amou a Jacó e a Esaú da mesma maneira!
E quem pode negar que o mesmo tipo de distinção no coração de Deus é visto em toda a Bíblia? Consideremos o caso dos israelitas no Egito: por acaso não é possível perceber claramente a diferença fundamental entre o amor de Deus para com os israelitas e por outro lado Sua atitude, Seus sentimentos, para com os egípcios? Qual a explicação para isso? “Pois vocês são um povo santo para o SENHOR, o seu Deus. O SENHOR, o seu Deus, os escolheu dentre todos os povos da face da terra para ser o seu povo, o seu tesouro pessoal. O SENHOR não se afeiçoou a vocês nem os escolheu por serem mais numerosos do que os outros povos, pois vocês eram o menor de todos os povos. Mas foi porque o SENHOR os amou e por causa do juramento que fez aos seus antepassados. Por isso ele os tirou com mão poderosa e os redimiu da terra da escravidão, do poder do faraó, rei do Egito” (Dt 7.6-8). E esse amor especial pode ser rastreado e acompanhado ao longo dos séculos e dos livros do Antigo Testamento, apesar das contínuas rebeliões do povo de Israel contra o Senhor. E quando chegamos à era do Novo Testamento, com as extraordinárias mudanças espirituais causadas pela morte e ressurreição de Cristo e pela vinda do Espírito Santo no dia de Pentecoste, permaneceu sem mudança o fato essencial de que o Senhor tem um povo especial sobre a face da terra. A partir do Novo Testamento, esse povo especial seria um povo internacional, não mais limitado a uma única nação. E nesta era do Novo Testamento, da qual fazemos parte, Deus continua amando de modo especial o Seu povo.
Quantas vezes ouvimos, ou lemos, as palavras: “Deus odeia o pecado, mas ama o pecador”? Tais palavras parecem agradáveis, mas o fato é que todas as vezes em que a Palavra de Deus nos diz que Deus odeia, deteste ou aborrece, na maioria das vezes o objeto do ódio divino não é o pecado, mas sim o pecador!
Podemos falar da “graça comum” e dizer que o Senhor é bom para com todos (Sl 145.9) e que “faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mt 5.45), e podemos chamar isso de “amor”, mas não podemos fugir do fato fundamental de que Deus reserva um “amor especial” para aqueles que pertencem ao Seu povo.

A vontade de Deus

“Por acaso a Bíblia não afirma que Deus quer que todo mundo seja salvo?”
Sim, diz. Alguns dos textos mais claros a respeito são os seguintes: Ez 33.11: “Juro pela minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem de seus caminhos e vivam. Voltem! Voltem-se dos seus maus caminhos! Por que o seu povo haveria de morrer, ó nação de Israel?”; 1Tm 2.3,4: “Isso é bom e agradável perante Deus, nosso Salvador, que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade”; e 2Pe 3.9: “O Senhor não demora em cumprir a sua promessa, como julgam alguns. Ao contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento”.
Mas quando a Bíblia fala do que Deus quer, ou da “vontade de Deus”, do que está falando? Na prática, muitos cristãos utilizam essa última expressão no sentido da “vontade de Deus para a minha vida”. Muitas livrarias cristãs estão cheias de livros que pretendem oferecer ajuda para descobrir a “vontade de Deus para a sua vida”.
Essa forma de pensar sobre a vontade de Deus está tão arraigada em muitos círculos cristãos que é considerada bíblica, sem maiores questionamentos. Mas será bíblica mesmo? Onde a Bíblia fala da vontade de Deus dessa forma? O fato é que a Bíblia fala da vontade de Deus, ou do que Deus quer, de duas maneiras muito diferentes. O texto bíblico que melhor resume essas duas maneiras é Dt 29.29: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, o nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei”. Deus tem uma vontade “secreta” e uma vontade “revelada”. O que isso significa, e qual a diferença entre elas?
O termo vontade revelada de Deus refere-se ao modo como Deus quer que vivamos. Ele revelou a Sua vontade para nossa conduta como seres humanos. Temos um resumo dessa vontade nos Dez Mandamentos e um resumo desse resumo nas palavras do Senhor Jesus Cristo: “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de todas as suas forças. (...) Ame o seu próximo como a si mesmo” (Mc 12.30,31). Mas, além desses resumos de como Deus quer que vivamos e nos comportemos, em todas as páginas da Bíblia encontramos exemplos (às vezes mais gerais e às vezes mais específicos) dessa vontade de Deus que Ele nos revelou. Em certo sentido, cada vez que nos encontramos com qualquer tipo de exortação ou ensino com implicações para nossa conduta – seja para nosso comportamento exterior ou para nossas palavras ou para o nosso eu mais íntimo – estamos diante da “vontade de Deus”, Sua vontade revelada.
Então, a que se refere a vontade secreta de Deus? Tal como o nome indica, trata-se de uma dimensão da vontade de Deus que Ele não quis dar a conhecer, pelo menos não em todos os detalhes. É o que costumamos chamar de “o plano de Deus”, “o propósito de Deus”. O verdadeiro Deus não é um relojoeiro celestial que, segundo alguns filósofos e teólogos, depois de criar o relógio chamado universo e de dar-lhe corda, foi embora e o deixou para que a partir de então funcionasse sozinho. Não, o Deus que se revelou nas Escrituras é um Deus que tem um plano eterno, um plano que Ele colocou em marcha na criação do universo e que vai realizando no tempo e no espaço por meio de Sua providência e de Sua obra de salvação, e que um dia consumará na grande cena final, quando a história mergulhar na eternidade.
Quais são as principais diferenças entre essas duas “vontades” de Deus, ou melhor, entre essas duas expressões da vontade única de Deus? Além do que já foi dito, a diferença mais importante é que a “vontade revelada” de Deus tem a ver com o que Deus quer que nós façamos (ou que não façamos), e sua “vontade secreta” tem a ver com o que Deus decidiu, desde a eternidade, o que Ele mesmo fará. E outra diferença importante é que a vontade “revelada” de Deus não é infalível, mas sua vontade “secreta”, sim. Por exemplo, um dos Dez Mandamentos diz: “Não matarás”, mas como qualquer um pode ver, esse mandamento – a expressão da vontade de Deus para o comportamento do homem – é quebrado em grande escala, diariamente! Aquilo que Deus disse que não quer que seja feito, é feito constantemente; e o que Ele quer que façamos, muitas vezes deixamos de fazer. Sua vontade, nesse sentido, não é infalível, pois o homem não a cumpre. No entanto, a vontade “secreta” de Deus é sempre infalível. Aquilo que Deus, desde a eternidade, decidiu que faria, Ele o faz. É disso que tratam textos bíblicos como Is 46.10: “Desde o início faço conhecido o fim, desde tempos remotos, o que ainda virá. Digo: Meu propósito permanecerá em pé, e farei tudo o que me agrada”; Dn 4.35: “Todos os povos da terra são como nada diante dele. Ele age como lhe agrada com os exércitos dos céus e com os habitantes da terra. Ninguém é capaz de resistir à sua mão ou dizer-lhe: O que fizeste?”; Ef 1.11: “Nele fomos também escolhidos, tendo sido predestinados conforme o plano daquele que faz todas as coisas segundo o propósito da sua vontade”; apenas para citar três de muitos textos que poderíamos incluir. Essas passagens não tratam daquilo que Deus quer que façamos, mas daquilo que Ele mesmo, soberana e infalivelmente, decidiu fazer.
É dessa “vontade secreta” de Deus que tratam passagens como Rm 9, onde, entre outras coisas, Paulo fala da eleição soberana de Deus para com Israel, de Seu amor especial para com Jacó, de Seu direito soberano de ter compaixão de quem Ele quiser e dos “vasos de ira” e “vasos de misericórdia” preparados por Deus, e onde diz acerca da salvação: “Portanto, isso não depende do desejo ou do esforço humano, mas da misericórdia de Deus” (v. 16). E antecipando a objeção comum de que isso não parece justo, o Apóstolo responde: “Mas quem é você, ó homem, para questionar a Deus? Acaso aquilo que é formado pode dizer ao que o formou: ‘Por que me fizeste assim?’. O oleiro não tem direito de fazer do mesmo barro um vaso para fins nobres e outro para uso desonroso?” (vv. 20,21).
Essa importante diferença entre os dois lados da vontade de Deus – o lado revelado e o lado secreto – poderia ser resumida da seguinte maneira: Deus não aprecia a perdição de ninguém, nem é para Ele, como Criador do homem e de cada ser humano em particular, um motivo de alegria a condenação de tantos seres humanos (portadores de Sua imagem e semelhança) à pena de eterna perdição, mediante a qual ficarão sujeitos à “separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder” (2Ts 1.9). Porém, aquilo que Ele não aprecia, o decretou na eternidade, com vistas a um objetivo maior. Portanto, ainda que seja um mistério para nós, o plano eterno de Deus (esse “propósito da sua vontade” do qual fala Paulo em Ef 1.11) inclui a perdição dos que se perderão, e assim será, porque esse plano de Deus, essa misteriosa vontade secreta de Deus, é infalível: nada nem ninguém pode deter a Deus.
Aquilo que hoje pode nos parecer correndo em linhas paralelas (um lado revelado e um lado secreto da vontade de Deus), algum dia o veremos em sua perfeita harmonia e convergência.

O propósito de Deus

“A Bíblia diz claramente que Cristo morreu por todos.”
Para a maioria dos cristãos a morte de Cristo por todos é algo tão evidente que sem isso dificilmente poderiam aceitar o Evangelho. Tanto é assim que uma das maneiras mais comuns de evangelizar é dizer ao descrente: “Deus te ama e Jesus morreu por você”. No entanto, talvez para surpresa de alguns, essas palavras tantas vezes repetidas não se encontram em nenhuma parte da Bíblia. E os Apóstolos certamente não evangelizavam dessa maneira.
O que sim, encontra-se na Bíblia, é a frase: “um morreu por todos” (2Co 5.14,15). E há outros textos bíblicos que parecem dar a entender a mesma coisa: “Estava chegando ao mundo a verdadeira luz, que ilumina todos os homens” (Jo 1.9). “Porque Deus tanto amou o mundo...” (Jo 3.16). “...O Salvador de todos os homens, especialmente dos que creem” (1Tm 4.10). “Porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (Tt 2.11). “...Jesus... pela graça de Deus, em favor de todos, experimentasse a morte” (Hb 2.9); etc. Incontáveis sermões foram pregados afirmando, para a satisfação de muitos ouvintes, que “quando a Bíblia diz ‘todos’, quer dizer ‘todos’!”.
À luz de tantos textos aparentemente tão claros (e os citados acima são apenas uma parte dos que existem), é possível manter como bíblica a doutrina de uma expiação feita somente para aqueles que foram predestinados para a salvação? Consideremos os seguintes argumentos a respeito:

A expiação no Antigo Testamento
Durante o período do Antigo Testamento, nunca houve nenhum indício de que os sacrifícios de animais que eram oferecidos em Israel, sacrifícios que simbolizavam e antecipavam o perfeito sacrifício de Cristo, fizessem expiação por todos os habitantes do mundo.

A família de Eli
Sabemos de pelo menos um caso dentro de Israel do qual o Senhor disse (1Sm 3.14): “Por isso jurei à família de Eli: Jamais se fará propiciação pela culpa da família de Eli mediante sacrifício ou oferta”.

É verdade que “todos” significa “todos”?!
Dizer que quando a Bíblia diz “todos” quer dizer “todos”, simplesmente não é verdade. É provável que na maioria dos textos bíblicos nos quais aparece a palavra “todos”, a interpretação de que refere-se a “todas as pessoas de todos os tempos” seja impossível.

E o mundo?
Essa frase tem muitos significados e matizes diferentes na Bíblia. Sem ir mais longe, nos escritos do Apóstolo João é frequente a ideia de “mundo” como aquilo que está oposto a Deus e ao Seu povo: “Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes me odiou” (Jo 15.18), etc. E como poderíamos entender que o “Apóstolo do amor” pudesse escrever: “Não amem o mundo nem o que nele há” (1Jo 2.15), se não reconhecendo esses diferentes matizes e significados?

João 3.16
Esse texto, sem dúvida o mais conhecido de toda a Bíblia, é frequentemente citado como se fosse a última palavra sobre este assunto. Mas o que ele realmente ensina? Fala da grandeza do amor de Deus, é claro, mas também fala de Seu propósito ao enviar Seu Filho unigênito: não enviou Seu Filho para que todo mundo tivesse vida eterna; mas O enviou para que todo aquele que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Isto é, o propósito de Deus foi a salvação de todos os crentes em Seu Filho. Dito de outro modo: Por acaso Jo 3.16 ensina que Deus enviou Seu Filho unigênito para que aqueles que se recusam a crer n’Ele tenham vida eterna? Obviamente não ensina tal coisa.

Expiação universal ou manifestação universal?
Alguns dos textos citados não se referem ao propósito da expiação de Cristo, mas sim ao caráter público e o alcance universal de Sua encarnação. Cristo, “a luz do mundo” (Jo 8.12), “ilumina a todo homem” (Jo 1.9), mas, tristemente, “os homens amaram mais as trevas do que a luz” (Jo 3.19). “Porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (Tt 2.11), mas muitos desses homens (e mulheres) rejeitaram essa manifestação da graça de Deus, e portanto não serão salvos.

“Fogo amigo” teológico!
Às vezes os mesmos textos da Bíblia citados para “demonstrar” que Cristo morreu por todos sem exceção voltam-se contra o próprio Evangelho.
Um exemplo disso é 2Co 5.14, que diz que “um morreu por todos”. Mas o que a frase completa diz é: “Pois o amor de Cristo nos constrange, porque estamos convencidos de que um morreu por todos; logo, todos morreram”. Mas em que sentido todos “morreram”? No contexto Paulo não está falando de morte física, mas da morte para o domínio do pecado (compare com Rm 6.1-14). Se insistimos em interpretar 2Co 5.14 no sentido em que Cristo fez expiação por todos os seres humanos sem exceção, para sermos coerentes deveremos dizer também que todos os seres humanos sem exceção morrem para o domínio do pecado!
Ocorre algo semelhante quanto à frase difícil de Paulo em 1Tm 4.10: “Se trabalhamos e lutamos é porque temos colocado a nossa esperança no Deus vivo, o Salvador de todos os homens, especialmente dos que creem”. Em que sentido o Senhor Jesus é Salvador dos que não creem? Aqui parece mais correto reconhecer que há mais de um sentido no qual o Senhor salva e é Salvador: no livro de Juízes, por exemplo, Deus “salva” Seu povo várias vezes; e em muitos salmos os salmistas atribuem a Deus sua salvação física, militar, etc...

Por quem o Senhor “provou a morte”?
Quanto a essa expressão (Hb 2.9), seria bom continuar lendo: “Ao levar muitos filhos à glória, convinha que Deus, por causa de quem e por meio de quem tudo existe, tornasse perfeito, mediante o sofrimento, o autor da salvação deles” (v.10). Assim, Cristo deveria “levar muitos filhos à glória”, uma clara referência aos crentes, os verdadeiros filhos de Deus. E Cristo é o “autor da salvação deles”: desses filhos que deveria levar à glória. Esse era o propósito de nosso Senhor ao tornar-se homem e “experimentar a morte”: não meramente “tornar possível” a salvação de todos, mas efetivamente salvar todos os verdadeiros filhos de Deus.

“A melhor defesa é o ataque.”
Até aqui temos analisado aqueles textos da Bíblia que a priori aparentam defender uma expiação universal, e oferecemos uma interpretação natural, séria e honesta, que leva em consideração o contexto e que não cria mais problemas do que soluções. Mas o que diremos daqueles textos bíblicos que parecem definir explicitamente as pessoas que foram objeto da expiação do Senhor? “Ele salvará o seu povo dos seus pecados” (Mt 1.21, ênfase acrescentada). “O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (Jo 10.11, ênfase acrescentada). “Cristo amou a igreja e entregou-se por ela” (Ef 5.25, ênfases acrescentadas). E muitas outras passagens.

Cristo morreu para “tornar possível a salvação” ou para salvar de verdade?
Este é o cerne da questão. Se Cristo morreu por todos sem exceção, e a Sua morte realmente fez expiação pelo pecado, afastou a ira de Deus, fez reconciliação com Deus, etc, então a única conclusão lógica seria que todo o mundo foi salvo por Cristo e, portanto, ninguém irá ao inferno. (Foi esse pensamento que levou Karl Barth, ainda que de forma não totalmente decidida, a “flertar” com o universalismo). Portanto, a única maneira de conciliar uma expiação universal com a terrível realidade de um inferno “habitado” é dizer que Cristo, afinal de contas, não salvou ninguém, apenas “tornou possível” a salvação de todos. [Esse é o argumento tortuoso, irracional e repulsivo do arminianismo.] Pois, que sentido teria afirmar que Cristo salvou mesmo aqueles que passarão a eternidade no inferno? Ou Cristo os salvou, ou não salvou. Se os salvou, é impossível que sejam lançados no inferno. Se vão para o inferno, é porque Cristo não os salvou, e, portanto, sua morte não conseguiu obter coisa alguma: não fez expiação pelos pecados, não afastou a ira de Deus, não reconciliou Deus com o homem, etc. E isso significa que, para os pelagianos, semipelagianos e arminianos, o fator determinante na salvação não é o que Cristo fez, mas o que cada um faz. Mas é assim que a Palavra de Deus apresenta a salvação?? Onde está escrito que Cristo somente “tornou possível” a salvação de todos?? Não, o que a Bíblia diz é: “Pelas suas feridas fomos curados” (Is 53.5); “Ele salvará o seu povo dos seus pecados” (Mt 1.21); “Fomos reconciliados com ele mediante a morte de seu Filho” (Rm 5.10); “Ele nos salvou” (Tt 3.5); “Porque, por meio de um único sacrifício, ele aperfeiçoou para sempre os que estão sendo santificados” (Hb 10.14); “Vocês foram redimidos... pelo precioso sangue de Cristo” (1Pe 1.18,19); etc. A Palavra de Deus insiste em falar da morte de Cristo como uma morte que realmente efetuou a salvação, não que meramente “a tornou possível”.

A sinceridade de Deus
“Se Deus já determinou quem irá salvar, seu convite ao Evangelho não é sincero.”
O problema aqui é fácil de resumir: se Deus predestinou, desde antes da criação do mundo, as pessoas que serão salvas, como pode oferecer a salvação de modo indiscriminado a todos? Oferecer a salvação a pessoas que Ele sabe perfeitamente que não serão salvas (porque Ele mesmo as predestinou para não serem salvas), não seria a mais cruel falta de sinceridade?
Como sói acontecer no tocante aos aspectos mais profundos da vontade de Deus, tem havido reações vigorosas nos dois extremos desse dilema. Há aqueles que chegaram à conclusão de que se Deus oferece a salvação para todos, não poderia ter predestinado aqueles que serão salvos. E, no outro extremo, há aqueles que chegaram à conclusão de que se Deus predestinou aqueles que serão salvos, não pode oferecer a salvação a todos.
No entanto, se a nossa maior autoridade nessas questões é a Palavra de Deus, dificilmente poderemos negar o fato da predestinação e nem o fato da oferta universal de salvação. No tocante à primeira, já falamos sobre ela. E quanto à segunda, sem ir mais longe, a “grande comissão” parece ser bem universal! “Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações...” (Mt 28.19); “Vão pelo mundo todo e preguem o evangelho a todas as pessoas” (Mc 16.15). E vemos no livro de Atos precisamente a obediência da igreja primitiva a essa comissão universal.
Como podemos conciliar esses dois ensinos bíblicos (a predestinação e a oferta universal de salvação), sem precisar recorrer a um dos dois extremos mencionados acima? Creio que, mesmo reconhecendo as dificuldades aqui, podemos dizer algumas coisas a respeito.

O fim e os meios
A pregação indiscriminada do Evangelho é o principal meio que Deus escolheu para efetuar a salvação daqueles que Ele predestinou.

“Eleitos Anônimos”
O Senhor não quis revelar de antemão quem são os Seus eleitos. Eles não têm nenhuma etiqueta indicativa! A missão da Igreja não consiste em identificar os eleitos e logo a seguir pregar-lhes o Evangelho, mas sim em pregar o Evangelho “a todas as pessoas” e logo deixar que Deus faça o que desejar com essa pregação.
Nesse contexto é relevante o que diz Is 55.11 sobre a Palavra de Deus: “Assim também ocorre com a palavra que sai da minha boca: ela não voltará para mim vazia, mas fará o que desejo e atingirá o propósito para o qual a enviei”. Essas palavras são comumente citadas como se aquilo que o Senhor quer, e o propósito final pelo qual Ele envia a Sua Palavra, é única e exclusivamente a salvação dos ouvintes. Mas é assim mesmo? Foi assim com a pregação de Isaías? O profeta foi fiel à sua missão, mas qual foi o fruto de seu longo ministério? “Quem creu em nossa mensagem? E a quem foi revelado o braço do Senhor?” (Is 53.1). O Apóstolo Paulo pode nos ajudar aqui: “Porque para Deus somos o aroma de Cristo entre os que estão sendo salvos e os que estão perecendo. Para estes somos cheiro de morte; para aqueles, fragrância de vida” (2Co 2.15,16). Salvar não é o único propósito de Deus para a Sua Palavra; também a utiliza para endurecer e para agravar a culpa “dos que estão perecendo” e selar a sua condenação.

“Deus não quer a morte do ímpio.”
Como foi dito antes, a “vontade de Deus” possui duas vertentes, e uma delas é a Sua vontade “moral”: aquilo que Ele deseja com respeito aos homens. Ele mesmo diz que não deseja a morte do ímpio (Ez 33.11), nem mesmo a morte daqueles ímpios que nunca serão salvos. Foi por isso que o Filho de Deus chorou sobre Jerusalém (Lc 19.41-44), ao pensar no terrível juízo justo que viria sobre seus habitantes. Sim, chorou inclusive pelo justo juízo que viria sobre os perdidos. E nessa mesma atitude também desejou que a salvação fosse oferecida a todos.

A graça comum
O conhecimento do Evangelho não é somente uma manifestação da graça especial de Deus através da qual salva as suas “ovelhas”; é também uma manifestação de Sua graça comum para com todas as pessoas em geral. Como já vimos, o Senhor é bom para com todos (Sl 145.9), e se é bom fazendo com que “o seu sol” brilhe “sobre justos e injustos” (Mt 5.45), não seria também fazendo chegar o seu Evangelho igualmente a todas as pessoas, ainda que muitas delas não se convertam? Por acaso o conhecimento do Evangelho não tem trazido grandes benefícios à Humanidade, além de ter levado os eleitos de Deus à salvação?

“Coisas encobertas”
“As coisas encobertas pertencem ao Senhor, o nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29). A doutrina da predestinação tem a ver com essas coisas “encobertas”, no sentido em que refere-se ao que Deus faz, e não ao que nós, seres humanos, fazemos. Mas a pregação do Evangelho pertence às coisas “reveladas”, que “pertencem a nós”. Mesmo quando não entendemos o que Deus está fazendo, devemos continuar fazendo aquilo que nos corresponde fazer como criaturas racionais de Deus, e isso inclui pregar o Evangelho “a todas as pessoas”.

Portanto...
Portanto, o fato de que o Senhor decidiu que o Evangelho seja oferecido a todo o mundo não reflete uma falta de sinceridade de Sua parte. A sinceridade é uma das consequências necessárias dos atributos de Deus em geral – Sua santidade, veracidade, fidelidade, imutabilidade, etc. Se Ele não fosse absolutamente sincero, não seria Deus.

CONCLUSÃO

O propósito deste capítulo foi analisar seriamente as objeções às Doutrinas da Graça da parte de muitos que afirmam crer na Bíblia, e responder a essas objeções. Agrupamos essas objeções em duas categorias pois nos pareceu que a maioria delas tem a ver ou com a liberdade humana ou com o caráter de Deus.
É comum os reformados serem acusados de impor seu “sistema teológico” sobre o texto da Bíblia. Reconhecemos a realidade desse perigo não somente em nós, mas em todos os crentes, em toda igreja e denominação, pois ninguém está livre de um “sistema teológico” ou outro. Devemos ter muito cuidado para não forçar a interpretação do texto sagrado para que o mesmo encaixe naquilo que já havia sido decidido que “deveria dizer”.
Não obstante, todos os que cremos na autoria divina (além da humana) das Escrituras nos aproximamos da tarefa da interpretação da Bíblia conscientes do fato de que Deus não se contradiz, e que, portanto, se nós fazemos o texto bíblico entrar em contradição, é porque a nossa interpretação do mesmo está errada. E é nosso dever diante d’Aquele que inspirou os escritores humanos dos livros bíblicos e que “expirou” Sua Palavra através deles, procurar onde está o nosso erro e corrigi-lo. O fato de que há “mistérios” na revelação bíblica, e muitas coisas que desde a nossa perspectiva atual somente podemos conhecer “em parte” (veja 1Co 13.9,12) não justifica que abandonemos a tarefa de chegar a um entendimento mais completo aqui e agora daquilo que o Senhor quis nos dar a conhecer.
A tese deste capítulo, e deste livro em sua totalidade, é que a “fé cristã histórica”, a fé registrada nas grandes confissões de fé históricas, com seu enfoque teocêntrico, sua disposição de prostrar-se em submissão diante da vontade do Deus soberano e a sua insistência numa salvação verdadeiramente determinada por Deus Pai, verdadeiramente efetuada por Deus Filho e verdadeiramente aplicada por Deus Espírito Santo, nos oferece, não uma série de “pontos doutrinais”, mas sim a chave para uma hermenêutica bíblica coerente, e uma visão grandiosa, global e verdadeira dos grandes temas da vida e da eternidade.
              
           NOTAS:

            [1]. MOULTON, Harold K. Léxico Grego Analítico. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 9.
            [2]. Ou: “A não ser que se considerem reprovados!”. As duas traduções são possíveis.
            [3]. Veja Jo 6.70: Então Jesus respondeu: “Não fui eu que os escolhi, os Doze? Todavia, um de vocês é um diabo!”. E Jo 6.64: “Contudo, há alguns de vocês que não creem”. Pois Jesus sabia desde o princípio quais deles não criam e quem o iria trair. Judas nunca foi salvo. E Jesus sabia disso “desde o princípio”. Lástima que os arminianos, pelagianos e semipelagianos não o admitam!

Fonte:
PUIGVERT, Pedro (org.). Una Fe para el III Milenio: el Cristianismo histórico: lo que es y lo que implica. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2002, pp. 56-97.

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