Por J. C. RYLE.
"Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras" (1Co 15.3,4).
O Apóstolo Paulo relembra aos coríntios que, entre as coisas que "primeiramente" lhes havia ensinado havia dois grandes fatos sobre Cristo: um era a Sua morte e o outro era a Sua ressurreição. Creio que a passagem nos introduz a dois assuntos extremamente relevantes: 1) Por um lado, precisamos prestar atenção às verdades primordiais que Paulo transmitiu aos coríntios. 2) Por outro lado, precisamos entender as razões que levaram Paulo a colocar essas verdades numa posição tão singularmente proeminente.
I. O que exatamente, então, pregou o Apóstolo "primeiramente" em Corinto? Antes de responder a essa pergunta, devemos compreender a situação de Paulo quando saiu de Atenas e entrou em Corinto.
Estamos diante de um judeu solitário que visita uma grande cidade pagã pela primeira vez, a fim de pregar uma religião inteiramente nova e iniciar uma agressiva missão evangelizadora. É membro de um povo desprezado tanto por gregos quanto por romanos, isolado e afastado de outras nações - em seu pequeno canto da Terra - pelos seus peculiares hábitos e leis, e sem nenhum renome entre os gentios, nem por sua literatura, nem por suas armas, artes ou ciência. "Pessoalmente" esse valente judeu "não impressiona" e sua "palavra", em comparação com a dos retóricos gregos, é "desprezível" (2Co 10.10). Encontra-se quase sozinho numa cidade famosa em todo o mundo, mesmo aos olhos pagãos, pelo seu luxo, imoralidade e idolatria. Esse era o lugar e esse era o homem! Difícil imaginar uma situação mais extraordinária.
E o que esse judeu solitário disse aos coríntios? O que disse a respeito do Fundador da nova fé que ele desejava que aceitassem no lugar de sua antiga religião? Começou dizendo-lhes como Cristo havia vivido e como havia ensinado, operado milagres e falado "como jamais homem algum falou"? Disse-lhes que Cristo havia sido rico como Salomão, vitorioso como Josué ou erudito como Moisés? Nada disso. O primeiro fato que Paulo proclamou a respeito de Cristo foi que Ele tinha morrido, e que Sua morte havia sido do tipo mais desonroso: a morte de um malfeitor, a morte de cruz.
E por que Paulo fez questão de falar primeiramente da morte de Cristo e não de Sua vida? Porque morreu pelos nossos pecados, como Paulo disse aos coríntios. Uma profunda e maravilhosa verdade, uma verdade que se encontra na base da religião que o Apóstolo havia ido pregar! Porque a morte de Cristo não foi a morte de um mártir ou um mero exemplo de abnegação. Foi a morte voluntária de um Substituto divino dos culpados filhos de Adão, por meio da qual Ele fez expiação pelo "pecado do mundo". Foi uma morte de tão extraordinária importância para a situação do pecador diante de Deus, que proporcionou uma redenção completa das consequências da Queda. Em poucas palavras, Paulo disse aos coríntios que, quando Cristo morreu, o fez como representante [e substituto] do pecador, expiando nosso pecado pelo sacrifício de Si mesmo e suportando o castigo que merecíamos: "Pois também Cristo sofreu pelos pecados de uma vez por todas, o justo pelos injustos, para conduzir-nos a Deus" (1Pe 3.18); "Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus" (2Co 5.21). Um mistério grande e maravilhoso, sem dúvida! Mas um mistério para o qual cada sacrifício havia sinalizado, desde a época de Abel. Cristo morreu "segundo as Escrituras".
Outro grande fato com respeito a Cristo que Paulo inseriu em seu ensino foi a ressurreição dentre os mortos. Corajosamente disse aos coríntios que o mesmo Jesus que morreu e foi sepultado saiu vivo da sepultura no terceiro dia, e que muitas testemunhas O viram, tocaram n'Ele, falaram com Ele em pessoa. Por meio desse assombroso milagre demonstrou, como frequentemente havia dito que faria, que era o prometido e há tanto tempo esperado Salvador, que Deus o Pai havia aceitado a satisfação pelos pecados por meio de Sua morte, que tinha completado a obra da nossa redenção e que a morte, assim como o pecado, era um inimigo vencido. Em resumo, o Apóstolo ensinou que havia ocorrido o maior dos milagres, e que, com semelhante Fundador da nova fé que tinha vindo proclamar, primeiro morrendo pelos nossos pecados e depois ressuscitando para nossa justificação, não havia nada impossível nem faltava coisa alguma para a salvação do homem.
Essas eram as duas grandes verdades que Paulo disse com prioridade quando iniciou sua campanha como mestre cristão em Corinto: a morte substitutiva de Cristo pelos nossos pecados e Sua ressurreição do sepulcro. Duas verdades incomparáveis. Sem dúvida, adotar essa tática seria uma dura prova para a fé e para a coragem de um homem culto e erudito como Paulo. A carne e o sangue resistem a isso. Ele mesmo disse: "Pois decidi nada saber entre vocês, a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado. E foi com fraqueza, temor e muito tremor que estive entre vocês" (2Co 2.2,3). Pela graça de Deus, ele não desistiu.
O caso de Corinto não foi único. Onde quer que fosse o Apóstolo dos gentios, pregava a mesma doutrina com prioridade. Dirigiu-se a ouvintes heterogêneos, a pessoas com mentalidades muito diferentes. Mas sempre valia-se do mesmo remédio, seja em Jerusalém, seja em Antioquia, seja na Pisídia ou em Icônio, em Listra, Filipos ou em Tessalônica, seja Beréia, Atenas, Éfeso ou em Roma. Esse remédio era a história da Cruz e da Ressurreição. Permeia todos os seus sermões e epístolas. Mesmo Festo, o governador romano, quando conversa com Agripa sobre o caso de Paulo, descreve o Apóstolo falando de "um certo Jesus, já morto, o qual Paulo insiste que está vivo" (At 25.19).
a) Vejamos agora quais eram os princípios essenciais dessa "religião" que saiu há tantos séculos da Palestina e que mudou o mundo. O maior dos descrentes não pode negar o efeito que o Cristianismo produziu no gênero humano. O mundo antes e o mundo depois do Cristianismo são tão diferentes como a luz da escuridão, como a noite e o dia. Foi o Cristianismo que arruinou a idolatria pagã e esvaziou seus templos, que deteve os combates dos gladiadores, elevou a posição da mulher e melhorou as condições das crianças e dos pobres. Esses são fatos que com certeza podem desafiar os inimigos da fé cristã. São fatos que constituem uma dificuldade enorme para a filosofia ateísta. E o que possibilitou todas essas conquistas? Não foi - como dizem alguns - a mera difusão de um código moral elevado, uma espécie de platonismo melhorado. Não! Foi a simples história da Cruz do Calvário e do sepulcro vazio no jardim, a maravilhosa morte de Alguém "contado entre os transgressores" (Is 53.12) e o assombroso milagre da Sua ressurreição. Foi relatando fielmente como o Filho de Deus morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação que os Apóstolos mudaram a face do mundo, fundaram igrejas e transformaram um incontável número de pecadores em santos.
b) Por outro lado, devemos aprender qual deve ser o fundamento de nossa própria religião pessoal se verdadeiramente queremos ter vida espiritual saudável. Que os cristãos primitivos possuíam essa qualidade de vida espiritual saudável é algo claro como o Sol do meio-dia. No Novo Testamento lemos continuamente sobre a alegria, a paz, a paciência e o contentamento. Lemos na história eclesiástica sobre a coragem e firmeza dos cristãos diante da mais feroz perseguição, de como suportaram o sofrimento e morreram de modo triunfante. E qual foi a origem dessas características peculiares, que despertaram a admiração até mesmo de seus piores inimigos e a perplexidade de filósofos pagãos como Plínio? Só pode haver uma resposta. Esses homens haviam abraçado firmemente os dois grandes fatos que Paulo proclamou "primeiramente" aos coríntios: a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, o Senhor. Jamais nos envergonhemos de seguir seus passos! É fácil zombar da "teologia sistemática" e de credos, confissões doutrinárias e declarações de fé como se fossem coisas antigas e ultrapassadas, impróprias para o nosso tempo. Mas, afinal de contas, quais são os frutos da filosofia moderna e do ensino frio e insípido do humanismo em comparação com os desprezados dogmas do Cristianismo bíblico? Se alguém quiser ter paz nesta vida, esperança na morte e experimentar conforto e consolação no sofrimento, jamais encontrará tais bênçãos, exceto entre aqueles que descansam nos dois grandes fatos de nosso texto, e que podem dizer: "A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gl 2.20). Sim, o coração humano somente encontra repouso nos "dogmas" tão desprezados pelos filósofos humanistas!
II. Permitam-me passar agora a outra ideia a respeito do tema que estamos tratando. Vimos quais foram as verdades que Paulo proclamou "primeiramente" aos coríntios e quais foram os efeitos que produziram. Tentaremos agora compreender e examinar as razões que o levaram a colocá-las numa posição tão preeminente.
Essa questão é muito interessante. Não posso sustentar, como fazem alguns, que Paulo adotou tal procedimento somente porque assim lhe foi ordenado pelo Senhor. Creio que as razões são muito mais profundas. Essas razões devem ser procuradas nas necessidades humanas e no estado decaído da natureza humana. Creio que as carências humanas jamais seriam satisfeitas por uma mensagem diferente daquela pregada pelo Apóstolo Paulo em Corinto; e se não tivesse procedido desse modo, seu trabalho ali teria sido em vão.
Porque há três coisas óbvias a respeito de todo homem, quando examinamos sua natureza, sua posição e sua constituição. O homem é uma criatura com um sentimento de pecado e de responsabilidade no mais íntimo de seu coração; uma criatura que experimenta a dor e o sofrimento desde o berço até a sepultura; e uma criatura que tem diante de si a certeza da morte e de um estado futuro final. Esses são três grandes fatos com os quais nos enfrentamos inexoravelmente em todo o mundo, em todas as culturas. Percorra todo o planeta e você encontrará esses fatos tanto nos cristãos mais educados quanto nos pagãos mais incultos. Percorra seu próprio país, e você os encontrará tanto no camponês quanto no filósofo. Em todos os lugares, em todas as classes sociais, você encontrará o mesmo. E a tese que defendo é a seguinte: que não é possível imaginar ou conceber nada mais admiravelmente adequado para satisfazer a necessidade da natureza humana do que a mesma doutrina que Paulo pregou em Corinto: a doutrina da morte de Cristo pelos nossos pecados e Sua ressurreição do sepulcro por nós. Tal doutrina ajusta-se perfeitamente à necessidade humana, tal como a chave correta se encaixa em sua fechadura.
Permitam-me expor brevemente as três coisas que acabo de mencionar e tentarei mostrar a intensa luz que lançam sobre a escolha que Paulo fez daquilo que deveria pregar em Corinto.
a) Consideremos, em primeiro lugar, o sentimento interior de pecado e imperfeição que existe, em maior ou menor grau, em cada membro da família humana. Admito abertamente que difere grandemente entre diferentes pessoas. Em milhares de indivíduos parece como que houvesse desaparecido por completo. A falta de educação, o pecado constante, a rejeição contínua da fé cristã, a indulgência habitual em todos os desejos da carne: tudo isso tem a capacidade fantástica de cegar os olhos e cauterizar a consciência. Mas onde você encontrará um homem - exceto entre os brâmanes de castas altas ou entre cristãos lunáticos - que se atreva a afirmar que é perfeito e que não confesse, se seriamente questionado, que não é exatamente quem deveria ser e que sabe que deve fazer o bem, mas não o faz? Oh, não! A grande maioria dos seres humanos tem uma consciência de pecado que de vez em quando os faz sentir-se em completa desgraça. A austeridade auto-imposta dos hindus ou o temor de governantes como Herodes e Félix são provas do que quero dizer. Onde quer que haja um filho de Adão, há uma criatura consciente, no mais íntimo de seu coração, da culpa, de seus defeitos e de sua necessidade.
E quando esse sentimento de pecado desperta e nos atormenta, quem pode curá-lo? Alguns falam vagamente da "misericórdia" e da "bondade" de Deus, mesmo sendo completamente incapazes de explicar seu significado ou de explicar que direito tem o homem a elas. Outros se convencem a si mesmos de que seu próprio arrependimento, suas lágrimas e orações, e a prática ativa e diligente de ritos religiosos lhes trará paz. Mas que filho de Adão obteve paz dessa maneira? Jamais coisa alguma fez bem à alma humana exceto a visão do divino Mediador entre Deus e os homens, a Pessoa real e viva, onipotente e cheia de misericórdia de Jesus Cristo, que suportou nossos pecados, sofreu em nosso lugar, e levou sobre si o fardo de nossa redenção. Enquanto o homem olhar somente para si mesmo e buscar limpar-se do sentimento de pecado pelas suas próprias forças, conseguirá apenas sentir-se mais e mais perdido e condenado. Mas quando olhar para fora, para "Jesus Cristo, homem" morrendo por seus pecados, e descanse sua alma n'Ele, encontrará, como encontraram milhões através dos séculos, exatamente o que necessita a sua alma ferida. Em suma, a fé na morte de Cristo pelos nossos pecados é o remédio que Deus providenciou para a necessidade espiritual do homem. É a cura divina para essa praga letal que infecta toda a humanidade e que faz com que todos os homens sintam-se condenados. Se Paulo não tivesse proclamado essa cura em Corinto, teria demonstrado uma grande ignorância sobre a natureza humana e teria sido um médico sem valor. E se nós, ministros do evangelho, não a proclamamos é porque nossos olhos estão fechados e não temos luz.
b) Consideremos agora a tendência universal do homem ao sofrimento. As Escrituras dizem que "o homem nasce para as dificuldades" (Jó 5.7) e tal afirmação é continuamente experimentada por milhões que nunca conheceram a Palavra de Deus. Todos concordam que o mundo está cheio de problemas. É um ditado correto que chegamos a esta vida chorando, passamos por ela reclamando e a abandonamos decepcionados. De todas as criaturas de Deus, nenhuma é tão vulnerável quando o homem. O corpo, a mente, os sentimentos, a família e a propriedade são todos suscetíveis de transformar-se em fontes de dor e agonia. E não há classe social ou hierarquia que seja imune a essas coisas. Tanto ricos quanto pobres experimentam a dor, os eruditos e os incultos, os jovens e os velhos; a dor está presente no castelo e no casebre, e nem a riqueza, nem a ciência, nem a posição social elevada podem evitar que a dor invada nossas casas e nos assalte sem prévio aviso, como um homem armado. Essas são questões antigas, eu sei; os poetas e filósofos da antiga Grécia e mais tarde de Roma as conheciam tão bem quanto nós. Mas devemos sempre manter esses fatos em nossas mentes.
O que nos ajudará a resistir e suportar a dor? Se nosso estado é tal, desde a Queda, que simplesmente não podemos fugir à dor e ao sofrimento, como poderemos torná-los mais suportáveis? As frias lições do estoicismo carecem de poder para isso. É fácil teorizar sobre resignação e submissão à vontade de Deus quando tudo está bem. Mas quando a tempestade chega e os corações desfalecem, fluem as lágrimas e surgem brechas em nosso círculo familiar, quando o dinheiro se evapora e chega até nós a doença, simplesmente queremos algo mais do que princípios filosóficos abstratos e lições de moral. Queremos um Amigo pessoal e vivo, um Amigo a quem possamos nos dirigir com plena confiança, sabendo que Ele pode nos ajudar eficazmente.
Dito isso, minha opinião é que exatamente aqui resplandece com tremendo poder a doutrina que Paulo pregou aos coríntios, sobre Cristo ressuscitado. Esse Cristo satisfaz exatamente as nossas necessidades! Temos Alguém assentado à direita de Deus como nosso Amigo, e Ele tem poder para nos ajudar. Jesus, o Filho de Deus, se compadece de nossas fraquezas, conhece o coração do homem e toda a sua situação, porque Ele mesmo nasceu de uma mulher e participou da carne e do sangue. Sabe o que é dor, porque Ele mesmo chorou, gemeu e sofreu nos dias da Sua carne. Demonstrou Seu amor por nós - nos "aturou" (At 13.18) - durante trinta e três anos, por meio de inúmeros atos de bondade e incontáveis palavras de consolação. E morreu finalmente por nós na cruz. E antes de abandonar este mundo disse palavras como estas: "Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim" (Jo 14.1). "Não os deixarei órfãos; voltarei para vocês" (Jo 14.18). "Peçam e receberão, para que a alegria de vocês seja completa" (Jo 16.24). Não posso imaginar uma verdade que melhor se ajuste às necessidades do homem como esta. As regras, princípios e prescrições em tempos de dor têm a sua utilidade; mas o que o coração humano anela é um Amigo pessoal para apoiar-se e com o qual possa ter comunhão. O Cristo ressuscitado e vivo que intercede por nós à destra de Deus é precisamente o Amigo que necessitamos. Se Paulo não tivesse proclamado isso aos coríntios, teria deixado de satisfazer uma das maiores necessidades do ser humano. O homem não encontrará satisfação em nenhuma religião ou espiritualidade que não preencha as maiores carências da natureza humana. Os mestres que não cedem espaço ao Cristo ressuscitado e vivo em seus sistemas teológicos não deveriam ficar surpresos se os seus cansados ouvintes porventura busquem refúgio aos pés de religiões humanas ou mesmo do catolicismo romano.
c) Consideremos, em último lugar, a certeza da morte e de suas consequências que todo filho de Adão sabe que enfrentará um dia.
Dizer que a morte é algo grave é expressar o óbvio. O fim de cada indivíduo continua sendo uma circunstância transcendental em sua história e a maioria dos homens honrados assim o confessam. Abandonar o mundo e fechar os olhos para tudo aquilo com o que nos relacionamos, entregar nossos corpos à humilhação da fraqueza, da decadência e do sepulcro; sermos obrigados a abandonar todos os nossos planos e propósitos; tudo isso é bastante grave. Mas quando acrescentamos o perturbador pensamento de que há algo além, algum tipo de prestação de contas pela nossa vida na Terra, a morte de qualquer homem ou mulher transforma-se num acontecimento muito mais do que grave. Bem falou Shakespeare, nosso grande poeta, do "pavor de algo além da morte". É um temor que muitos sentem bem mais do que gostariam de admitir. Poucos encontram paz no fatalismo maometano, e menos ainda na doutrina da aniquilação.
De fato, não há nenhuma questão na qual as religiões não inspiradas da Antiguidade ou os sistemas filosóficos modernos sejam derrubados de tal forma como diante da questão da morte. Morar para sempre nos campos elíseos, entre fantasmas espectrais, era um fim não desejado nem mesmo pelos heróis homéricos. A teoria vaga e infundada de um estado de repouso depois da morte onde, de algum modo, as almas dos bons e justos, separadas de seus corpos, passam uma existência infindável sem propósito ou atividade é realmente um triste consolo. Homero, Platão, Bolingbroke, Voltaire e Paine ficam mudos e estarrecidos diante da visão de um sepulcro aberto.
Mas exatamente no ponto onde todos os sistemas criados pelos homens são mais fracos e incapazes de satisfazer as necessidades da natureza humana, é justamente onde o Evangelho proclamado por Paulo em Corinto é mais forte. Porque ele nos revela um Salvador Todo-Poderoso que não somente morreu pelos nossos pecados e descendeu ao sepulcro, mas que também ressuscitou corporalmente e demonstrou Sua vitória sobre a morte: "Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dentre aqueles que dormiram" (1Co 15.20); "Ele tornou inoperante a morte e trouxe à luz a vida e a imortalidade por meio do evangelho" (2Tm 1.10); "E libertasse aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados pelo medo da morte" (Hb 2.15).
E demos graças a Deus porque Cristo não obteve essa vitória sobre a morte e o sepulcro unicamente para Si mesmo. Desde então Ele tem capacitado a milhões de homens e mulheres cristãos, que têm crido n'Ele e têm confiado n'Ele, para afrontar o rei dos terrores sem temor e descer ao vale da sombra da morte com a esperança firme e segura de que sairão vitoriosos e verão, em sua carne, a Deus. Leia a história das mortes dos cristãos primitivos sob a perseguição pagã. Considere como morreram os que sofreram pelo protestantismo em Oxford e Smithfield sob a rainha Maria. Encontre, se puder, entre todas as biografias, leitos de morte de inconversos que possam comparar-se aos de cristãos em questão de paz, esperança e grande consolação. Você poderá buscar eternamente, sem encontrá-los. Você chegará à conclusão de que a velha verdade escriturística da morte e da ressurreição de Cristo é exatamente a verdade que se ajusta perfeitamente à natureza humana e, como tal, somente pode ter vindo de Deus. Isto, e somente isto, pode capacitar o homem para enfrentar o último inimigo sem temor e proclamar: "Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu aguilhão?" (1Co 15.55).
Que diremos de todas essas coisas? Sei muito bem que o coração humano e suas carências são questões profundas e complexas. Mas depois de estudar atentamente os corações dos homens durante muitos anos, tenho chegado a uma firme convicção. Essa convicção é que a verdadeira razão pela qual Paulo pregou, em primeiro lugar e antes de mais nada, aquilo que ele pregou em Corinto, encontra-se em seu correto entendimento da natureza, do estado moral e da posição do homem. O Espírito Santo de Deus ensinou Paulo que esse era o único remédio adequado para semelhante enfermidade. A natureza humana precisa de uma religião para os pecadores, um remédio e um Redentor pessoal; e a Pessoa e a obra de Cristo ajustam-se maravilhosamente a esses requisitos. Estamos doentes de uma doença mortal e nossa principal necessidade é de um Médico vivo.
Teria sido completamente inútil que Paulo começasse sua obra em Corinto dizendo aos homens que fossem virtuosos e moralistas, sem falar-lhes primeiramente de Cristo. É igualmente inútil hoje em dia. É até claramente maléfico. Clamar à natureza humana sem mostrar-lhe logo o remédio de Deus pode levar a consequências atrozes. Não conheço caso mais lamentável do que o de um homem que vê claramente o pecado, o sofrimento e a morte por um lado, mas que não vê claramente a Cristo morrendo pelos seus pecados e ressuscitando de outro lado. Desse modo o indivíduo cai em desespero, tornando-se presa fácil de teologias espúrias, como a enganosa teologia do catolicismo romano. Sem dúvida podemos dormir o sono dos descrentes durante muitos anos e não sentir medo ou dúvidas espirituais. Mas uma vez que a consciência do homem desperta e começa a desejar a Paz, não conheço remédio que possa curar-lhe e proteger-lhe do erro que destrói as almas, exceto o que Paulo transmitiu "primeiramente" em Corinto: as doutrinas da morte expiatória e da ressurreição de Cristo.
E agora permitam-me concluir esta reflexão com alguns conselhos. Conselhos que, creio, são adequados aos nossos tempos. Quem sabe se estas palavras possam ser de grande auxílio para muitos!
a) Permita-me, pois, aconselhá-lo encarecidamente que você não se envergonhe de sustentar ideias firmes a respeito das coisas mais importantes, isto é, as verdades fundamentais do Cristianismo. Sua sorte está lançada numa época de livre pensamento, de liberalismo, em que tudo é questionado. Existe uma ampla rejeição à firmeza doutrinária e tudo o que se denomina dogmatismo, e talvez não há ninguém mais exposto a essa mentalidade do que o jovem. A generosidade, a candidez e o desejo de agradar dos jovens fazem com que muitos abandonem ideias teológicas muito "categóricas". A tentação da atualidade é contentar-se com um vago "fervor" espiritual, e abster-se de qualquer ideia preciosa e distintiva; a ser "membro honorário" de todas as escolas de pensamento e sustentar que nenhum homem pode estar certo da verdade.
b) No entanto, a sua fé deve ter raízes para conseguir viver e se desenvolver neste mundo. Flores, por mais belas que sejam, não têm capacidade de perdurar se não tiverem raízes profundas. Admitindo plenamente que no Cristianismo existem coisas secundárias sobre as quais os jovens podem abster-se corretamente de julgar até obterem mais luz, eu lhe peço que se lembre que existem coisas prioritárias sobre as quais você deve, sim, ter uma opinião. Afirmo que você deve fazê-lo se quiser ter paz interior e ser útil para a sociedade. E entre essas coisas prioritárias destacam-se como montanhas numa planície as duas grandes verdades que Paulo pregou aos coríntios: a morte de Cristo pelos nossos pecados e a Sua ressurreição. Apegue-se firmemente a essas duas grandes verdades. Firme sua vida sobre elas. Alimente sua alma com elas. Viva delas. Morra com elas. Não se separe jamais delas: "Eu sei em quem tenho crido". Não em que, mas em quem. Vivo pela fé n'Aquele que morreu e ressuscitou por mim. Tenha isso claro, não importa o preço a pagar. E em seu devido tempo todas as outras verdades das Escrituras serão acrescentadas.
c) Talvez alguns que leiam esta reflexão estejam passando da tranquilidade de um lar feliz para o campo de batalha da dor e do sofrimento. Mas onde quer que você esteja agora, seja na cidade ou no campo, seja entre os ricos ou entre os pobres, espero que você faça sempre o bem. E lembre-se que um grande problema que você terá que resolver constantemente é como ajudar as almas que se encontram sob o fardo do pecado, esmagadas pelo peso da dor e oprimidas pelo terror da morte. E quando chegar esse momento, lembre-se das palavras que lhe digo hoje: A única forma de fazer o bem é seguir os passos de Paulo e dizer aos homens, em primeiro lugar e antes de qualquer outra coisa, constante e publicamente, de porta em porta, que Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação, que vive à direita de Deus para interceder, perdoar e preservar; e que logo voltará para nos proporcionar uma ressurreição gloriosa. Estas são as verdades que o Espírito Santo tem abençoado sempre, está abençoando e sempre abençoará até que o Senhor venha. Essas foram as coisas que Paulo ensinou "primeiramente". Decida e determine que essas também serão verdades prioritárias para você.
John Charles Ryle (1816-1900) serviu como reitor de St. Thomas, Winchester, e como Pastor de Helmingham e Stradbroke (Inglaterra). Foi Pastor principal da diocese anglicana de Liverpool, a partir de 1880. Sua produção literária foi imensa. Seus folhetos alcançaram uma difusão de 20 milhões de exemplares. Contribuiu de modo incalculável com a literatura reformada por meio de seus escritos e sermões. O texto acima foi traduzido e adaptado por F.V.S. de um sermão pregado por Ryle na Universidade de Oxford, no ano 1880.
Fonte: RYLE, J. C. El Aposento Alto. Moral de Calatrava (Ciudad Real): Peregrino, 2005, pp. 50-65.
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