quinta-feira, 13 de agosto de 2009

CRISTIANISMO E PANDEMIA



Relendo as notas de uma resenha que fiz do livro O Crescimento do Cristianismo: um sociólogo reconsidera a história(1), de Rodney Stark, à luz dos acontecimentos recentes, especialmente da “gripe suína” ou “gripe A”, causada pelo vírus H1N1, que tanta preocupação tem causado a todos nós, meu interesse renovou-se pelo trecho da referida obra que trata do comportamento da Igreja durante algumas das maiores catástrofes que já se abateram sobre a raça humana. Stark deixa claro, por meio de sua pesquisa histórica e sua análise sociológica, que os cristãos desde cedo estabeleceram fortes vínculos com os pagãos do Império Romano, inclusive nos períodos históricos menos favoráveis. Pois alguns desses períodos foram marcados por verdadeiras calamidades, as epidemias, que dizimaram a população do Império, vitimando pagãos e cristãos indistintamente, mas dando a estes últimos oportunidades fantásticas de crescimento e aumento de influência, ao mesmo tempo em que enfraqueceram sobremaneira os primeiros, expondo suas deficiências e fragilidades.

No ano de 165, durante o reinado de Marco Aurélio, uma peste mortal assolou o Império Romano, fazendo perecer cerca de um terço ou um quarto da população! Então no ano 251 outra epidemia abateu-se sobre o Império, castigando as áreas rurais tão duramente quanto as cidades. Varíola pode ter sido a primeira; sarampo, a segunda. O que quer que tenham sido, foram nada menos que letais para populações que jamais haviam sido expostas anteriormente a essas doenças, e que foram pegas sem qualquer defesa, seja biológica seja científica, contra elas. Extensas áreas de terras ficaram desabitadas, cidades inteiras pereceram. Para aquela gente indefesa, deve ter parecido o fim do mundo. Na segunda epidemia, a melhor documentada (especialmente por escritores cristãos), calcula-se que 5 mil pessoas tenham morrido diariamente somente na cidade de Roma! O número de mortos deve ter sido ainda maior nas áreas rurais – os campos ficaram desertos e a fome começou a ameaçar uma população já subjugada pela peste. Os pesquisadores acreditam que na cidade de Alexandria podem ter perecido dois terços da população. Se não era o fim do mundo, era com certeza um cartão de visitas do mesmo.

Tais crises, por incrível que pareça, fortaleceram ainda mais o Cristianismo. De fato, a cosmovisão pagã praticamente colapsou em conseqüência da terrível mortandade. Em primeiro lugar, a religião dominante não conseguia explicar satisfatoriamente o que estava acontecendo. Em segundo lugar, os deuses pagãos mostraram-se impotentes e incompetentes para deter a calamidade. Os sacerdotes professavam a ignorância, sem saber se os deuses haviam enviado a tragédia, ou se estavam mesmo envolvidos, ou se estavam ao menos preocupados. Os filósofos não ofereciam respostas, simplesmente creditavam tudo ao acaso, enquanto incoerentemente censuravam a licenciosidade e caducidade do mundo romano. Além disso, uns e outros, bem como a maioria dos pagãos, fosse qual fosse seu nível de instrução, só tinham uma resposta diante da crise: a fuga e o abandono de seus patrícios enfermos. As cidades enchiam-se de mortos. Quem podia, ia embora – como fez o famoso médico da Antigüidade, Galeno, que fugiu apressadamente de Roma, no início da epidemia, para a segurança relativa de sua propriedade rural. A fuga – essa foi a atitude do maior médico de sua época. Quando tornou-se óbvio o caráter contagioso da peste, as pessoas pararam de visitar-se e de acudir aos seus parentes e amigos doentes, simplesmente abandonando-os à própria sorte. As casas ficavam repletas de cadáveres, famílias inteiras morriam sem receber qualquer auxílio. Os corpos eram jogados nas ruas e estradas, empilhados, sem sepultamento digno. Até mesmo os templos enchiam-se de cadáveres. Numa situação dessas, aquela pobre gente começou a descrer de tudo – não fazia diferença crer ou não crer nos deuses, quando se via tanto infortúnio e desespero. O próprio Imperador Marco Aurélio, o Filósofo, seguidor do estoicismo, morreu vitimado pela doença. Era a ruína do sistema de crenças romano, que tombava diante da amplitude e da brutalidade da tragédia.

Mas a reação cristã foi completamente diferente. Os cristãos lançaram-se numa empreitada que para os gregos e romanos parecia loucura rematada – eles simplesmente prestaram auxílio aos doentes, ficaram junto deles, os alimentaram, cuidaram deles, muitas vezes à custa da própria vida. De fato, incontáveis discípulos de Cristo tombaram justamente por entrar em contato com os enfermos – incluindo não poucos líderes e cristãos de renome.

Ocorre que os cristãos estavam simplesmente colocando em prática a doutrina que professavam. Com efeito, Deus demonstrara seu amor por meio do sacrifício, e os seres humanos deveriam demonstrar seu amor mediante o sacrifício de uns pelos outros, independentemente de laços familiares, sociais, culturais, nacionais ou religiosos.

E por incrível que pareça, a atitude cristã de aproximar-se dos enfermos e moribundos para ajudá-los fez com que a taxa de mortalidade dos cristãos começasse a diminuir consideravelmente, se comparada à taxa de mortes entre os pagãos. É que muitos cristãos, ao ajudar os enfermos no início das epidemias, adoeciam, porém sobreviviam porque eles por sua vez também recebiam apoio de seus irmãos na fé. E esses cristãos sobreviventes acabaram formando uma “força-tarefa” de obreiros imunes à doença, preparados para ajudar outras pessoas. Além disso, como haviam muito mais pagãos do que cristãos, obviamente morriam muito mais pagãos do que cristãos. Tudo isso era visto como simplesmente milagroso pelos pagãos – os cristãos ajudavam os enfermos quando todos os outros fugiam; os cristãos não se importavam de perder a vida, sacrificando-a em prol dos enfermos, enquanto os pagãos abandonavam seus parentes moribundos para que morressem à míngua; e muitos cristãos não somente sobreviviam à peste, como ainda por cima tornavam-se imunes a novos contágios – simplesmente não adoeciam mais. Pagãos e cristãos só tinham uma palavra para explicar tudo isso: milagre!

Mas, que tipo de ajuda aqueles cristãos abnegados poderiam oferecer? Simplesmente oferecendo alimento e água, poderiam fazer com que pessoas enfraquecidas pela enfermidade pudessem recobrar as forças e resistir, em vez de morrer simplesmente de inanição, abandonadas à própria sorte. Especialistas em medicina acreditam que um atendimento consciencioso, sem nenhuma medicação, poderia reduzir a taxa de mortalidade em cerca de dois terços ou até mais. Além disso, os cristãos oravam pelos enfermos.

Isso nos leva a outro nível de oportunidade – o contato direto com os pagãos, estabelecendo novos e poderosos vínculos pessoais. Ora, depois das epidemias, muitos pagãos deviam suas vidas e as vidas de seus familiares e amigos aos cristãos. Além de formar novos vínculos e redes de relacionamentos com os cristãos, os pagãos agora viam-se diante de uma nova situação social, na qual seus antigos vínculos com outros pagãos haviam desaparecido, em sua maioria – porque aqueles outros pagãos simplesmente já não existiam mais. Antes, a maioria absoluta de seus vínculos era com outros pagãos – agora, pelo menos metade desses vínculos estava firmemente estabelecida com cristãos. E quantos pagãos converteram-se durante a enfermidade, em seus leitos, enquanto eram carinhosamente tratados pelos seus vizinhos cristãos?

Se essas terríveis crises não tivessem ocorrido, o Cristianismo teria sido privado de importantes oportunidades de crescimento e fortalecimento. Essas pestes mortíferas envenenaram o paganismo, apressando sua queda, ao revelar duramente sua incapacidade para enfrentar tais crises, social ou espiritualmente – incapacidade tornada ainda mais evidente pelo exemplo de auto-sacrifício de seu ousado adversário. A maioria dos pagãos sobreviventes percebeu claramente tudo isso. E quando a poeira baixou, os pagãos viram seus vínculos com os cristãos significativamente aumentados, de modo pleno e irreversível.

Há muito a aprender com a atitude corajosa e abnegada de nossos irmãos do passado. Eles abriram mão da própria segurança, e muitas vezes da própria vida, para viver a sua fé, para demonstrar seu Cristianismo, seu amor pelas pessoas. Dois mil anos passados, a situação atual de nossa sociedade ocidental é, curiosamente, muito parecida com a daquela época e lugar. Temos um “paganismo” florescente em nosso jardim pós-moderno, pós-cristão, neopagão. As pessoas não crêem em coisa alguma e crêem em tudo. O povo está cansado de depositar suas esperanças e aspirações em antigas crenças (quase como o sentimento dos antigos pagãos em relação a seus deuses) e está desejoso de experimentar coisas novas. Há uma crença sincrética – crê-se um pouco em tudo – e descomprometida – hoje correm atrás de um santo católico, amanhã fazem oferendas a entidades afro – bem ao estilo da antiga concepção pagã de religiosidade. Estamos testemunhando, diante de nossos olhos, a evolução de uma espécie de “mercantilismo religioso”, e o mercado está em alta! Há muita demanda e grande e variada oferta. A espiritualidade é mais um objeto de consumo. Hoje consome-se meditação transcendental, amanhã será consumida uma reunião num centro espírita, e depois de amanhã que tal uma reunião numa igreja católica ou evangélica?

O cristianismo, dentro do contexto atual, terá uma oportunidade semelhante à que teve no antigo Império Romano? Como a Igreja está se portando, por exemplo, nestes tempos de pandemia? Nosso Cristianismo está aparecendo – ou estamos nos escondendo uns dos outros como fizeram os antigos pagãos? Em meio a tantas crenças e ao mesmo tempo descrenças que caracterizam nossa época, teria a fé cristã impacto semelhante ao que teve no paganismo clássico? Nossa atitude diante dessa pandemia, resguardadas as devidas proporções, irá honrar nossos antepassados espirituais? Em meio à desinformação, ao medo, ao desinteresse e falta de compromisso que caracterizam nosso tempo, o que o Cristianismo tem a oferecer?

Antes de responder a essas perguntas, precisamos nos lembrar de que o Cristianismo, hoje, não é mais uma novidade. E há agravantes: precisamos olhar para o que muitos grupos, muitos indivíduos e muitas seitas que se auto-intitulam cristãs fizeram e têm feito para desacreditar a fé cristã. Há grupos cristãos (?) que nada mais têm feito perante a sociedade contemporânea, do que desacreditar e ridicularizar o cristianismo. Hoje a igreja cristã tem um desafio talvez até maior do que a igreja primitiva. Não estamos sendo lançados às feras, mas estamos sendo quase que diariamente expostos a escândalos promovidos por “cristãos” de todos os tipos que envergonham a mensagem do evangelho e a tornam praticamente inócua, ao impermeabilizar o povo contra a igreja e a Palavra de Deus.

Nosso coliseu, nossa arena atual, é o picadeiro de um circo de perversidades, blasfêmias, roubalheiras, arrogâncias e multidões de pecados expostos publicamente sem o menor sinal de arrependimento, tudo patrocinado por “cristãos” que buscam a glória de si mesmos acima de tudo. A grande doença que precisamos enfrentar hoje em dia é a doença do falso evangelho e do falso cristianismo que está se disseminando pelo mundo. A igreja cristã está perdendo rapidamente sua credibilidade perante uma sociedade mundanizada, cansada de assistir a semelhantes espetáculos da mais pura degradação religiosa. “Apóstolos” (apóstolos!!!), bispos, pastores, crentes famosos, todos unidos na demonstração mais falsa, cruel e mentirosa – uma caricatura grotesca do verdadeiro Cristianismo.

Temos uma sociedade cada vez mais pagã que adota uma religiosidade utilitária, pós-moderna e relativista. Temos uma igreja que assumiu o rótulo de “evangélica” cuja reputação está cada vez mais manchada pela ação incessante e implacável de falsos mestres. (Os “verdadeiros” mestres, em sua grande maioria, não denunciam os impostores, porque preferem ser politicamente corretos – pós-modernos, portanto – do que biblicamente corretos).

A aplicação prática de tudo o que li em O Crescimento do Cristianismo foi que nós, como Igreja cristã, não podemos perder nosso testemunho, nossa identidade, nossa missão no mundo. Precisamos continuar cuidando dos enfermos! Precisamos continuar nos arriscando! Precisamos continuar perdendo tudo para ganhar nosso próximo para Cristo! Se o sal perder seu sabor, para que servirá? Se a candeia for deixada sob o alqueire, como iluminará? Não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte. A Igreja cristã precisa reassumir sua missão – missão integral – de ir por todo o mundo fazendo discípulos de Jesus Cristo, para a glória de Deus, honrando o evangelho e tendo atitudes dignas do corpo de Cristo. Individualmente, como cristãos herdeiros de uma vasta e preciosa tradição, precisamos honrar a nossa fé e viver de acordo com ela. Se não estamos sendo “perseguidos” de algum modo – zombarias, críticas, ataques pessoais, por exemplo – precisamos, quem sabe, reavaliar nosso compromisso com Cristo e o tipo de vida cristã que estamos vivendo... este mundo está apodrecendo e precisamos salgá-lo. Este mundo está doente e precisamos restaurá-lo!

Por outro lado, vemos muitas denominações completamente indiferentes à herança histórica do cristianismo. Desejosos de “reinventar a roda”, simplesmente não tomam conhecimento do verdadeiro tesouro que constitui o legado patrístico, o legado dos mártires, o legado de grandes pensadores como Agostinho, Tomás de Aquino, o legado dos reformadores, como Lutero, Calvino e tantos outros. Nenhuma religião produziu mentes tão brilhantes quanto o Cristianismo. Que tremendo desperdício não usufruir de suas conquistas! Onde a pregação de Cristo surgiu, surgiram as universidades, os hospitais, as melhorias sociais e culturais, os grandes centros do saber. Uma das maiores tragédias de nossos dias é ver o total descaso – e mais, uma verdadeira atitude de franca hostilidade – para com aqueles que amam e respeitam a tradição cristã genuína, histórica, bíblica e teológica. Até parece que para ser “bíblico” é preciso ser ignorante... um povo que esquece seu passado tem muito pouco a esperar de seu futuro. Como cuidaremos dos enfermos, se não sabemos mais como proceder? Precisamos olhar para os nossos irmãos do passado, que não tiveram por preciosas suas vidas, para auxiliar as pessoas colhidas por tão pavorosa praga.

Este mundo está esperando que os cristãos se levantem como no passado, para causar impacto novamente – mas o impacto sadio, maravilhoso e admirável de um Cristianismo sério, vivo e bíblico.

Os enfermos esperam por nós!

NOTA:

(1). STARK, Rodney. O Crescimento do Cristianismo: um sociólogo reconsidera a História. São Paulo: Paulinas, 2006.

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